SABER APRENDER – Queres o que a tecnologia quer?

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Nos parques naturais de todo o mundo, os animais começaram a alargar o seu território devido à ausência da presença humana. Depois existem as suas crias pós-covid que não conhecem ainda a nossa espécie e que terão de se reajustar quando os parques voltarem a abrir aos turistas. Nessa altura caberá aos seus pais progenitores a responsabilidade de lhes traduzir o que era o mundo antes da ausência humana. Tradutores culturais. Uma necessidade que temos há mais tempo do que imaginamos.

Foto de Dollar Gill em Unsplash

Consegues imaginar um mundo sem internet?

Como seria superar este distanciamento social sem a possibilidade de nos conectarmos?

A questão é que, apenas alguns de nós conseguimos imaginar um mundo sem internet por sermos a última geração que viveu esse tempo. Nesse sentido, temos a missão de traduzir os valores desse tempo às novas gerações.

Cérebro Alterado

Gary Small, professor de psiquiatria e pioneiro da neuroplasticidade cerebral diz que «nós sabemos que a tecnologia está a mudar as nossas vidas. [Mas] está, também, a mudar os nossos cérebros.» Por um lado, a neuroplasticidade dá uma grande esperança às pessoas mais idosas que vêem recuperada a possibilidade de não perder capacidades cognitivas com o avanço da idade, sabendo que o cérebro se adapta. Mas no que diz respeito às novas gerações, imersas horas sem fim em tempo de ecrã, e permanentemente ligadas à internet, acabam por ficar mais bem preparadas para lidar com a realidade digital, mas, gradualmente, perdem a capacidade de lidar com a dura, aborrecida, serena, e fonte do génio humano, isto é, a realidade material do mundo.

Em “Os Superficiais,” o jornalista Nicholas Carr explica como a internet trabalha a plasticidade dos nossos cérebros de tal modo que, o pensar tem-se tornado mais “superficial,” ou o mesmo que dizer, cada vez menos “profundo.” Esta é uma realidade séria por nos afastar da vida profunda sem que nos demos conta disso. Poderíamos estar a falar de algo cultural, como os memes introduzidos por Richard Dawkins como unidades fundamentais de transmissão da cultura, e se alteram com o tempo. Mas referimo-nos antes a uma alteração física do nosso cérebro.

É como alguém que faz uma operação plástica ao seu corpo e arrisca-se a desgostar do resultado final. Ou pessoas que se tatuam em jovens e dificilmente conseguem ver a beleza do seu corpo envelhecido com tatuagens deformadas com o tempo e a pele. Por outro lado, sendo o cérebro fisicamente transformado pelo modo como usamos a tecnologia através da internet, será que acabaremos por ficar à mercê dessa?

Temes para além dos memes

A escritora Susan Blackmore tem-se debruçado sobre a questão dos memes, avançado uma outra ideia, a dos temes.

Os temes são unidades de informação replicadas pela tecnologia que diferem dos memes pela fidelidade de 100% na replicação. No caso dos memes, quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto, e existe uma evolução cultural que se enriquece com a diversidade de pensamentos, épocas, e cruzamento entre culturas. Nos temes — por exemplo, partilhas nas redes sociais de imagens, GIFs, etc. — a sua replicação é perfeita, e enquanto de propaga através das culturas, e raças, uniformizando-as, vai-nos tornando viciados no tempo de ecrã através da necessidade de validação criada de cada vez que recebemos dos outros uma reacção à informação digital partilhada.

Blackmore explica que esta fidelidade de replicação de 100% leva a que, cada geração nova seja menos capaz de gerir os seus momentos de solitude, isto é, de estar junto com os seus pensamentos, e menos livre de optar pelo desapego tecnológico. Basta pensar naquilo que muitos sentem, sobretudo os jovens, quando se esquecem do telemóvel em casa. Neste sentido, estamos-nos a tornar máquinas de temes, servidores à mercê da tecnologia que se replica pela informação digital trocada por milhares de milhões de seres humanos em todo o mundo.

Muitos de nós conhecemos um mundo sem internet. Um mundo em que o vaguear do pensamento era o impulso criativo para realizar conexões impensadas que davam origem à inovação que víamos mais tarde realizada na vida quotidiana.

Se não formos nós, a última geração que viveu antes da internet, a testemunhar o poder criativo dos momentos ausentes de tecnologia, como a leitura de um livro, a escrita, uma caminhada, a pintura, a música, a escultura, e a simples observação do mundo ao nosso redor que se converte num momento de contemplação, quem o fará?

O tempo cronológico é inflexível, como a evolução tecnológica a que assistimos quando cedemos o tempo para pensar ao tempo para “internetar.” Parece que a tecnologia ganha vontade própria, mas pergunto – queremos o que a tecnologia quer?

 

Para saber mais

  • Dr. Gary Small e Gigi Vorgan, “iBrain: Surviving the Technological Alteration of the Modern Mind”, William Morrow Ed., 2008
  • Nicholas Carr, “Os Superficiais”, Gradiva, 2012
  • Susan Blackmore, “The meme machine”, Oxford University Press, 2000
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Agência ECCLESIA

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