Marcelo Rebelo de Sousa sustenta que nos últimos anos tem havido um esvaziamento do pensamento na sociedade portuguesa que também afecta a classe política do país. A ideia foi apresentada pelo professor na Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa na sexta-feira à noite, durante a sessão comemorativa dos 60 anos da Revista Portuguesa de Filosofia, inserida no programa do Congresso Internacional de Filosofia. Questionado pelo Diário do Minho sobre esta sua percepção, Marcelo Rebelo de Sousa começou por lembrar que há cerca de 30 anos, aquando do 25 de Abril e da feitura da Constituição, havia vários modelos para Portugal que tinham pensamentos subjacentes. «O que se passou é que a vida política e social é uma vida muito prática e gerida no dia à dia e em que se trata é de conquistar votos ou de pôr de pé certos projectos sociais e as pessoas acabam por perder o tempo para apresentar e debater ideias novas», disse. Para o professor, este esvaziamento, de que muitos se queixam estar a afectar os partidos, também se reflecte, na sua opinião, nos sindicatos, nas escolas e até na comunicação social. «Veja-se quantos debates políticos há na televisão, quantos programas há de pensamento político ou de ideias, ou sobre livros ou sobre cultura. E, os que há, com raras excepções, que audiências é que têm. Este empobrecimento é mau porque uma sociedade sem pensamento, sem cultura e sem ideias é um moinho que mói sem grãos e não vai a sítio nenhum», realçou. Perante a assistência que praticamente encheu a Aula Magna da Facfil, Marcelo Rebelo de Sousa confessou mesmo que, se há lamento que o persegue é o da demissão das elites, da falta de causas e do esvaziamento de princípios e de modelos relativos ao ser, ao existir, à vida, à sociedade, substituídos pela anemia, o relativismo e o casuísmo da gestão do quotidiano. «Que saudades dos afrontamentos doutrinários de há 40, 30 ou 20 anos. Que terrível vazio este de pensamento, vector de acção. Que felicidade haver uma instituição que não se demite de cumprir a sua missão», disse, referindo- se à Revista Portuguesa de Filosofia, que celebra os seus 60 anos de existência, e à Faculdade de Filosofia de Braga. Testemunho de coragem intelectual Depois de traçar a evolução da Revista Portuguesa da Filosofia, desde o seu nascimento até aos dias de hoje, falando dos temas que tratou e daqueles que se empenharam na sua publicação, o professor considerou que, há 60 anos, «o difícil era começar contra alguns ventos nacionalistas tacanhos, convivendo com o vento autoritário dominante ». «Depois, o difícil foi ir vivendo com fidelidade às raízes, mas com permanente atenção aos sinais dos tempos. Hoje, o difícil é persistir em filosofar, em não ceder ao fácil, ao imediato, ao modismo. Ao continuar igual a si própria 60 anos depois e ao resistir às diversas tentações deste tempo avesso à seriedade filosófica, a Revista Portuguesa de Filosofia dá-nos um testemunho daquilo que é coragem intelectual», salientou. Por fim, na sua alocução, Marcelo Rebelo de Sousa deixou ainda um desafio aos filósofos presentes na Aula Magna da Facfil. «A pobreza da reflexão filosófica sobre o Direito, o divórcio entre escolas jurídicas e filosóficas e, mais em particular, o relativismo que se confronta com a essência do personalismo, este, por sinal, com acolhimento na Constituição, são matéria a pedir a atenção e o empenhamento de todos e, naturalmente, de forma especial dos académicos, das sociedades científicas das instituições de inspiração cristã », salientou, acrescentando ainda que «é à luz dessa preocupação fundamental, com o esvaziamento do personalismo, que devem ser equacionadas as grandes questões jurídicas deste tempo». Sociedade sem Deus Manfredo Oliveira, professor da Universidade Federal do Ceará, no Brasil, considerou ontem que «vivemos numa sociedade onde a pessoa praticamente perdeu a sua dignidade». Falando à margem do Congresso Internacional de Filosofia, que decorreu na Facfil, em Braga, sob o tema “Pessoa e Sociedade”, Manfredo Oliveira defendeu que «os problemas que marcam hoje o mundo vão na direcção da construção de uma sociabilidade a nível internacional que destrói e ameaça a dignidade humana». «Nós temos, não só catástrofes naturais, que são em grande parte resultado da sistemática destruição da natureza que é feita pelo grande projecto moderno de dominação do mundo, mas também questões básicas que surgem ao nível da constituição da própria sociabilidade, isto é, as relações entre pessoas nos Estados nacionais. E, as relações entre estados Nacionais levam na direcção de excluir uma grande parte da humanidade, não só dos benefícios da civilização, mas da própria dignidade porque falta a uma boa parte da humanidade de hoje aquelas condições mínimas, elementares e necessárias para uma vida decente», salientou. Segundo o professor, que veio ao congresso apresentar uma comunicação intitulada “Subjectividade e Totalidade: um confronto com as antropologias contemporâneas”, é possível mesmo falar de uma auto-destruição da humanidade. Na sua opinião, se continuarmos a levar por diante este tipo de civilização que estamos a construir, será possível dizer, como vários analistas o têm dito, que caminhamos para um apocalipse ecológico e social. Ou seja, «nós destruiremos cada vez mais as bases naturais e materiais da vida humana e destruiremos a própria vida humana », disse. Convidado a olhar para a Europa, este filósofo e sacerdote sul-americano considerou que a sociedade europeia «é uma sociedade praticamente sem Deus». Na sua perspectiva, «as pessoas acostumaram-se a não ter mais a Deus como referência da vida e, do ponto de vista filosófico, a Europa é marcada ainda hoje por filósofos que negaram a própria possibilidade da razão humana falar sobre Deus». Segundo explicou, nos Estados Unidos da América, onde esta marca e pré-conceito não existiu, há hoje um grupo de filósofos muito forte e importante que retomou a questão de Deus, considerando-a fundamental para entender o universo e o sentido da vida humana, numa sociedade que se esvaziou de valores fundamentais. «Acho que a Europa teria que fazer uma crítica da crítica, superando este tipo de pensamento que barra a possibilidade da razão humana levantar as questões últimas», acrescentou. Sendo um especialista em ética e política, Manfredo Oliveira falou ainda ao Diário do Minho dos desafios que se colocam ao seu país. Segundo explicou, a imprensa brasileira tem dado um enfoque muito grande ao problema da corrupção, mas, no seu entender, a questão fundamental «é que o Brasil é um país que se criou, desde as suas origens, marcado por desigualdades fundamentais». «Os portugueses transplantaram, de certa maneira, a civilização europeia para o continente americano mas, para que ela pudesse ir para diante, trouxeram escravos. Em primeiro lugar, os índios, e depois os africanos, e isso foi criando uma desigualdade histórica que marcou o país há mais de 500 anos. Assim, o problema fundamental do Brasil é enfrentar o problema da desigualdade », defendeu. Para Manfredo Oliveira, o governo de Lula da Silva foi eleito com essa grande expectativa «e, o que aconteceu é que, uma vez chegado ao poder, ele, orientado por um certo grupo dentro do partido, assumiu a política económica exactamente combatida pelo seu partido durante anos», acrescentou. Por fim, o professor abordou ainda a questão da emigração na Europa, considerando que este fenómeno pode ser visto de duas formas. Por um lado, disse, esta é a oportunidade do europeu abrir-se para o mundo universal. No entanto, sublinhou, isto também pode trazer complicações. Sabendo-se que a emigração envolve cada vez mais populações de outras culturas, como as africanas e asiáticas, isso poderá desenvolver conflitos. A questão, sublinhou, será como integrar verdadeiramente estas populações. «O caso francês deve ser paradigmático porque os rapazes que provocaram a rebelião foram integrados culturalmente, mas não foram incluídos social e economicamente », defendeu. Por isso, Manfredo Oliveira não hesita em afirmar que a França foi um aviso para os outros países europeus, onde os mesmos problemas começam a emergir.
