Bragança: Homilia do bispo emérito na Sexta-feira da Paixão do Senhor

Celebração da Paixão do Senhor – Sexta-Feira Santa

«O meu reino não é deste mundo» (Jo 18,36) é uma declaração programática de Jesus no diálogo com o procurador romano Pôncio Pilatos.

As autoridades religiosas judaicas levaram Jesus a Pilatos porque as sentenças de morte eram da competência da autoridade colonial romana (Jo 18,31). Um dos motivos da condenação de Jesus foi a acusação de Ele pretender ser rei, o que poderia pôr em causa a soberania política do imperador romano. Apesar de ter declarado  três vezes que não encontrava culpa alguma em Jesus (Jo 18, 31 e 19,4 e 6) e até de ter procurado libertá-lo (Jo 19,12), Pilatos intimidou-se perante a argumentação de que se libertasse Jesus não era amigo de César, pois todo aquele que se faz rei, como Jesus, é contra César (Jo 19,12), e acabou por entregar Jesus para ser crucificado (Jo 19,16). Foi uma decisão tomada em nome do «politicamente correto», conforme aconteceu outras vezes na governação de Pilatos.

«O meu reino não é deste mundo» (Jo 18,36), disse Jesus. E logo a seguir explicou a Pilatos: «É como dizes: sou Rei. Para isso nasci e vim ao mundo a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz» (Jo 18, 37). Nesta segunda afirmação Jesus indica um critério do seu reino, o da verdade, que é bem diferente dos critérios mundanos. Um reino de verdade transforma as coisas não por imposição da força exterior, mas a partir de dentro.

No Antigo Testamento o futuro Messias é anunciado, profetizado, sob a figura do Rei justo, descendente de David. É o chamado Messianismo real, prefigurado em David que ficou na história de Israel como o governante que assegurou a paz e a justiça. O Messias faria o mesmo em escala superlativa.

Esta perspetiva real foi muito adulterada pelas visões políticas de cada circunstância. No tempo de Jesus imperava a ideia de Messias como libertador do jugo colonial romano. Por isso Jesus evitou ser aclamado rei pela multidão mais de uma vez e até impôs silêncio aos que o proclamavam Filho de Deus, o chamado segredo messiânico. Mas na entrada em Jerusalém assumiu o messianismo real, com restrições. O jumento como montada era a denúncia do triunfalismo do messianismo político que se afirmava aparatosamente na força dos cavalos e dos carros de guerra. Perante Pilatos, Jesus assumiu que era o Rei dos Judeus, mas corrigiu mais uma vez o messianismo real na sua visão política: «o meu reino não é deste mundo» (Jo 18,36).

Uma segunda vertente do messianismo aparece no profeta Isaías com o Servo de Javé, de Deus, o Servo sofredor, que carrega sobre si os pecados de todo o Povo. A libertação que irá trazer é, antes de mais, interior e será o triunfo da justiça. É o tema da primeira leitura da celebração de hoje. Cito extratos: «Desprezado e repelido pelos homens, homem de dores, acostumado ao sofrimento… Ele suportou as nossas enfermidades e tomou sobre si as nossas dores… Pelas suas chagas fomos curados… Como cordeiro levado ao matadouro, ele não abriu a boca… O justo, meu servo, justificará a muitos e tomará sobre si as suas inquidades. Por isso, Eu lhe darei as multidões como prémio…». Pelo dramatismo do seu conteúdo, esta visão de Isaías é por vezes classificada como o quinto evangelho da Paixão.

A redenção pelo sofrimento aparece também sublinhada na segunda leitura desta celebração: «Apesar de ser Filho, aprendeu a obediência no sofrimento. E, tendo atingido a plenitude, tornou-se, para todos os que lhe obedecem, causa de salvação eterna» (Heb 5,9).

Cristo realiza a convergência das duas vertentes do messianismo: o messianismo real e o messianismo do Servo sofredor.

Foram duas as causas da morte de Jesus: declarar-se Filho de Deus (Jo 19,7), divindade não reconhecida pela autoridade religiosa judaica, e ser apresentado por esta como perigo para o imperador romano por se dizer Rei dos Judeus.

Mais importante do que estas causas para definir o sentido da morte de Jesus é a atitude com que Ele próprio assumiu a sua morte. Tal significado ficou bem claro na instituição da Eucaristia por Jesus na última ceia: «Isto é o meu Corpo entregue por vós… Este cálice é a nova aliança no meu Sangue, derramado por vós…» (Lc 22, 19-20).

Na sua morte, antecipada sacramentalmente na última ceia, Cristo tomou sobre Si todos os pecados e dramas da humanidade. No Calvário surgiu uma nova humanidade, uma humanidade resgatada.

Os critérios de vida desta nova humanidade não são os critérios do mundo, conforme explicou Jesus a Pilatos: «Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos Judeus» (Jo 18, 36). E acrescentou: «…vim ao mundo para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz» (Jo 18, 37).

É este o reinado de Cristo: a verdade. Verdade na relação com Deus pela adoração e verdade na relação com os homens, nossos irmãos, pela caridade fraterna. Como declara o prefácio da missa de Cristo Rei do Universo, no final do ano litúrgico, o reinado de Jesus é um reino de verdade e de vida, de santidade e de graça, de justiça, de amor e de paz.

É este o padrão que deve orientar e reger a nossa vida no relacionamento  interpessoal. A teia das nossas relações seria mais harmoniosa se fosse sempre pautada pela verdade, a justiça, o amor e a paz.

Tal norma de atuação vale também no plano das sociedades e das nações. Se aí reinassem sempre a verdade, a justiça, o amor e a paz, o mundo de hoje seria bem diferente, para melhor, como infelizmente mostra a dramática situação que vivemos agora na Europa com a guerra na Ucrânia.

O reino de Cristo não é deste mundo, mas é para este mundo.

Catedral de Bragança, 15 de abril de 2022

D. António Montes Moreira, Bispo emérito de Bragança-Miranda

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