Vaticano II, via aberta para a renovação da ética teológica

A Gaudium et Spes propõe que as questões éticas, sejam tratadas “à luz do Evangelho e da experiência humana” A relevância do segundo Concílio do Vaticano para a vida da Igreja, a todos os níveis, é indiscutível. Para a ética de carácter teológico, vivida e reflectida, é-o de maneira particular. Referimo-nos aos seus fundamentos e aos aspectos mais concretos, como os temas do matrimónio, da sexualidade e das questões sociais. Verificamos dois aspectos que se complementam: o corte consciente com a tradição, a que se chama habitualmente “moral dos manuais” e “moral casuística”, e a proposta de nova metodologia e de novos parâmetros. “A antiga moral casuística praticamente desapareceu. Adquiriu-se uma expressão nova dos imperativos da fé na linha da Escritura, do dogma e da vida da Igreja” (Ph. Delhaye). Nos textos conciliares encontramos uma forma diferente de desenhar a ética teológica. Propõe-se uma metodologia na reflexão e na elaboração de critérios de acção. Pede-se expressamente um “especial cuidado em aperfeiçoar a teologia moral”; a nenhuma outra disciplina teológica há uma referência semelhante. Requer-se uma “exposição científica”, ou seja, mais apoiada em argumentos verificáveis, e menos apologética. Indicam-se como pilares uma melhor fundamentação bíblica, a relação à cristologia e à pneumatologia, que enfatize a perspectiva da plenitude da vida em Cristo, a inserção na vida dos fiéis e da comunidade eclesial, e a projecção para a transformação do mundo. Particular relevância é dada à consciência moral, entendida como instância pessoal onde se faz o discernimento e de onde brota a orientação da vida, decorrente do reconhecimento do que se é como pessoa, da escuta de Deus, da comunhão eclesial e do diálogo com outros saberes. É esse o caminho indicado para a descoberta da verdade nos assuntos morais. A Constituição Gaudium et Spes propõe que as questões éticas, que inquietam todas as pessoas, sejam tratadas “à luz do Evangelho e da experiência humana”, isto é, da revelação, no que tem de permanente e na busca de novas compreensões, e da experiência da vida, da cultura dos povos e dos saberes científicos, sobretudo das ciências humanas. À luz destes critérios, deixa orientações para redimensionar os conceitos de “natureza” e de “lei natural”, expressões que na economia dos textos conciliares, são pouco relevadas. O “natural” não aparece desligado do cultural, não se entendendo um sem o outro. Neste enquadramento se situa a proposta de um paradigma inovador nos âmbitos da sexualidade e do matrimónio, em que se parte da dimensão da pessoa e do casal, da sua realidade existencial, em substituição de outro, de tradição milenária, aliás, elaborado a partir de visões biológicas ultrapassadas, dualis-mos, pessimismos e muito devedor de concepções de carácter jurídico. Fala-se não de “contrato matrimonial”, mas de “aliança de amor e de fidelidade”, e nesse contexto se situa a sexualidade conjugal, superando a perspectiva centrada nos actos, conjugais no caso, que não deviam ser tornados intencionalmente inaptos para a geração de prole. Propõe-se uma harmonização mais equilibrada entre a dimensão unitiva e procriativa da sexualidade, e não de cada relação em si, deixando para traz a clássica hierarquização de fim primário, a procriação e educação, e de fim secundário, a ajuda mútua e o remédio da concupiscência. Abrem-se perspectivas novas para abordagens diferentes de temáticas como a relação entre os cônjuges, a sexualidade em geral, o planeamento familiar. No que concerne à moral sobre temas sociais, na linha da Doutrina Social da Igreja, sublinha-se a importância do trabalho humano, como questão chave nas problemáticas socais; reafirma-se, ao lado da propriedade privada, o destino universal dos bens; aceitam-se, defendem-se e promovem-se os direitos humanos; valorizam-se e responsabilizam-se as instâncias internacionais na arbitragem entre os interesses dos Estados. Particular destaque, porque atitude nova, merece a aceitação e promoção da liberdade religiosa, e a recusa da guerra, sem distinções entre “justa” e “injusta”, no dirimir dos conflitos. Nem sempre, no período pós conciliar, as perspectivas apontadas tiveram desenvolvimentos na mesma linha. Às vezes parece que há vontade como que de “corrigir” aquilo que ficou expresso ou incoado. De qualquer forma, aí está como ponto de referência iniludível para a vida da Igreja e do mundo. Jerónimo Trigo, Professor de Teologia da UCP

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Agência ECCLESIA

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