Vaticano: Papa reforça disponibilidade para mediar guerra na Ucrânia e denúncia «barbáries» do Hamas e Israel

Primeira autobiografia de Francisco alerta para populismos e defende olhar universal da Igreja, com elogios a Timor-Leste

Foto: Lusa/EPA

Cidade do Vaticano, 14 jan 2025 (Ecclesia) – A primeira autobiografia de Francisco, que chegou hoje às bancas, apresenta a disponibilidade do Papa para mediar a guerra na Ucrânia, denunciando ainda as “barbáries” cometidas pelo Hamas e Israel.

“Estava e continuo à disposição, como um operário, disposto a fazer tudo o que servir o objetivo da paz; também por isso, única entre todas, a representação diplomática do Vaticano nunca deixou a sua sede na capital ucraniana, nem durante os mais brutais bombardeamentos. O povo ucraniano não é apenas um povo invadido, é um povo mártir”, pode ler-se na obra intitulada ‘Spera’ (Esperança) na qual Jorge Mario Bergoglio recorda a sua vida desde a infância em Buenos Aires ao atual pontificado.

Francisco defende a intervenção da comunidade internacional para “identificar caminhos para o diálogo, as negociações, a mediação”, procurando travar o conflito que se intensificou com a invasão russa da Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022.

“Os interesses imperiais, de todos os impérios, não podem, uma vez mais, ser postos à frente das vidas de centenas de milhares de pessoas”, adverte.

O livro, editado pela Mondadori, é publicado em mais de cem países, incluindo Portugal (Nascente), e foi escrito com Carlo Musso, ex-diretor editorial de não-ficção da Piemme e da Sperling & Kupfer.

O Papa alude ainda à “barbárie” começada com o atentado de 7 de outubro de 2013, quando as milícias do Hamas atravessaram as barreiras que dividem a Faixa de Gaza de Israel e mataram militares e civis israelitas, “da maneira mais diabólica e brutal”, fazendo ainda vários reféns.

“Perdi também amigos argentinos naquela carnificina, uma dupla dor, pessoas que conhecia há anos e que viviam num kibutz na fronteira com Gaza”, revela.

Francisco considera que a resposta israelita representa “outra, enorme” barbárie: “Dezenas de milhares de mortos inocentes, em grande parte, mulheres e crianças, centenas de milhares de deslocados, de casas destruídas, de pessoas a um passo da penúria”.

Na vergonhosa incapacidade da comunidade internacional e dos países mais poderosos de porem fim a este massacre, a onda de ódio transformou‐se numa onda gigantesca de violência”.

Francisco defende que se retomem os acordos de Oslo de 1993, com “a solução sábia dos dois Estados bem delimitados e de Jerusalém com um estatuto especial”.

O Papa alerta para o aumento dos populismos, considerando que “as promessas que se baseiam no medo, acima de tudo, o medo do outro são a censura habitual dos populismos e o início das ditaduras e das guerras”.

Foto: Lusa/EPA

“Emigração e guerra são duas faces da mesma moeda. Tal como foi bem escrito, a maior fábrica de migrantes é a guerra. De uma maneira ou de outra, porque também as mudanças climáticas e a pobreza são em grande parte o fruto doente de uma guerra surda que o homem declarou: a uma mais igualitária distribuição dos recursos, à natureza, ao seu próprio planeta”, observa.

“Quem tem medo dos rostos que vi em Lesbos, é porque nunca teve a coragem de olhá-los de frente, nunca viu os olhos dos seus filhos”, acrescenta.

É preocupante que no mundo da política se ceda à tentação de instrumentalizar os medos ou as dificuldades objetivas para elaborar promessas ilusórias e para interesses eleitorais míopes. E preocupa-me também a triste constatação que mesmo as comunidades católicas na Europa não estão isentas destas reações”.

Recordando o início do pontificado, em 2013, Francisco admite que, na altura, “não acreditava que escreveria quatro encíclicas, e todas as cartas, os documentos, as exortações apostólicas, nem que faria todas estas viagens, a mais de 60 países”.

“A Igreja que caminha será cada vez mais universal, e o seu futuro e a sua força virão também da América Latina, da Ásia, da Índia, de África, já se vê pela riqueza das vocações. Mesmo na Indonésia, em Singapura, na Nova Guiné ou em Timor-Leste, em setembro de 2024 — uma experiência maravilhosa, que muito desejava, uma infinidade de crianças, de pessoas que lançavam as suas capas, enquanto o carro papal passava, ao longo dos dezasseis quilómetros do caminho para a Nunciatura —, encontrei uma Igreja em crescimento e com uma identidade própria”, indica.

Ainda num olhar sobre as viagens do pontificado, o Papa recorda a visita a Mossul em 2021, onde os serviços secretos britânicos alertaram sobre dois atentados em preparação, tendo os terroristas sido “intercetados e mortos pela polícia iraquiana”.

“Em Kinshasa, beijo mãos e pés amputados. Acaricio cabeças. Recolho sussurros. Estou admirado com a coragem daqueles testemunhos: as suas lágrimas são as minhas lágrimas, o seu sofrimento é o meu sofrimento. E depois todos juntos dizemos: basta! Basta de atrocidades que lançam infâmia sobre a humanidade inteira! Basta de considerar a África uma mina a explorar ou uma terra a saquear! Basta do escândalo e da hipocrisia de negócios que continuam a prosperar, provocando violência e morte! Foram mais de cinco milhões as vítimas que a guerra no Congo causou desde os finais dos anos noventa. É o maior conflito depois da II Guerra Mundial”.

Papa Francisco

Francisco, com 88 anos de idade, reflete sobre os seus problemas de saúde e diz nunca ter ainda colocado a possibilidade de renunciar ao pontificado.

“Cada vez que um Papa está doente sente-se soprar um pouco de vento de conclave, mas a realidade é que nem nos dias das operações cirúrgicas, nunca pensei em renunciar, a não ser para dizer que, para todos, é sempre uma possibilidade, que desde o momento da eleição tinha entregue ao cardeal camerlengo uma carta de renúncia em caso de impedimento por motivos médicos”, explica.

A autobiografia fala de tragédias que marcaram a juventude de Jorge Maria Bergoglio e homenageia a sua família, migrantes italianos que construíram uma nova vida na Argentina.

O Papa recorda o bairro Flores de Buenos Aires, no qual viveu a infância, onde “as diferenças eram normais” e havia grupos de amigos católicos, judeus e muçulmanos.

Francisco evoca ainda o “lado mais sombrio e cansativo da existência”, nas periferias da capital argentina, com referência a uma “Madalena contemporânea”, Porota, antiga prostituta que se dedicou depois a “cuidar dos corpos com os quais ninguém se importa”.

“Até hoje, no dia da sua morte não me esqueço de rezar por ela”, refere.

A obra aborda o papel da religião, rejeitando a ideia de que seja “ópio do povo”, ao realça o “compromisso pastoral e civil” de muitos católicos.

“Assim como a fé, todo o serviço é sempre um encontro, e somos nós, acima de tudo, que podemos aprender muito com os pobres”, indica o pontífice.

Ao longo de mais de 25 capítulos e 300 páginas, Francisco reflete sobre temas como os conflitos na Ucrânia e no Médio Oriente, as migrações, a crise ambiental, a política social, a condição da mulher, a sexualidade, o desenvolvimento tecnológico, o futuro da Igreja e o diálogo entre religiões.

A obra conta com algumas fotos privadas e inéditas, provenientes do arquivo pessoal do pontífice.

O Papa encerra o livro com uma reflexão sobre um dos seus temas de eleição: “A ternura não é fraqueza, é a verdadeira força. É a estrada que os homens e as mulheres mais fortes e corajosos percorreram. Percorramo-la, lutemos com ternura e com coragem. Percorrei-a, lutai com ternura e com coragem… eu sou apenas um passo”.

O cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, então com 76 anos, entrou para o conclave de 2013, a 12 de março, e foi eleito no dia seguinte como sucessor de Bento XVI, assumindo o inédito nome de Francisco.

OC

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