Rui Ferreira, Arquidiocese de Braga
1 – Vivemos, por estes dias nos auspícios de um novo ano que se vai iniciar. Falamos de um total de exatamente 8760 horas que nos são novamente oferecidas. Considerando que passaremos cerca de um terço desse tempo a dormir, estamos reduzidos a (apenas) 5840 horas, que correspondem a cerca de 350 mil minutos e quase 21 milhões de segundos. É imenso tempo, embora corresponda a uma milésima infinitesimal do tempo real da humanidade sobre a Terra. E quais são os nossos planos para esse tempo?
2 – O ano que agora finda deixa-nos a todos perplexos, limitados, exaustos. Nenhuma expectativa foi, talvez, cumprida em 2020. Aliás, quando imaginávamos o ano que se iniciaria há precisamente um ano atrás, jamais conseguiríamos prever o grande desafio que seria colocado a cada um de nós, em particular, e à humanidade, como um todo. Por isso mesmo, seria legítimo não partirmos com grandes conjeturações para o ano que vem. No entanto, teremos tido poucas passagens de ano tão oportunas como esta que nos é oferecida.
3 – Para Fernando Pessoa, o Ano Novo oferece-nos a “ficção de que começa alguma coisa”. No entanto, “nada começa: tudo continua”[1]. Por sua vez, o literato brasileiro Carlos Drummond de Andrade na sua” receita de Ano Novo”[2] impele-nos a pôr de lado a lista de boas intenções ou a chorar arrependido pelo ano que passou. “Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo”. Já o Papa Francisco, referindo-se concretamente ao ano de 2021, diz-nos que é oportunidade para formarmos “uma comunidade em que todos se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros” [3].
4 – A Terra é o lugar onde todos somos chamados a viver. Não estamos destinados a viver cá para sempre…somos incrivelmente pequenos perante uma obra desta grandeza. Apesar de muitas vezes criarmos a ilusão de que até possuímos uma porção desta herança, rapidamente percebemos que apenas fomos chamados a tomar conta desse pedaço até outros tomarem conta dele. É este o dinamismo da vida: uns nascem, outros crescem, e outros, devagar, vão morrendo.
5 – Esta verdade da nossa existência pode aparecer como um drama. De facto, não fomos criados para nos tornarmos donos do mundo, mas para usufruir dele durante um tempo para de seguida o passarmos ainda melhor para as mãos de outros. A grande vantagem de tudo isto é a possibilidade de sermos outros criadores do mundo, ajudando a melhorar recantos incompletos e inventando novas formas de sermos felizes. É isso que a humanidade tão bem tem sabido fazer, apesar dos exageros. E sim! Um dia iremos deixar tudo e partiremos para outra existência. Não é extraordinária esta certeza?
6 – São Paulo diz-nos que “estamos sempre cheios de confiança” não nas nossas forças e realizações, mas na certeza de que habitamos neste mundo, desta forma, provisoriamente. Esta verdade que se apresenta tão clara para São Paulo tem muito a ver com aquele desejo que todos partilhamos de existir e existir para sempre. Basta atentarmos um pouco na nossa vida concreta, nas nossas decisões, naquilo que nos move e motiva, para termos a verificação empírica desta situação. O inverso seria desejar a morte, não comer, beber ou falar. Não vamos ser para sempre nesta realidade, mas confiamos na existência plena que nos é oferecida por Jesus Cristo.
7 – Façamos, pois, que este ano que agora começa nos inspire a uma atitude de autêntica generosidade e otimismo. Afinal, de que adianta a tristeza e a desolação quando temos tantas oportunidades para uma vida diferente. O que nos espera neste novo ano? 365 dias, ou se preferirem 8760 horas de oportunidades para a uma vida nova que não está necessariamente condicionada pelo contexto em que vivemos ou pelas pessoas que nos rodeiam. Depende apenas da atitude de cada um de nós. Por isso mesmo, partamos com confiança para 2021!
[1] “Poesia 1918-1930”, Assírio & Alvim, 2005.
[2] “Discurso de primavera e algumas sombras”. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
[3] http://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/peace/documents/papa-francesco_20201208_messaggio-54giornatamondiale-pace2021.html