Vieira Global

José Eduardo Franco, investigador

O Padre António Vieira tem sido, nas últimas décadas, alvo de um renovado interesse da parte de estudiosos de várias áreas disciplinares, que vêm engrossando, em Portugal, no Brasil e em universidades de outros países onde se ensina e investiga a língua portuguesa, aquilo que podemos designar o pequeno exército de especialistas vieirinos.

A realização, no espaço de uma década, de dois centenários de Vieira muito comemorados, os 300 anos da morte em 1997 e os 400 anos do nascimento em 2008, tiraram definitivamente este autor de um certa secundarização de que tinha sido objeto durante os últimos séculos da sua receção, vítima de polémicas e leituras ideologicamente condicionadas.

Também o facto de nunca se ter publicado a obra de Vieira na sua totalidade e a falta de oferta editorial da grande parte dos seus escritos têm dificultado os estudos vieirinos em perspectiva mais abrangente e de modo a motivar análises de conjunto fundadas no seu legado escrito.

Apesar desta limitação que projetos recentes estão a tentar colmatar, diversos estudos inovadores entretanto realizados têm sido de grande importância para a recuperação e valorização do património imaterial que constitui a obra de Viera para além da muito revisitada e estudada parenética. Na verdade, Vieira ficou mais conhecido e foi acima de tudo celebrado pela sua oratória, tanto nas retumbantes pregações que fez nas tribunas barrocas do seu tempo, como no legado escrito que deixou através dos seus sermões escritos. Tendo elevado através do verbo falado e escrito a língua portuguesa a um aperfeiçoamento nunca visto no plano da prosa, de tal modo que muitos escritores modernos e contemporâneos lhe reconheceram mérito inigualável de afinamento da língua e de inspiração para a escrita em português, não são menos relevantes  as suas preocupações e intervenções em favor da reforma da sociedade, da política e da economia portuguesa, começando pela mentalidade vigente obstrutiva de progressos novos, necessários e urgentes.

Os diagnósticos críticos que operou e as propostas reformistas que apresentou, apesar de não terem encontrado no seu tempo grande aceitação nem resultados, mantiveram-se válidas nos séculos seguintes, vindo a ser lembradas por figuras como D. Luís da Cunha no século XVIII e concretizadas por políticos como o Marquês de Pombal, apesar de não lhe reconhecer a paternidade devido ao preconceito antijesuítico que passou a guiar toda a política pombalina desde o Terramoto de Lisboa de 1755.

Vieira afrontou criticamente a sociedade do tempo com uma ousadia pouco vulgar. Pôs em causa uma sociedade de privilégios e de regalias hereditárias, defendendo que a “verdadeira fidalguia está na ação”; considerou pouco cristã uma sociedade que segregava e diferenciava os cristãos-novos dos cristão-velhos e apoiava um tribunal religioso, ou seja, a Inquisição que perseguia e matava; advogou o regresso dos hebreus expulsos, elite que tinha contribuído para erguer o Portugal universal dos descobrimentos; imaginou e anunciou um mundo novo a que chamou Quinto Império, onde caberiam judeus, índios e outros povos, raças e culturas com uma visão integradora que antecipa ideários do ecumenismo religioso contemporâneo; criticou os excessos dos colonos brancos no uso da mão de obra esclavagista no Brasil e apresentou propostas de legislação que minorasse esta chaga do projeto colonial português, defendendo a dignidade os escravos como seres humanos de pleno direito.

Vieira foi um missionário, um crítico social, um homem de diálogo enquanto diplomata, um reformista político e um anunciador de uma utopia de um mundo melhor como solução global para os problemas graves do mundo do seu tempo. No entanto, como profeta de um mundo melhor, projetando transformações importantes na humanidade futura, não deixou de ter os pés assentes na terra e revelar-se um grande estratega político e social. Os seus aparentes delírios utópicos, em nome dos quais acusado e incompreendido, como bem aponto Eduardo Lourenço tinham mais um sentido de reforço, de “sobrecompensação psicológica” do ânimo coletivo do povo português do que seriam sonhos distraídos da realidade.

No terreno movediço da militância política onde se quis empenhar ao serviço do seu rei e do seu reino revelou visão, mérito e posições corajosas, mas também aí experimentou o drama das contradições e multiplicou os inimigos que lhe seria implacáveis.

Vieira revelou-se, ao longo da sua dedicação ao serviço de Portugal e do Rei Restaurador D. João IV, um homem com grande sentido de realismo político. Um das suas grandes preocupações abundantemente expressas nos seus escritos era precisamente a angariação e multiplicação de recursos materiais para garantir o sucesso do independência de Portugal reconquistada a Espanha, assim como a recuperação e afirmação do seu  império colonial contra as ambições imperialistas das novas potências europeias emergentes, particularmente a holandesa.

As intervenções, as propostas, os projetos e pareceres do Pregador de D. João IV, o mais famoso jesuíta português do século XVII a quem Fernando Pessoa chamou de “Imperador da Língua Portuguesa”, têm implicações e conteúdo políticos e económicos que merecem estudo no contexto do Portugal, do Brasil e do mundo do seu tempo.

Este ano, o leitor amante da cultura, da criação literária, da ciência e da beleza começará a  dispor, finalmente, da obra toda de um dos maiores e mais proficientes oradores e escritores da Língua Portuguesa de todos os tempos. O Círculo de Leitores e a Universidade de Lisboa estão a disponibilizar para o grande púbico os escritos totais daquele que inspirou Fernando Pessoa a considerar que “a minha pátria é a língua portuguesa”.

José Eduardo Franco

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