Viana: Demolhar

Não estou certo que essa escuridão passará. Já não há folhas que sobreviviam, coladas ao chão, rasgadas. Só as cãs secas dos pinheiros. Consumi-las-ão o fogo.
Consegues ver a casa grávida com os regressos?
É o sétimo dia.
O que nascerá de ti? O que faremos às mãos e aos joelhos?
As águas são, afinal, tão perturbadas.
Para Alba abrasivo seria um tempo sem bocanhos, sem existências remenecentemente tristes, naquele desvio de olhar para as janelas embaciadas,
não levantes a mesa
o curso do rio: uma contemplação de fronteira.

 

Furtei-me ao calor. Fui caminhar ao entardecer. Passeio com um desenho de infância pela mão. Passo por uma casa desabitada, de onde partira o filho com a sua irmã, depois da morte da mãe. Um tempo raro. O cadeado já não existe, e entram animais, tal como as silvas. O pequeno tanque encostado à tela de ferro, demora a formação de musgo. O campo, onde cairá um avião de brincar, precipitado na manhã de natal, é um bosque interior. Ao fundo da estrada há um acampamento rente à terra. Talvez uma fotografia baste para salvar o dia; uma visão noturna ou um sonho para demolhar a vida,
Como é que o fazes?
a garganta seca, o estâmago vazio, a luta e o fragor de uma planície ampla dentro de um poço.

 

Reconheço que algo está adormecido,
ensanguenta as mãos de sal
e atiro-o para dentro de água. Procuro, apenas, que seja um lugar transparente. Abro o depósito e deixo-o, corrente, no mesmo lugar onde se afinam as facas,
sente-te segura, pára de chorar
entre o aspergir das lágrimas, a troca desse oceano controlado, o devolver da segurança para não ser devorado,
não tenhas medo, dorme até ao amanhecer
e cuidas desse berço posto no topo das arvores e desse animal encharcado como num único gesto simples.

 

Acordamos quando te ouvimos. A tarde pôs-se quente e isso permite-me não ser apenas cronista de horrores, mesmo que acorde sedenta depois das insônias. Amanhã estas ruas serão grandes depósitos, as varandas estendais da noite que se aproxima, de manchas irresistíveis. Ainda há lugares vagos na rua,
agora os dias vão começar a crescer
e recolhemo-nos com medo de não acompanhar o tempo:
ou ter voz e não poder cantar.
Mastigo, assim, a impureza das imagens cobertas de prata, dos pratos desenhados e limpos, das toalhas guardadas, invertendo o percurso da semente em pão, sacudindo do pescoço o freio da destruição, o crivo de desnorteamento,
suspiro pacientemente como se ardesse
descarrego o braço, a indignação, a chama, a porcelana, a cítara; o orvalho, que a tempestade transformou em granizo espesso,
hei-de proteger e salvar esse abismo
ninguém me rodeia. Sou indefeso.
Foi uma sala durante muito tempo fechada,
adormece-se melhor deitado num estábulo.

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Agência ECCLESIA

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