António Salvado Morgado, Diocese da Guarda
Foi na madrugada do dia 11 de Março de 2004. Num espaço de tempo de poucos minutos, atentados terroristas em várias estações dos comboios suburbanos de Madrid tiravam a vida a 193 pessoas e feriram mais de 2.000, números que poderiam ter subido se as forças de segurança não tivessem descoberto mais três engenhos que estariam preparados para serem detonados quando chegassem aos locais os primeiros socorros às vítimas.
Poucos dias passados, o Conselho Europeu instituiu o 11 de Março como “Dia Europeu das Vítimas do Terrorismo”. É, por conseguinte, desde Março de 2005 que a União Europeia lembra – e convida todos a lembrar – as vítimas do terrorismo. Lembrando as vítimas e famílias enlutadas, a União Europeia incita a avivar as consciências de todos e dos governos para a necessidade de combater este terrível flagelo da sociedade contemporânea e promover a defesa dos direitos humanos.
Todos vamos entendendo, no nosso íntimo, o que é o terrorismo. Ou o que julgamos ser o terrorismo. Até somos tentados a pensá-lo exclusivamente à luz dos últimos grandes atentados terroristas. Contudo, todos sabemos que o terrorismo está muito para além dos actos de dimensão mediática e que não há entendimento universal sobre o que seja o terrorismo. A perspectiva ideológica vai ofuscando a verdade dos factos e, também aqui, o relativismo vai-se instalando no ar que respiramos.
O terrorismo não é só um fenómeno das nossas sociedades. Lembremos a França, na época da Revolução Francesa, nos finais do século XVIII. Foi então que a palavra “terrorismo” terá começado a circular para caracterizar a doutrina defendida pelos partidários do “Período do Terror” (1793-1794) que tinha à frente Maximiliano Francisco de Robespierre (1758-1794). Nesta altura muitos milhares de pessoas encontraram a morte no cadafalso da guilhotina. O terrorismo seria, à altura, uma espécie de doutrina política, situação que contrasta com o terrorismo táctico dos nossos tempos.
Sem contarmos com as eras geológicas dos processos de formação e transformação da Terra, nós, humanos, quando pensamos o tempo por nós vivido com as suas disposições típicas, somos tentados a encontrar nomes para as várias épocas, e isto independentemente das clássicas divisões da História Humana: Pré-História, História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. Assim falamos, por exemplo, da “Era dos mártires”, da “Era das Catedrais”, da “Era das Cruzadas”, da “Era das Descobertas”, da “Era da Razão” ou, mais recentemente, mas já do século passado, da “Era da Guerra Fria”.
E à nossa época, a era em que vivemos, como havemos de a chamar? Dada a complexidade dos tempos, não têm faltado denominações. Vivemos em tempos incertos, dizem uns, não sem razão. É a “Era da incerteza”. Vivemos tempos em que povos outrora colonizados incendeiam, intolerantemente, os caminhos de compreensão histórica. É a “Era da Vingança”, dizem outros. Vivemos num mundo em que parece ter-se perdido o valor da verdade. É a “Era da pós-verdade”, diz-se, ou foi-se dizendo por aí. Vivemos numa época em que não se perdeu só o sentido da verdade, como se perdeu também o sentido da vida. Vivemos numa “Era de niilismo” generalizado, dizem outros mais subtilmente. Vivemos numa época que parece ter perdido o equilíbrio da lucidez e do bom senso. Encontramo-nos na “Era da insensatez”, diz-se também. Vivemos numa época em que o Cristianismo perdeu a energia que alimentava vidas e culturas, acentuam outros. A nossa época é, pois, uma “Era pós-cristã”, como se lê por aí. Vivemos numa fase da História em que grosseiros fundamentalismos religiosos e políticos se cruzam com meios tecnológicos, simples ou sofisticados, que se encontram à disposição de tácticas de políticas de terror. Encontramo-nos numa “Era do Terrorismo”, como já tenho encontrado.
Embora não se encontre uma ideia de terrorismo aceite pela generalidade das correntes de opinião política, aceitemos que o terrorismo é a prática da disseminação do terror por meio de acções violentas a que damos o nome de atentados terroristas, sejam elas levadas a efeito por organizações políticas específicas ou por indivíduos isolados, a que se vai dando o nome de «lobos solitários» inspirados em organizações terroristas ou a elas directamente ligados. Sejam estas acções violentas de efeito espectacular que enchem os meios de comunicação social e que assombram o mundo, como os atentados de 11 de Setembro de 2001 nos EUA, ou levadas a efeito em zonas ignoradas do globo e que vão ficando mediaticamente esquecidas, como esquecidas ficam as suas vítimas. Sejam, por exemplo, as vítimas de Cabo Delgado no norte de Moçambique, onde atentados se vão sucedendo desde há vários anos e de que rarissimamente ouvimos falar.
Todos sabemos que, para além das mortes, os efeitos destes actos – medo, terror e pânico – ultrapassam em muito o campo das vítimas imediatas. Alargam-se, psicologicamente, à população de uma região, de um país, de muitos países. E isto sem esquecermos as vítimas dos populismos e do terrorismo ideológico que, se não mata fisicamente, destrói a lucidez de espírito e alimenta a cegueira.
Às acções devastadoras de agressão cruel levadas a efeito por um Estado que invade, com carros de combate, armas e mísseis, outro Estado, e que este, legitimamente, se defende, chamamos guerra. Com ela, atentados terroristas em série, espalha-se a destruição, a morte e o terror por todo um país e o medo alastra a muitos outros países, a um continente e, de algum modo, a todos os continentes. E o mundo parece suspenso nas mãos da loucura dos homens. De alguns homens.
Infelizmente é verdade que há vítimas do terror de guerras que ficam longe da nossa porta, noutros continentes, de que raramente se fala e que importa recordar também neste dia. Mas, dada a dimensão que tomou, por mais que se queira evitar, é impossível, hoje, neste dia 11 de Março de 2023, não pensar, não falar, não lembrar as vítimas do terror da guerra na Europa, do terrorismo de Estado do imperialismo russo contra a Ucrânia, seu país vizinho.
E as vítimas são muitas. São tantas! Vítimas que são os mortos – tantos! -, vítimas que são os feridos – tantos! -, vítimas que são os exilados – tantos! -, vítimas que são os refugiados – tantos! -, vítimas que são os desalojados – tantos! -, vítimas que são os idosos – tantos! -, vítimas que são as crianças – tantas! -, vítimas que são as famílias desmembradas – tantas! -, Vítimas tantas e tanta dor e sofrimento semeados nos campos, nas aldeias, nas cidades! Vítimas tantas que já será moralmente lícito falar de um genocídio russo na Ucrânia.
Tantas vítimas a merecerem a nossa homenagem neste “Dia Europeu das Vítimas do Terrorismo”. É um dever da memória e da nossa alma, se é que ainda não deixámos morrer nela a chama da Fraternidade, da Paz, da Dignidade e do Bem.
Para protegermos as gerações presentes e futuras, importa honrar aqueles que foram sendo apanhados pelas armas do terror quando se encontravam, serenamente, em paz e com esperança, a percorrer os caminhos promissores da Vida.
Guarda, 8 de Março de 2023
António Salvado Morgado