Viagem pastoral e política

É o nó górdio da conflitualidade internacional. Há muito tempo. Há tempo demais. O choque dos irredentismos cavalga sobre o choque dos negacionismos, de parte a parte. A shoah e a nakhba são palavras proibidas de parte a parte – e com isso se proíbe o reconhecimento da dor profunda do outro. Bento XVI foi a esse sítio de todos os fantasmas, seguindo as pisadas de Paulo VI (1964) e de João Paulo II (2000), e assumindo que o pastoral e o político têm quase sempre fronteiras fluidas. E foi claro – e, por isso, inconveniente – em ambos os terrenos. O que fica para a História são palavras fortes: “Não mais banhos de sangue. Não mais confrontos. Não mais terrorismo. Não mais guerra. Vamos quebrar o círculo vicioso da violência. Construa-se uma paz duradoura. Que seja genuína a reconciliação. Reconheça-se o direito de Israel a existir. Reconheça-se que o povo palestiniano tem direito a uma pátria independente. Que a solução ‘dois Estados’ seja uma realidade. Deixemos que a paz se estenda a estes territórios, trazendo a esperança para as muitas outras regiões afectadas pelo conflito.” Na sua força, são evidentemente palavras incómodas para as dinâmicas de dominação colonial e de potencial extermínio que abundam naquela terra. O Papa não advogou uma reconciliação etérea, mas um programa de reconciliação, que sendo fundado na conversão individual, impõe um programa político concreto. Para o melhor e para o pior, reflectir sobre a morte e a ressurreição naqueles lugares só pode ser sério se não contornar a história de sofrimento dos povos que os habitam e dos que foram impedidos de os habitar. A defesa do reconhecimento do direito dos palestinianos a um Estado é, desse ponto de vista, um posicionamento que deixa o governo de Israel – cuja actual orientação é rigidamente contrária a quaisquer cedências territoriais aos palestinianos – numa posição de crescente isolamento, que a crescente pressão da adminstração Obama poderá acentuar nos próximos tempos. Caminhando na “thin red line” da coerência consigo mesmo, o Papa negou o negacionismo. A sua referência ao holocausto foi inequívoca: recordou Auschwitz, onde “tantos judeus” foram “brutalmente exterminados” por um “regime sem Deus que propagou uma ideologia de anti-semitismo e de ódio.” E selou a memória com um ‘nunca mais’: “Este terrível capítulo da História não deve ser esquecido ou negado. Nunca.” O episódio, triste e crítico, da nomeação do bispo Williamson torna-se agora ainda mais insuportável. E depois, Bento XVI proferiu duas vezes a palavra “vergonha”. Disse-a para falar da divisão entre os cristãos, diante do patriarca greco-ortodoxo de Jerusalém. E fica assim lançado o desafio da unidade essencial, em que Bento XVI inclui todos – seguramente a começar por si próprio e pelos seus mais directos colaboradores em Roma. Porque não faz sentido chamar vergonha a algo que não se repudie quer por palavras quer por actos. E disse-a outra vez para se referir ao muro que Israel constrói para separar colonatos ilegais de aldeias palestinianas: “à medida que passava por ele, rezava por um futuro em que os povos da Terra Santa possam viver juntos em paz e harmonia, sem necessidade de recorrer à segurança e à separação, respeitando e confiando uns nos outros”. Bento XVI não contornou os problemas, afrontou-os e tomou posição perante eles. A obsessão da memória enviesada, a negação do outro ou a sua representação como ameaça, a condenação de gerações inteiras e viverem em campos de refugiados (como em Aida, em Belém, que o Papa visitou) – tudo foi trazido por Bento XVI para o centro da sua peregrinação. O Papa quis falar ao coração de cada um e apelar à conversão de todos. Mas o Papa mostrou que sabe que a política será o rosto concreto dessa conversão. É na transformação política que se avaliará se as palavas fortes semeadas pelo Papa criaram raiz.

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