“Vocês são assassinos”

Josephine, uma cristã, mãe de 4 filhos, acusa rebeldes do M23 em Bukavu

Foto: MONUSCO/Sylvain Liechti.

“Não sabemos mais o que fazer. Dormimos e não sabemos se vamos acordar. Não comemos, não nos vestimos, não viajamos, não vivemos, morremos!” Josephine, uma cristã e mãe de quatro filhos que vende sumos de fruta em garrafas de plástico que recolhe nas ruas, está desalentada. Ela vive em Bukavu, a capital da província do Kivu Sul, no leste da República Democrática do Congo, ocupada desde Fevereiro pelos rebeldes do grupo M23. O testemunho desta mulher é um grito de revolta sobre uma das guerras esquecidas no mundo na actualidade…

“Sou mãe de quatro filhos que procuro mandar para a escola. Recolho garrafas de plástico vazias e, depois de lavá-las, encho-as com água ou sumo de fruta feito com uma preparação em pó, coloco-as no congelador e depois vendo-as por 200 francos congoleses (menos de 10 cêntimos de euro).” É assim que começa o testemunho de Josephine, que vive em Bukavu, a cidade capital da província do Kivu Sul, ocupada desde Fevereiro deste ano pelas forças do movimento rebelde M23, apoiado pelo vizinho Ruanda. As palavras desta mulher, recolhidas pela Agência Fides, são um poderoso grito de alerta para a situação trágica no plano humanitário que se vive na região e que tem sido denunciada também pela Fundação AIS. “Em Bukavu, desde o início da guerra do M23, a vida tornou-se muito difícil: muitos perderam os seus empregos, muitos já não fazem comércio devido aos saques sistemáticos dos armazéns onde guardávamos as nossas mercadorias. Aqueles que nos trouxeram a guerra saquearam à sua maneira; alguns moradores, vendo que os soldados fugiram e a polícia se foi embora, saquearam os seus concidadãos; também as pessoas que escaparam da prisão saqueiam.”

“Violações, mesmo no centro da cidade…”

Josephine descreve como o dia-a-dia das populações se alterou com a tomada da cidade e da região pelas forças do grupo rebelde M23. Ela fala mesmo em guerra. “Por causa da guerra, já não podemos viajar para os mercados vizinhos. Aqueles que ainda tentam abastecer-se no mercado de Mudaka têm de pagar elevados impostos na rua. Por exemplo, se fizermos compras com 30.000 francos (equivalente a 9 euros), somos obrigados a pagar 20 mil francos em impostos”, diz esta mulher que vive angustiada, como as outras mães, com a violência que está presente no quotidiano. “Somos bloqueadas, mantidas reféns. Começamos a registar violações, mesmo no centro da cidade, embora os pais tentem esconder o crime para que a filha não perca o respeito da população”, diz, acrescentando que agora, porque falta o dinheiro, tudo é mais difícil, até garantir que os filhos vão à escola. “Eles tentam ir à escola, mas são expulsos todos os dias. O pai deles era funcionário público e, como outros funcionários públicos, não trabalha. Não temos escolha a não ser desenvencilhar-nos”, assegura.

“Os assassinatos são incontáveis…”

O testemunho de Josephine é poderoso, é a confissão do desalento de quem vê ruir tudo à sua volta, de quem está em sofrimento e já quase sem forças para resistir. “Nós, mulheres, estamos mortas, embora ainda estejamos a respirar. Privadas até do pouco que tínhamos, somos deixadas em sofrimento e já não conseguimos sustentar as nossas famílias. No entanto, éramos o pilar da família. Já não sabemos o que fazer. Dormimos e não sabemos se vamos acordar. Não comemos, não nos vestimos, não viajamos, não vivemos, morremos!” Josephine não se limitou a descrever a situação em que se encontra a população nesta região leste da República Democrática do Congo, que vive uma das guerras esquecidas no mundo. Ela também acusa a comunidade internacional de ser complacente, de ser cúmplice das atrocidades que são cometidas nesta região e cita até o Papa Francisco que pediu o fim do roubo sistemático das riquezas que se escondem no subsolo deste e de tantos e tantos países no continente africano. E acusa directamente também os rebeldes do grupo M23, apoiado pelo Ruanda, classificando-os de serem assassinos e saqueadores. “Somos vítimas de acordos que nem sequer conhecemos”, diz Josephine. “Eu pediria ao nosso Governo nacional para nos ajudar, antes de mais, a trazer a paz ao leste do país, comprometendo-nos a todos os níveis, porque os assassinatos são incontáveis. Com paz, tudo se torna fácil; sem paz, nada é possível. Ao M23, eu diria: quem vem libertar uma pessoa, não a mata! O libertador procura a paz as pessoas. Jesus deu a Sua vida, Ele libertou-nos. Vocês são assassinos, saqueadores e extorsionários. Dizei àqueles que vos enviaram que nos deixem em paz.”

“Criminosos de colarinho branco…”

No testemunho, recolhido pela Fides, Josephine lança um apelo para o fim do saque das riquezas minerais que há neste país de África e que têm condenado pela sucessão de guerras e de violência, o povo ao maior sofrimento. “À comunidade internacional, repito as palavras do Papa Francisco: ‘Tirem as mãos de África!’. Vocês são os inimigos número um da República Democrática do Congo: não vêm para o nosso bem, mas para roubar os nossos minerais. Vocês são os que apoiam o M23. Vocês apresentam-se como ricos, mas nós, Congoleses, somos os ricos. Vocês enganam-nos dizendo que estão a ajudar-nos, mas são criminosos de colarinho branco. Vocês não estão interessados ​​na vida dos Congoleses, mas no subsolo do Congo. Deixem-nos em paz: fiquem nas vossas casas e nós ficaremos nas nossas. Deus deu-nos a nossa riqueza: se a querem, venham e peçam por meios legais”, diz Josephine, uma cristã, mãe de quatro filhos, que procura sobreviver todos os dias, recolhendo nas ruas garrafas de plástico vazias. “Agora eu saio com as minhas garrafas; amanhã vou vendê-las por alguns cêntimos… e a vida continua”, conclui.

Denúncias da Fundação AIS

A situação descrita por Josephine, que está em Bukavu, ajuda a compreender o que se passa em toda a região e também na província do Kivu Norte, igualmente nas mãos do grupo rebelde M23 e de outras organizações terroristas. Em Fevereiro deste ano, a Fundação AIS denunciava o massacre de pelo menos 70 pessoas, cujos corpos foram encontrados numa igreja protestante numa aldeia em Lubero, em resultado de um ataque que terá sido da responsabilidade de militantes do grupo islâmico ‘Forças Democráticas Aliadas’. Muitos dos corpos, essencialmente de mulheres, crianças e idosos, estavam amarrados e alguns decapitados. As notícias da Fundação AIS sobre este país tiveram eco e recentemente, em Abril, a Assembleia Municipal de Lisboa aprovou, por unanimidade, uma resolução condenando “os massacres, nomeadamente de cristãos”, na República Democrática do Congo, citando para isso as informações publicadas pela Ajuda à Igreja que Sofre em Portugal. No documento, dá-se conta do ambiente de “guerra civil prolongada” em vastas regiões, muito ricas em minérios, nomeadamente ouro, estanho, coltan, cobre e cobalto, situadas no leste do país e que estão controladas por grupos armados, nomeadamente as Forças Democráticas Aliadas [FDA]. A resolução aprovada a 18 de Março pelos deputados municipais de Lisboa refere que as FDA são uma “organização terrorista originária do Uganda, [que] desenvolve também a sua acção, combatendo não apenas o M23 e as forças armadas congolesas, mas tendo como alvo preferencial os Cristãos”.

Paulo Aido | www.fundacao-ais.pt

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

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