25 de Abril: «Da parte de alguns bispos havia uma consciência de que o regime não podia prosseguir com aquele esforço de guerra» – António Araújo

Jurista e investigador, integra a Comissão Executiva e do Conselho de Administração da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Com vários livros publicados sobre o período do Estado Novo, é autor de uma tese académica sobre a Vigília da Capela do Rato

Foto: Agência ECCLESIA

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Esteve na Comissão Organizadora das Celebrações dos 50 Anos dessa vigília. Para quem nos está a ouvir, porque é que este momento é tão significativo para a história contemporânea de Portugal? 

É difícil responder muito telegraficamente, porque acho que foi talvez o gesto mais emblemático e mais simbólico de manifestação de uma espécie de resistência católica ao regime do Estado Novo e de questionamento por parte dos crentes, de uma minoria de crentes, é certo, mas apesar de tudo muito ativa; aquilo a que D. Helder Câmara chamava as minorias abraâmicas. Um questionamento da guerra colonial em nome do lema anunciado por Paulo VI de que a paz é possível. Portanto, estamos a falar das comemorações do Dia Mundial da Paz no início do ano de 73.

E o caso teve uma série de repercussões políticas, como é evidente, porque foi uma Vigília, uma ocupação, apesar de tudo, mais ou menos consentida da Capela do Rato, e seguida de uma greve de fome, de protesto, e depois de uma série de debates que foram realizados dentro da Capela, com pessoas como por exemplo Sofia de Melo Breyner e Francisco de  Sousa Tavares. E em grande parte o impacto dessa vigília decorreu da reação das autoridades que invadiram o templo e prenderam uma série de pessoas que lá se encontravam. E depois, a partir daí, tudo isso teve uma repercussão muito grande nos meios políticos, por via da chamada ala liberal dos deputados, sobretudo Francisco Sá Carneiro e Miller Guerra, que levaram a questão da entrada da polícia num templo religioso, a debate na Assembleia Nacional. Houve um grave confronto com um deputado dito ultra, que era Francisco Casal Ribeiro, portanto mais ligado, se quisermos, ao legado salazarista.

 

Sim, quando se fala de aula liberal, para quem não está tão familiarizado, vamos dizer que é uma espécie de terceira via que ia surgindo…

Exatamente, a ala liberal foi um conjunto de jovens deputados que, Marcelo Caetano, por via de Melo e Castro, decidiu abrir, mas faziam parte das listas da Acão Nacional Popular que tinha deixado de ser tratada União Nacional, o partido único de apoio ao regime. Eles faziam parte do conjunto de deputados que nas eleições de 69 entraram para a Assembleia Nacional. Era um conjunto relativamente reduzido, mas já agora eu também estou ligado a algo que foi a celebração, e ainda continua, do encontro dos liberais, que foi um encontro tido em julho de 73, e muitos desses liberais pertenciam à dita ala liberal, que pouco tem a ver, ou se quisermos, para as pessoas perceberem, a ala liberal não significa a Iniciativa Liberal dos nossos dias. Eram, antes pessoas que queriam a liberalização do regime, e pessoas que estiveram grande parte delas na fundação do PPD, hoje PPD-PSD.

 

O que acontece na Vigília da Capela do Rato acaba por ser um sinal de que a ideia de que o regime era reformulável por dentro, sofre aí um duro golpe, com esta atitude repressiva?

Não foi apenas a isto, é uma série de repressões, para já desde logo a reeleição de Américo Tomás em 72, é talvez o sinal mais emblemático de que o regime era incapaz de se reformar por dentro, porque houve tentativas de candidatura até do general Spínola, até de Marcial Caetano. Houve gente que queria que Marcelo Caetano fosse eleito, que se candidatasse ao cargo de Presidente da República, mas se quisermos, a reeleição de Tomás, que no fundo Marcelo acaba por aceitar, é o sinal mais expressivo de que o regime não se ia reformar e sobretudo que a política de continuação da guerra colonial naqueles moldes iria prosseguir.

 

Mas isso deu força a que por fora se iniciasse um processo? 

Sim, sim, sim, é preciso dizer que antes da vigília, desta vigília de finais de 72, início de 73, já tinha havido uma tentativa de uma outra, a chamada Vigília de São Domingos, no final dos anos 60, que não teve a mesma projeção, talvez por alguma inexperiência das pessoas que estavam a organizar, Nuno Teotónio Pereira, Luís Moita, etc. O clérigo que estava responsável conseguiu dominar os acontecimentos. Aqui não, a escolha da Capela do Rato foi muito feliz, a equipa sacerdotal que estava era bastante alinhada, ainda que tenha tido um conhecimento muito leve do que se ia passar, mas o Padre Alberto de Neto, António Janela, Armindo Garcia, já eram padres, bastante avançados. E, portanto, isso ajudou muito ao êxito da jornada. Mas talvez o fator mais decisivo, como digo, tenha sido a entrada da polícia na Capela.

Entrevistas que fiz anos depois mostraram que talvez a polícia tenha errado e que a técnica que teria sido mais eficaz para retirar as pessoas da capela tivesse sido cortar a água ou luz. Era isso que os organizadores mais temiam. Não foi isso que a PSP fez. A PSP do Capitão Maltês entrou na Capela e à força retirou uma série de pessoas, entre os quais um jovem que não era católico e que estava ali por solidariedade, o Francisco Louçã. Eles foram presos pouco tempo, talvez 15 dias no máximo. Os principais dinamizadores, os rostos mais visíveis são presos pouco tempo. Diferente foi a situação mais tarde, onde se dão prisões muito mais graves é no final do ano de 73. Aí uma série de católicos, já por acusação de cumplicidade com as Brigadas Revolucionárias de Carlos Antunes e Isabel do Carmo, que também tiveram uma participação na Vigília da Capela do Rato no início do ano de 73, também são presos. Nesse momento, são acusados do transporte de explosivos, de esconderem explosivos. Aí Nuno Teotónio Pereira….

 

Contextualizando, aqui o que temos em causa é o facto de estes movimentos católicos, ao contrário de outros movimentos de oposição ao regime não operavam na clandestinidade. Tinham uma identidade, tinham um reconhecimento. E, portanto, há um impacto muito severo quando há um confronto com o regime por parte destes movimentos que não são clandestinos….

Alguns deles seriam mais clandestinos, como por exemplo, os cadernos de GEDOC do padre Felicidade Alves e de Nuno Teotónio Pereira, mas havia um confronto que se desenhava desde o pós-guerra. O Jornal Trabalhador do padre Abel Varzim, o padre Alves Correia, o Congresso dos Homens Católicos em 1950, as atuações de Francisco Lino Neto, tudo isso era feito ainda, se quisermos, dentro do regime, num certo sentido, e era feito às claras. Depois houve uma radicalização, sobretudo nos anos 60, e chegou-se à ideia, como dizia António Matos Ferreira, que a chamada oposição do stencil e do policopiador, que era dos abaixo-assinados, de distribuir panfletos, era pouco consequente. E por isso envereda-se por caminhos mais ligados à ação direta, a ações de protesto. As mais visíveis terão sido essas da Vigília de São Domingos, e mesmo assim não muito visível, e sobretudo a Capela do Rato. Mas fizeram-se muitas coisas, como por exemplo distribuição de propaganda e folhetos clandestinos; esses em Fátima. Havia já uma rede de oposicionismo católico muito desenvolvida.

 

Já falou aqui do Dia Mundial da Paz, de Paulo VI. Que papel têm os documentos do Conselho Vaticano II e os pontificados de João XXIII e Paulo VI no desenvolvimento da contestação à política colonial portuguesa, e em particular da consciencialização de que a guerra era injusta e era também inútil?

Muito grande, e acho que talvez do ponto de vista eclesial o acontecimento decisivo é o Vaticano II e depois os pontificados de João XXIII e de Paulo VI.

Recordo que em 73 o Episcopado português faz uma carta pastoral sobre o décimo aniversário da Pacem in Terris, da Encíclica que proclamava a paz de 63, de João XXIII. Era uma Encíclica sobre a paz num país que estava em guerra. Vejam o significado de haver uma encíclica papal a falar da necessidade da paz na terra. Era algo já de si subversivo.

E depois Paulo VI tem, como se sabe, algumas ações, nomeadamente a ida ao Congresso Eucarístico de Bombaim em 1964, e depois mesmo a vinda de Paulo VI a Fátima já no final do regime, ou melhor, já no final do salazarismo, também é marcada em 67, é marcada também por algumas notas importantes. Paulo VI não vem a Lisboa. Paulo VI desembarca em Monte Real. Paulo VI faz daquela visita, não uma visita com caráter político, mas uma visita eminentemente pastoral. E diz-se até que o encontro com o Salazar não terá decorrido das menores formas. Porquê? Porque o Salazar ter-se-á dirigido a Paulo VI como Sua Santidade, e Paulo VI terá replicado: sua eternidade. Isso talvez faça parte da pequena história, e não seja real,  mas mais significativo, como é evidente, é o facto de Paulo VI receber os chamados líderes dos movimentos de libertação, que se encontravam em Roma, portanto no início dos anos 70, e depois, já depois da Vigília, há um facto muito significativo, que é a denúncia pelo padre Adrian Hastings do massacre de Viriamu, que foi uma trágica coincidência com a Capela do Rato, e foi mais ou menos nessa altura, no início de 73, mas não tem ligação. Isto é, as pessoas que estão na Capela não sequer adivinhavam o que se estava a passar.

Havia, era da parte já de uma série de sacerdotes e até prelados das ditas colónias do ultramar, alguns que se tinham afastado, se quisermos, da matriz do regime. Outros não, como por exemplo Dom Cristóvão Alvim não; era uma pessoa muito afeta ao regime e ao esforço de guerra colonial, mas é preciso lembrar, por exemplo, no dia 25 de abril de 1974,  o episcopado da metrópole está em Fátima, e em 27 de abril emite uma nota sobre os acontecimentos revolucionários, sobre a revolução dos cravos, e ao mesmo tempo também manifesta preocupação pela situação que foi expulso do território de Moçambique, Dom Manuel Vieira Pinto, que era bispo de Nampula, e 11 missionários Combonianos. E, portanto, já havia, mesmo no interior da igreja, ao seu mais alto nível, não falei ainda da ação de Dom António Ribeiro, que é importante também frisar, mas já havia da parte de alguns prelados, alguns bispos, uma consciência de que o regime não podia prosseguir com aquele esforço de guerra.

 

 Apesar de historiograficamente durante décadas termos tido uma leitura, quase unívoca, de alinhamento da hierarquia católica com o regime, o que nós vemos é que vários responsáveis católicos e movimentos ajudam a preparar também a democracia em Portugal…

Sem dúvida. E acho que há aqui um grande erro, quando abordamos um regime que durou tanto tempo, como o Estado Novo, de procurar colar-lhe etiquetas que tentem durar o tempo todo. É o mesmo que se passa com a etiqueta de fascista: isto é, o regime teve caracteres fascistas e influências e ligações, até sobretudo a Mussolini, nos anos 30, mas depois, como é evidente no pós-guerra, sem se tornar uma democracia, dá uma espécie de golpe de rins. Salazar até promete, falsamente, eleições tão livres como na livre Inglaterra e o regime aparece como um oásis na Guerra Fria, um oásis de estabilidade para este lado e como membro fundador da NATO, etc…

O mesmo se passa com a ideia da cumplicidade da Igreja Católica. Não há dúvida que, durante muito tempo, uma parte substancial da hierarquia foi conivente com o Estado Novo, basta pensar na relação Salazar-Cerejeira, embora não tão próxima e tão cúmplice como muitas vezes as pessoas procuram figurar, mas enfim…

Veja-se, por exemplo, também a Concordata de 1940: não é uma Concordata em que Salazar ceda à Igreja, pelo contrário, é a Santa Sé que tem de ceder, se quisermos, ao realismo político de Salazar, que atuou totalmente com base na sua razão de Estado e não como um crente católico.

 

Num contexto muito difícil, da II Guerra Mundial…

Exatamente. E depois, em relação à hierarquia, pode-se dizer que nos anos 50 e nos anos 60 uma parte substancial ainda estava alinhada com o regime, sobretudo a alta hierarquia. Gostaria de deixar também uma palavra sobre D. António Ribeiro: a entrada de D. António Ribeiro, que não trouxe imediatamente uma democratização da Igreja, até porque ele não tinha força para isso, nem lhe cabia mudar totalmente a composição do episcopado, mas deu sinais muito interessantes, como por exemplo, em 1973, num encontro discreto, para não dizer secreto, com Mário Soares, e uma série de outros sinais.

Mesmo aqui, na Capela do Rato, é preciso que as pessoas saibam, no dia 1 de janeiro, os sacerdotes que vão celebrar a Missa são detidos pela PIDE, vão à sede, são levados para António Maria Cardoso, para a sede da PIDE. D. António vai lá pessoalmente, dizendo que só saía quando os seus padres fossem libertados. Portanto há uma ideia de confronto direto com a PIDE e com o diretor da PIDE.

 

Noutra geografia também é muito importante o papel de D. António Ferreira Gomes, não é?

Sim, sim, um bocadinho mais recuado, no tempo, porque antecedeu um bocadinho estas convulsões, mas o que é facto é que D. António ficou sempre como uma grande referência do questionamento, outros talvez menos conhecidos, como o padre Alves Correia, só para dar outro exemplo. D. António, até pela atitude persistente que teve, de receber pessoas, e sobretudo pela escrita, a sua poderosíssima escrita foi sempre uma referência, até uma referência moral para um certo oposicionismo católico do Porto, que tinha algumas confluências com o de Lisboa, mas, apesar de tudo, tinham singularidades próprias.

 

Escreve que o 25 de Abril cultural, como o define, precedeu o militar e o político. Havia sinais de que o regime do Estado Novo sim encaminhava para o seu fim?

Sim, sem dúvida. Houve um historiador, Paulo Guinote, que fez uma pesquisa sobre os bigodes e as barbas dos deputados à Constituição de 1911, e concluiu que 99% tinham bigode e barba, porque era a moda do tempo, só um é que não tinha, que por acaso era padre ou tinha sido padre… E nós vemos essa revolução cultural, mesmo, nas fotografias do 25 de Abril, onde vemos os civis já com os cabelos à ‘Beatles’, ou com os cabelos muito compridos.

O que quero dizer com esta metáfora capilar, ou quase irónica, é que houve mudanças ao nível da sexualidade, desde logo com a questão da pílula; ao nível da abertura ao mundo, trazida pelo turismo cá e pela imigração para lá; do maior contacto dos jovens com aquilo que já se chamou internacional de referências, marxista ou pós-marxista, Che Guevara, as grandes figuras míticas como o Luther King, etc. Há toda uma transformação da juventude que tem efeito no maio de 68, mas também tem efeito nas crises académicas cá. Isto é, do ponto de vista social, o 25 de Abril, de certa forma, já tinha acontecido. A rutura de uma parte significativa da juventude com o regime, até por efeito da guerra da África já tinha acontecido.

 

Fala, aliás, do papel da juventude como grupo político nesta fase…

Exatamente. Marcelo Caetano tinha até um livro chamado ‘Por Amor da Juventude’, e não só, mas ele próprio tinha consciência e disse que a juventude tinha deixado de ser uma idade da vida para se converter num grupo político ou, se quisermos, num grupo social ou corporativo com reivindicações próprias – do ponto de vista do serviço militar e dos anseios próprios da juventude. A juventude já não era apenas um tempo de vida, entre a meninice e a velhice, era também um grupo social, um grupo de pressão específica….

 

Que importância tem recuperar esta memória histórica e este enquadramento do que foi realmente a Revolução de 74, o 25 de Abril, para uma geração que nasce em liberdade e que provavelmente nem sempre dá valor ao que é a democracia?

Eu acho que é muito importante pelo seguinte, e eu digo sempre isto às pessoas que ainda falam em saudosismos do anterior regime: se essas pessoas já têm alguma idade, mais de 64 anos, nesta altura, se vivêssemos naquele tempo, essas pessoas já teriam morrido – porque a experiência média de vida eram 64 anos; por outro lado, se essas pessoas são jovens e têm menos de 30 anos, o que também se deve dizer é que, se calhar, estavam a caminho de morrer na Guerra da África, nos confins do ultramar.

Portanto, não há razões para saudosismo, há razões para uma visão distanciada da história, e é importante, atualmente, cada vez mais, fazermos uma pedagogia da liberdade e da democracia, porque como nós já estamos tão habituados a ela, sentimos que é como o ar que respiramos. Só quando sentimos falta de ar é que vemos a importância…

 

Enquanto sociedade estamos a enveredar por um caminho perigoso, onde pelo menos de forma aparente, ganha cada vez mais adeptos aquele discurso mais radical e populista. Também aqui é importante revisitar a nossa história recente para combater, de alguma forma, este tipo de ideias?

Eu acho que sim. Eu não gosto muito de falar do presente, até porque fui convocado aqui para falar como historiador e não sou comentador político, aliás acho que é uma profissão bastante de risco… Marc Twain dizia “a história nunca se repete, mas às vezes rima”, portanto, ciclicamente, surgem estas pulsões mais autoritárias ou, se quisermos, mais radicais. Não deixa de ser paradoxal, num tempo de tantos e tão exacerbados nacionalismos, que haja tão pouca gente disposta a morrer pela pátria e até a cumprir o serviço militar. Portanto, para fazer a desconstrução de uma série de mitos políticos do presente, acho que o passado ajuda muito.

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Agência ECCLESIA

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