Regressada de São Tomé e Príncipe, onde esteve um ano em missão com os Leigos para o Desenvolvimento, jovem voluntária conta que a experiência lhe mudou a forma de ver e estar na vida, considerando que o mais importante é ajudar as comunidades locais a serem protagonistas da mudança
Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Regressou recentemente desta missão de longa duração com os Leigos para o Desenvolvimento. Como é que foi dedicar um ano da sua vida a este trabalho voluntário?
As pessoas gostam muito de perguntar como é que foi e se correu tudo bem, e eu respondo sempre que ‘foi um ano inteiro’, tudo acontece num ano. E depois devolvo a pergunta: ‘então e o teu ano, como é que foi?’.
Não, não correu tudo bem, e que bom que foi assim, é assim que se cresce. Mas, foi muito intenso, foi um grande privilégio, um tempo de conversão, de aprender também a viver uma vida mais simples, conhecer uma realidade nova, aprender a cuidar de um mundo que é tão grande que tem realidades e pessoas tão diferentes.
Em São Tomé esteve onde e em que projetos?
Os Leigos têm uma abordagem territorial, instalam-se numa comunidade, e eu estava na cidade de São Tomé, no bairro da Boa Morte, na periferia da cidade…
Que é bastante populoso?
Sim, tem cerca de 7000 pessoas. Os Leigos para o Desenvolvimento têm lá três grandes projetos, além de acompanharem a comunidade no seu dia a dia. Mas, o projeto que eu estava a acompanhar é o projeto âncora dos outros dois, é o Grupo Comunitário da Boa Morte. É um grupo que reúne regularmente – quando eu estava lá era quinzenalmente, mas às vezes é mensalmente, vai mudando -, e o objetivo é que numa mesa-redonda, onde se juntam líderes da comunidade, representantes de várias organizações formais e não formais, várias entidades, todos juntos vamos identificando problemas e procurando construir soluções em conjunto, com os recursos que existem na comunidade.
Pelo que lemos sobre o projeto, esta zona, apesar de ser muito populosa, pobre e com os problemas naturais de ser uma zona periférica da capital, é também muito dinâmica em termos culturais?
Sim, tem muitos grupos culturais, tem o Tchiloli – um grupo muito famoso, é uma manifestação cultural são-tomense muito conhecida lá, mas que também vai sendo conhecida no mundo -, grupos de dança, grupos musicais, muitas manifestações culturais.
O vosso projeto de voluntariado não vai impor, propriamente, propostas de fora, mas integra-se e procura trabalhar com aquilo que as pessoas já vão fazendo?
Exatamente. Eu acho que um dos grandes entraves para o desenvolvimento é o assistencialismo e nós irmos impor a nossa realidade, e aquilo que eu encontrei na proposta dos Leigos para o Desenvolvimento – e por isso é que também me identifiquei – é que nós somos quase como um espelho, no sentido em que vamos ajudar a comunidade a ver aquilo que tem de rico, de valioso, de belo, e aprender a aproveitá-lo, olhar para as suas feridas e aprender a cuidar delas.
Que importância têm esses projetos na vida da população?
O mais poderoso de tudo – mais do que paredes erguidas, ou grandes projetos – é a capacidade de cada pessoa e de cada comunidade sonhar e perceber aquilo que pode ser se se juntarem, se trabalharem em conjunto, perceber que podemos pedir ajuda e ajudar outros. Acho que o mais poderoso de tudo é isso, é as pessoas reconhecerem-se como comunidade, reconhecerem o seu valor, poderem sonhar aquilo que podem ser individualmente e como comunidade.
Este Grupo Comunitário do Bairro da Boa Morte já atua há alguns anos. Já têm noção dos objetivos cumpridos ao longo destes anos?
Desde 2011. Não foi um percurso linear, mas o grande orgulho do Grupo Comunitário tem sido um projeto que tem sido desenvolvido, e que também temos acompanhado, que é o projeto Bairro Limpo.
No Grupo Comunitário surgiu o problema do lixo como um problema que devia ser priorizado, porque é um problema enorme em São Tomé, que não tem uma solução à vista, mas o Grupo Comunitário decidiu ‘aqui, na nossa comunidade, vamos abrir caminho e tentar construir alguma solução, pelo menos para minimizar o problema’. E é um projeto que o Grupo foi desenvolvendo, um modelo comunitário de recolha de resíduos, para não depender de ajudas de fora, da câmara, de ministérios, do governo, mas ser uma coisa autossustentável, dependendo só da comunidade.
Ao todo quantos voluntários é que esses projetos envolvem?
Neste momento estávamos três, na cidade.
Mais as pessoas da comunidade?
Exatamente, as pessoas também são voluntárias, e isso tem os seus desafios.
Isto do voluntariado acaba por ser um luxo, ou um grande teste à nossa generosidade e àquilo em que acreditamos, porque as pessoas sobrevivem dia a dia, e arranjarem tempo para trabalhar pela comunidade, é mesmo porque acreditam, e isso faz com que os projetos sejam sustentáveis e as coisas sejam sinceras.
Esta é uma zona muito pobre. Também dão apoio a esse nível?
Nós não damos coisas. No fundo, acompanhamos estes projetos para ajudar a trazer algum dinamismo à comunidade, para eles próprios conseguirem resolver os seus próprios problemas uns com os outros, pedindo eventualmente ajudas de fora.
O Grupo Comunitário servia também para resolver pequenos problemas: por exemplo, é preciso arranjar a torneira do chafariz onde toda a gente vai buscar água; ou queremos saber o que é que se passa com o Posto Médico, que está em construção há anos e que nunca mais se resolve, e vamos tentar ter uma reunião no Ministério da Saúde e perceber o o que é que está a acontecer. Não resolvemos problemas, mas ajudamos a abrir caminhos.
Ajudam a resolver, e a resposta até pode ser mais duradoura no tempo, dado que é a comunidade que a promove?
Exatamente. Eu acho que o problema do assistencialismo é um entrave, no sentido em que as comunidades sentem que só são capazes se tiverem ajuda de fora, e o que Leigos para o Desenvolvimento procuram é mostrar o contrário, é que a própria comunidade é capaz.
Como é que foi fazer este ano de missão num contexto de pandemia?
Lá as coisas estavam mais suaves do que aqui. O impacto nas missões começou logo em março de 2020, eu ainda estava a fazer a formação. Com o fecho de fronteiras, e o pouco que se sabia ainda sobre o vírus, os Leigos para o Desenvolvimento decidiram fazer regressar os voluntários que estavam em São Tomé e em Angola. Logo aí, as missões ficaram interrompidas, e este acompanhamento ficou um bocadinho ‘coxo’. No meu caso, estava a fazer a formação e ninguém sabia: será que se vai retomar, será que não? Quem é que vai? Isso neste discernimento também pesou, afinal eu estou a investir em formação – que só por si valeu muito -, mas será para quê?
Depois acabei por ir. Eu queria era ir, isto fazia-me todo o sentido. Se calhar, se fosse doente de risco não teria esta coragem, mas não foi, de todo, impedimento para ir. Depois lá, nota-se as dificuldades socioeconómicas da pandemia, mas não existem conceitos como o teletrabalho ou telescola, e o confinamento, para pessoas que vivem dia a dia, é uma coisa que não faz sentido…
Depois, com o pouco acesso a testes… não é que não haja, mas as pessoas não vão fazer, não acreditam muito neste vírus, os números não correspondem ao medo que se faz sentir lá, por isso, não se nota tanto o impacto, mas nota-se nas dificuldades socioeconómicas e na indisponibilidade das pessoas para trabalhar connosco.
Não houve indisponibilidade, mas quando a vida aperta, as pessoas não têm tanto tempo para dar gratuitamente.
O que é que mais a marcou neste ano, se tiver de eleger uma coisa, um aspeto?
Eu cheguei há um mês e meio, por isso, acho que ainda estou a processar tudo. É um presente que vou desembrulhando ao longo da vida. Mas, sem dúvida que o que mais me marcou foram as pessoas, e o que estes encontros nos transformam.
Conheci pessoas extraordinárias, com histórias extraordinárias, e acho que foi um tempo de grande conversão, de aprender a ser mais simples, a ligar-me ao essencial, de aprender a levar uma vida ‘mais leve, leve’, como se diz em São Tomé. E ‘leve, leve’, não no sentido de me encostar, mas de saborear aquilo que é gratuito e não reger a minha vida por princípios como a produtividade, a eficácia, a rapidez, que acabam por não ser os critérios últimos da nossa vida…
E acabam por desumanizar, muitas vezes…
Exatamente. E acho que aprendi também a saborear aquilo que é gratuito, os encontros, as relações, a natureza maravilhosa que se pode contemplar em São Tomé.
Como é que o voluntariado entrou na sua vida?
Foi muito naturalmente, talvez. Eu fui sempre participando, a primeira vez que fiz qualquer coisa de voluntariado foi no 9º ano, mas depois fui participando em várias ações. A mais significativa foi fazer parte da associação Gambuzinos, também ligada à Companhia de Jesus, que promove encontros entre crianças e jovens de realidades muito diferentes, através de campos de férias e atividades ao longo do ano. A lógica acaba por ser a mesma que encontrei nos Leigos para o Desenvolvimento, este encontro com realidades diferentes que nos transformam. Todos ganham quando estas realidades diferentes se encontram.
Acho que foi muito natural, no sentido em que me fui sentindo muito privilegiada por aquilo que fui recebendo ao longo da vida, e que não fiz nada para merecer. E isso responsabiliza-me muito diante de um mundo que precisa de ser cuidado, diante de realidades que estão feridas, diante de pessoas que precisam de ser valorizadas, amadas, por isso, isso faz com que eu queira sair de mim e ir ao encontro dos outros.
Partir para longe era uma ambição e um sonho? Ou nunca tinha pensado nisso a sério?
Não. Eu ia pensando, e já conhecia os Leigos para o Desenvolvimento há muitos anos, por isso ia pensando…
As pessoas às vezes querem ir para fora por esta ideia muito romântica e exótica dos outros países… claro que isso é espetacular, mas acho que foi a realidade diferente, o sair da minha zona de conforto, o ir conhecer este mundo que somos chamados a cuidar. Conhecer outras realidades, para também abrir horizontes e poder conhecer melhor este mundo.
Já disse que chegou há pouco tempo, mas a ideia de um dia voltar a fazer uma missão de longa duração ficou?
Não sei. Acho que ainda estou a processar tudo isto, ainda tenho muito para digerir…
Mas, para quem esteja a acordar para esta realidade: é uma experiência que muda substancialmente a forma de olhar o mundo?
Sem dúvida. Não tenho como passar ao lado, só se fosse fechada e indisponível. Mas, quando nos lançamos para isto, à partida vamos dispostos a transformar-nos, e é inevitável, são realidades diferentes, são pessoas diferentes, que vivem de forma diferente. Nós próprios estamos dispostos a uma vida diferente, mais simples. Claro que nunca vamos viver como as pessoas que nos recebem, mas procuramos assemelhar o nosso estilo de vida ao deles, vivemos em comunidade, a vida de oração também tem outra intensidade, e por isso, tudo isto nos transforma, é muito forte.
A dimensão da fé é importante neste tipo de missão e de voluntariado?
Sim, não somos só voluntários, somos voluntários missionários. Logo aí, é porque nos sabemos enviadas por alguém, e porque queremos dar testemunho da alegria e da esperança cristã, de um amor que nos acolhe sempre, mas que nos sonha sempre melhor. Isso é o pano de fundo. Depois também a força que vamos precisando, a coragem e o ânimo que vão sendo necessários, não vêm de nós, não depende só da nossa boa vontade, do nosso voluntarismo…
No dia a dia isso faz a diferença?
Claro. Porque são tantos os imprevistos, as exigências. Nós não controlamos nada, aquilo que escrevemos na agenda, nada disso acontece, acontecem outras coisas, mas precisamos de ir à fonte, de ir ao sentido, àquilo que nos move, para podermos continuar a ser fiéis àquilo para que fomos, Àquele por quem fomos. A força e o ânimo não podiam vir de nós.
Com a pandemia começámos a perceber e a valorizar mais os projetos de voluntariado, o impacto que têm na sociedade e na capacidade de resposta à crise, que já é muito severa, mas que provavelmente ainda se vai agravar. Por esta experiência de voluntariado, fica claro que uma resposta a uma crise como a da Covid-19 implica esta capacidade de sair de si e dar ao outro de forma voluntária?
Sim. Não dá para todos sermos voluntários a tempo inteiro, mas sem dúvida…
Eu acho que não merecemos a maior parte das coisas que temos, e se não nos dispomos a ser sensíveis ao outro, a sair de nós, a dar de graça aquilo que recebemos de graça, o mundo fica muito mais pobre e ficamos mais isolados uns dos outros. Era isso que eu dizia também sobre o desenvolvimento, só faz sentido se nos envolvermos todos. Nós dizemos isso muitas vezes: o desenvolvimento é o envolvimento de todos, e acho que para superar crise, isto é muito gritante.
Estas missões de longa duração têm sempre uma preparação prévia?
De quase um ano. Um ano letivo.
Faz diferença para quem vai?
Sim, porque no caso dos Leigos a formação é sobretudo um processo de discernimento, em que vamos conhecendo a proposta dos Leigos, mas também nos vamos conhecendo melhor a nós próprios, para no final podermos tomar a decisão o mais livre possível. E a melhor decisão pode ser dizer ‘não, o meu caminho não passa por ir em missão com Leigos, mas passa por outra coisa qualquer’. Ou passa por ir em missão com os Leigos. Nó vamos notando como a formação nos foi preparando, quando estamos no terreno vamos percebendo isso.
É importante esse testemunho, porque estão a decorrer as sessões de preparação para o próximo ano, e ainda é possível haver inscrições.
Sim, as sessões já começaram. Às vezes há muita pressa para ir: ‘eu quero ir em missão, mas é tanto tempo de formação, que chatice, não tenho tempo para isso’. Mas, de facto, se não houver este tempo, fica difícil…
Neste Dia Internacional do Voluntariado, quer deixar alguma mensagem a quem é voluntário, e a quem nunca foi, mas pode vir a ser?
Força, coragem! Acho que o voluntariado nos põe no nosso lugar, neste sentido em que nos apercebemos do quanto recebemos gratuitamente, e quanto não somos merecedores da maior parte das coisas que temos na nossa vida. Por outro lado, vem pôr em causa aquilo em que acreditamos. Nós só fazemos gratuitamente aquilo em que acreditamos. Deixem-se questionar, e força, ânimo e coragem!