Não podemos continuar a viver como se nada se passasse. Ignorando. Disfarçando. Mas é importante também não nos deixarmos invadir por uma espécie de suspeição generalizada, de tudo e de todos. A desconfiança corrói.
Ter olhos para ver requer uma educação do olhar que não se habitue à violência – a todas as formas de violência – como se ela fosse uma fatalidade. Esta vigilância há-de poder ser vivida com serenidade. Mas também com determinação. Para lá das palavras, as acções. Para que a observação de Jesus aos fariseus não nos atinja: «Eles dizem e não fazem» (cf. Mt 23,1-12)
Moral e Direito
Bem sabemos que uma coisa é o nível da reflexão ética, outra o dos procedimentos legais. Mas, num estado de direito, é de supor que a ética partilhada suporta e é traduzida no ordenamento jurídico que é o nosso. E, no que diz respeito aos cristãos, leigos ou clérigos, são, é claro, cidadãos do seu país. Sujeitos às leis existentes e sem nenhuma forma de se subtraírem à justiça que, sendo a que conhecemos, permite que a nossa convivência social seja isso mesmo: um vivermos juntos, ordenadamente, e não num caos.
Causas e consequências
Creio que um problema tão complexo exige uma leitura interdisciplinar para o correcto diagnóstico da sua etiologia.
Nos últimos dias, têm-nos chamado a atenção para o facto de o fenómeno não ser específico da Igreja Católica; de, quanto aos padres, ser mesmo uma percentagem muito escassa; de esses casos terem de ser interpretados nas particulares circunstâncias histórico-culturais que são as suas. Muito bem. Mas estes argumentos não podem servir para nos acomodarmos. A justa relativização não permite que, entre nós, se faça apenas “alguma coisa para que tudo fique na mesma”, na conhecida expressão de Lampedusa em Il gattopardo. Não nos podemos ficar pelo formal pedido de desculpas. Haverá, certamente, muita coisa a mudar. Mesmo.
As causas circunstanciais encontrá-las-emos, provavelmente, nas situações elencadas no artigo desta semana do historiador Paulo Varela Gomes (“Os padres. Os outros. E o fim.”, Público, 13 de Março, P2 pág.3): «são palco deste fenómeno muitas outras instituições masculinas de reclusão – reformatórios, orfanatos, colégios internos, prisões. Desde sempre. Escusam de atirar pedras à Igreja aqueles que dirigem, regulam, servem estas instituições, condenam jovens e crianças a ficarem lá, deixam correr a sua existência».
Uma formação plenamente humana dos candidatos ao sacerdócio deve ser procurada e garantida, com uma criatividade que não se compagina com a repetição de velhos esquemas ultrapassados. Admito que alguma coisa possa ter sido descurada na admissão desses candidatos. Que alguns deles fossem jovens com certas perturbações (há quem diga que são os que mais facilmente respondem a um certo tipo de “propaganda” vocacional) que, sem correcto diagnóstico e sem consequente acompanhamento terapêutico, se tornam pessoas com uma sexualidade imatura, incapazes de uma serena experiência de relações humanas.
A Conferência Episcopal Portuguesa, pela voz do seu Secretário, veio já dizer o que por agora é possível em matéria de futuro: «reconhecer a verdade e auxiliar as vítimas; reforçar a prevenção e colaborar construtivamente com as autoridades». Vale a pena recordar a expressão que o Papa Paulo VI utilizou nas Nações Unidas acerca da guerra: «Nunca mais!». Que a possamos repetir, com humildade e confiança, sim, mas também com a determinação, acerca deste drama: nunca mais!
P. José Manuel Pereira de Almeida,
19 de Março de 2009
(Na ocasião em que escrevo estas linhas, ainda não conheço a Nota que Bento XVI assina hoje. Desejo lê-la «de coração aberto e no espírito da Fé» como ele próprio, há dias, recomendou. «É minha esperança – dizia o Papa – que possa contribuir para ajudar o arrependimento, o sarar de feridas e a renovação».
Oxalá em breve possam ser mais claras as diversas dimensões do fenómeno: verdade e suspeita, moral e direito, causas e consequências).