A Santa Sé, não arrecada qualquer Euro, porque nem sequer administra o dinheiro relativo a uma causa de beatificação ou canonização, explica o Cardeal Saraiva Martins O Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos preside ontem, em Guimarães, às comemorações do primeiro centenário das Festas Gualterianas. Na véspera das festividades, o Cardeal José Saraiva Martins elogiou a Irmandade organizadora e, em relação a novas beatificações e canonizações “minhotas”, disse ao Diário do Minho que os respectivos processos se encontram «atrasados». O purpurado garantiu que «estas causas não estão esquecidas» e justificou o facto com o volume de trabalho do organismo do Vaticano. «Iniciamos o estudo dos processos por ordem de entrada na Congregação », explicou o Cardal Saraiva Martins, que também defendeu a ideia de que a prioridade dada às causas não está relacionada com o factor económico nem com interesses de outra ordem. Diário do Minho (DM) – Como encara as comemorações do primeiro centenário das Festas Gualterianas? D. José Saraiva Martins (JSM) – Trata-se de uma data muito importante, sobretudo para a cidade de Guimarães. É uma efeméride extraordinária e há que realçar o facto de existir uma Irmandade que perdura há um século. Esta irmandade continua a demonstrar uma grande vitalidade, porque se revê em São Gualter. Na minha perspectiva, prossegue a transmissão aos homens de hoje a mensagem do Santo franciscano, que está impregnada de humildade e simplicidade, de retorno ao Evangelho. São Gualter anunciou e pregou a Boa Nova nestas terras do Minho com toda a simplicidade franciscana. Também o Homem do nosso tempo precisa de recordar- se que é na simplicidade e na normalidade do dia-a-dia que está a sua felicidade. Esta não se encontra em acontecimentos extraordinários ou imaginários. Nesse sentido, os cristãos acreditam que os valores evangélicos são os valores autenticamente humanos. Ao invés, estes são genuinamente cristãos. Na sua simplicidade, São Gualter viveu esta equação, entre o humano e o cristão. Foi um frade simples e missionário, e, enviado por São Francisco de Assis, no início do século XIII, usou uma linguagem acessível. Ao longo dos seus cem anos de existência, a Irmandade de São Gualter tem sido substancialmente fiel a esta mensagem. Tem seguido a orientação da mensagem do Santo na qual se inspira. DM – São Gualter é apenas um dos processos de canonização relativo a personalidades do Minho que chegou ao fim. Em que fase se encontram os processos do Padre Abílio Correia, Frei Bernardo de Vasconcelos e de D. António Barroso? JSM – Estes processos encontram-se um pouco atrasados. Como português, desejaria que fossem beatificados o quanto antes… Não só estes, mas também outras figuras extraordinárias do nosso país, tal como o Padre Américo e o Padre Cruz, entre outros. São modelos de santidade actuais, mas é preciso ter em conta que a Congregação para as Causas dos Santos tem um trabalho enorme, deparando-se com mais de 2.200 causas… além das 400 que já estão prontas para serem discutidas e examinadas pelos órgãos colegiais da Congregação. Por isso, não é de estranhar que as causas não sejam resolvidas de forma célere. Iniciamos o estudo dos processos por ordem de entrada na Congregação. É um dever e uma questão de justiça: se uma causa entrou primeiro tem o direito de ser analisada em primeiro lugar. Estas causas não estão esquecidas, é necessário, porém, dar tempo ao tempo. DM – Isso quer dizer que a Congregação não aborda os processos de forma política, consoante determinados “interesses”? JSM – É evidente que não! A única política é a [política] da justiça: quem chega primeiro é atendido em primeiro lugar. DM – Mas, existem processos morosos… JSM – … mais ou menos simples, e mais ou menos complicados. Depende de cada causa. DM – Uma dessas causas diz respeito ao Beato Nuno de Santa Maria (D. Nuno Álvares Pereira), que foi beatificado em 1918, pelo Papa Bento XV. JSM – Trata-se de um processo histórico, que não está esquecido. Foi nomeada uma comissão no Patriarcado de Lisboa para examinar a continuidade do culto relativo ao Beato ao longo dos séculos. Trata-se de um aspecto absolutamente necessário para a canonização de D. Nuno Álvares Pereira. Oxalá que chegue ao fim o mais rápido possível. Sei que existe uma grande expectativa por parte dos portugueses de ver elevado à honra dos altares o Beato Nuno, uma figura simpática e extraordinária. Não há dúvida que estamos perante um modelo de santidade. DM – E a expectativa criada em relação à data da sua canonização (2006)? JSM – Ninguém pode fazer esse tipo de cálculos, porque depende da forma e do tempo necessário para se avançar com uma causa. Os historiadores da comissão responsável têm de realizar uma série de estudos para poderem dar uma resposta válida. Depois, tem que existir um milagre para se proceder a uma canonização e esse [milagre] tem que ser estudado por médicos e teólogos e, finalmente, pela “Ordinária” da Congregação, ou seja, o nosso “parlamento”. Esta é constituído por 30 cardeais, arcebispos e bispos. Como se vê, não é um processo simples. Tem que passar por todas estas fases e não se pode “queimar etapas”… leva muito tempo. Mas o mais importante é que a causa não esteja parada. «Santa Sé não administra o dinheiro» DM – A Congregação para as Causas dos Santos parece ter muito trabalho, não é? JSM – As pessoas não fazem ideia do trabalho da Congregação. Costumo dizer, em tom de brincadeira, que a Congregação nunca fará greve por causa do trabalho. Tenho a certeza de que se trata de uma das Congregações da Santa Sé com mais trabalho. A sua estrutura é constituída por 30 pessoas. Precisaríamos do dobro do pessoal para podermos acudir a todas as solicitações. Além do pessoal fixo, a Congregação conta com 72 consultores – teólogo, historiadores e juristas – e 70 médicos especializados nas diversas áreas da medicina. São estes que estudam as curas consideradas milagrosas. Trabalhamos num ritmo aceleradíssimo, mas, ao mesmo tempo, muito sério e estritamente científico. Como Igreja, interessa-nos apenas e só a verdade e, por isso, tentamos averiguar se uma cura milagrosa tem ou não uma explicação natural à luz da ciência médica actual. Muitos médicos chegam a negar os milagres, dizendo que existe uma explicação científica para o fenómeno. DM – Existe a ideia de que com o novo Papa o trabalho da Congregação diminuiu… JSM – Isso não corresponde à verdade. Como disse, temos na Congregação mais de duas mil causas e, de forma regular, chegam novas solicitações. O ritmo de trabalho é igual e não poderia ser diferente. DM – Muitos pensam que o número elevado de beatificações e canonizações serviu para fortalecer as contas do Vaticano. Porém, quando se soube recentemente o real valor de um processo (14 mil euros), essa ideia caiu por terra… JSM – A Congregação para as Causas dos Santos, ou seja, a Santa Sé, não arrecada qualquer euro, porque nem sequer administra o dinheiro relativo a uma causa de beatificação ou canonização. Quem gere esse dinheiro é o postulador da causa. Por exemplo, quando se tem que pagar aos médicos – e todo o trabalho tem de ser remunerado – a Congregação é uma mera intermediária, que nem sequer vê o dinheiro. No meu livro “Como se faz um Santo” (esgotou-se antes de ser apresentado ao público) explico o processo de forma rigorosa. Esta questão é um mito sem qualquer fundamento. Pontificado da reconciliação e do ecumenismo DM — Que balanço faz do pontificado de Bento XVI? JSM – Penso que está a ser extremamente positivo. Deus atribui à sua Igreja o Papa que mais precisa num determinado período da história. Bento XVI é o Papa que a Igreja actual necessita. É um homem da cultura e do pensamento, mas também possui uma grande sensibilidade pastoral. DM – Desde o início deste pontificado, assistiu-se a uma aproximação à Igreja Ortodoxa e um reatamento das relações com os seguidores de Monsenhor Lefébvre [Arcebispo cismático que fundou a Fraternidade São Pio X]. Essas novidades surpreendentes são positivas? JSM – São muito positivas. O ecumenismo apresenta- se como um dos maiores desafios para a Igreja Católica e o mundo de hoje mostra-se escandalizado com a divisão dos cristãos, que dizem acreditar no Evangelho da Unidade. É preciso prosseguir o esforço de tornar reais as palavras de Jesus Cristo «Que todos sejam um». Não é fácil, por causa dos preconceitos e heranças históricas, mas um cristianismo unido também pode ser um factor de estabilidade social.