Vaticano II: Portugal, o mundo e a convocação do Concílio

Entrevista a Paulo Fontes, investigador do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa

Paulo Fontes, investigador do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, passa em revista a situação da sociedade e da Igreja Católica em Portugal quando, há 50 anos, o Papa João XXIII decidida convocar o Concílio Ecuménico Vaticano II (1962-1965).

 

ECCLESIA (E) – O Concílio Ecuménico Vaticano II acontece num momento particular da história do mundo, num momento de grandes transformações sociais e políticas…

Paulo Fontes (PF) – É verdade. O II Concílio do Vaticano, quando se inicia, procura responder a uma questão que atravessava a Igreja Católica desde o século XIX, e de maneira particular ao longo do século XX e no pós-guerra mundial: como é que ela podia afirmar a sua presença pública e pertinência num mundo que estava em processo de acentuada modernização e que culturalmente parecia distanciar-se em muitos aspetos de uma Igreja que tradicionalmente tendia a aparecer aos olhos de muitos cidadãos e crentes como uma fortaleza.

A intuição do recém-eleito João XXIII, quando decidiu convocar o Concílio, em 1959, foi distinguir entre ser Papa, e portanto estar à frente da Igreja Católica à escala universal, do facto de ser bispo de Roma – e daí ter convocado também um sínodo romano. Por outro lado sentiu a necessidade de introduzir algumas mudanças na estrutura interna da Igreja, nomeadamente um novo Direito Canónico, substituindo o que tinha sido aprovado em 1917.

Na história dos 21 concílios este foi o primeiro em que a Igreja tem necessidade de se dizer a si mesma: o que é, o que pretende ser e o modo como se procura situar na sociedade. Nas sociedades de tipo tradicional, sacral, a Igreja tinha o seu lugar assegurado.

 

E – Podemos dizer que uma das singularidades do encontro foi o facto de pela primeira vez num concílio a Igreja ter refletido sobre a sua identidade, sobre a sua presença e imagem no mundo? 

PF – A Igreja sentiu a necessidade de refletir sobre a sua imagem do mundo e, sobretudo, sobre a sua identidade e missão. Precisou de se dizer a ela mesma como é que se entendia. O II Concílio do Vaticano traduziu aquilo a que o cardeal Etchegaray já chamou uma “revolução espiritual”. Mas essa “revolução espiritual” resultou de um movimento de retorno à grande tradição da Igreja Católica e às suas primeiras fontes. A Igreja deixou de se ver a si mesma como uma sociedade perfeita que se contrapõe ao conjunto da sociedade, para se ver com o papel de ser luz e sal, mediadora e sinal de Jesus Cristo e da sua proposta.

 

E – O Concílio Vaticano II também incorpora, de alguma forma, a reação a uma sociedade que estava a mudar, a setores sociais que começaram a valorizar a liberdade de pensamento e a opor-se aos poderes tradicionais…

PF – Com certeza. O Concílio vai permitir resolver positivamente uma questão dilacerante na relação da Igreja Católica com a modernidade: a afirmação da liberdade individual.

As sociedades do século XIX, sucedâneas das chamadas revoluções liberais, como a que ocorreu em Portugal, vão colocar o problema de saber como é possível que o valor da liberdade de pensamento, religião e consciência se compagine com uma instituição que se considera depositária de uma verdade revelada, onde nem todas as opiniões são aceitáveis. É a afirmação do princípio da autoridade em contraponto ao princípio da liberdade.

Esta tensão manteve-se desde uma atitude mais condenatória das liberdades do mundo moderno, como foi o caso do Papa Pio IX, até uma maior abertura que se foi dando, por exemplo, com a deslocação do movimento católico para o seu centro específico e religioso, secundarizando outras questões, como a política.

Quando se chegou ao Concílio foi possível reconhecer o valor da liberdade religiosa e de consciência, definidas positivamente, através da declaração Dignitatis Humanae, a última a ser aprovada, significativamente com quase uma centena de votos contra. Ninguém pode ser constrangido a fazer o que não considere correto e justo ou que não esteja conforme à sua consciência, seja no plano individual seja no social.

 

E – Como é que Portugal acolheu a convocação do Concílio? Parto do princípio de que, pelas características políticas do país, a nação não aguardava com grande expectativa e entusiasmo uma renovação profunda na Igreja…

PF – O episcopado português terá participado da surpresa com que os episcopados em geral foram confrontados com o anúncio de João XXIII. E depois surpreendeu-se com a dinâmica que o Concílio rapidamente assumiu ao decidir tomar em mãos o seu destino, recusando as propostas que vinham “pré-fabricadas” da Cúria Romana, onde se pensava que os bispos iam apenas aprová-las. Na primeira sessão essas sugestões foram postas de lado e foi estabelecida outra metodologia de trabalho.

A Igreja portuguesa vivia muitos dos dinamismos de renovação que atravessavam a Igreja universal, ao nível dos movimentos bíblico, litúrgico e dos leigos. Da parte dos setores mais empenhados e esclarecidos havia a aspiração à mudança na Igreja e na sociedade portuguesa. O ano de 1958-59 foi de grave crise nas relações entre o Estado português e a Igreja Católica, que ficou bastante confinada a uma posição defensiva, aproveitando a mudança de pontificado. Na história da Igreja ocidental foi uma novidade o exílio forçado de um bispo, D. António Ferreira Gomes, que esteve praticamente 10 anos sem poder regressar à sua diocese [Porto].

No episcopado havia sensibilidades diferentes. O laicado, por seu lado, estava já fortemente empenhado no processo de mudança e reformas ao nível da sociedade. Mas o eclodir das guerras em África contribuiu bastante para fechar novamente a sociedade portuguesa num discurso autárcico. Esses setores laicais viram-se também bastante limitados no seu raio de ação.

 

E – Podemos dizer que o diálogo entre a Igreja e o mundo que o Concílio queria reforçar era assegurado em Portugal pelos grupos da Ação Católica, presentes enquanto Igreja em diversos grupos sociais?

PF – Até ao Concílio podemos dizer que os grandes dinamismos em Portugal passavam em boa parte pela Ação Católica, embora houvesse já novas dinâmicas a trabalhar na Igreja, porque ela tem a característica de ser supranacional.

O cardeal Cerejeira [cardeal-patriarca de Lisboa] foi sempre muito reticente à vinda de todos os movimentos de origem estrangeira, com o argumento de que a Ação Católica Portuguesa supria as necessidades. Foi o que aconteceu com movimentos tão díspares como a Legião de Maria, Opus Dei, Casais de Nossa Senhora, Graal e Movimento dos Industriais e Dirigentes do Trabalho. Estes grupos implantaram-se no país a partir de outras dioceses que não a de Lisboa. Isto porque havia na tradição portuguesa o acentuar de uma relação umbilical entre identidade nacional e identidade cristã. O paradigma de que Portugal é um país católico que contribui para a civilização ocidental cristã reativou-se a partir do eclodir das guerras em África. Os setores mais críticos, que se vinham distanciando publicamente da situação política criada pelo Estado Novo, nomeadamente em torno da crítica ao corporativismo de Estado e à falta de liberdades cívicas e políticas, não só relativamente aos católicos mas aos cidadãos em geral, ficaram bastante acantonados e limitados na sua ação.

Os protagonismos e a evolução desses setores vão ser muito diferenciados. Podemos dizer que todos, cada um à sua maneira, participaram ativamente em processos de transformação e modernização da sociedade portuguesa.

 

E – O Concílio acabará por dar razão e força a alguns grupos que em Portugal reivindicavam este género de mudanças na Igreja Católica…

PF – Sim, ganharam espaço de liberdade na medida em que a Ação Católica contribuiu para o reconhecimento do apostolado dos leigos. Ela começou por ser, na linguagem de Pio XI, “participação no apostolado hierárquico da Igreja”, tornando-se depois, na terminologia de Pio XII, “colaboração com o apostolado hierárquico da Igreja”, para finalmente se considerar que há um apostolado específico e “oficial” dos leigos – é assim que Paulo VI o vai designar para o diferenciar de outras formas de apostolado dos leigos que se impuseram por si mesmas.

Há uma plêiade de movimentos, muitos deles já existentes nos anos 30 a 50, que ganharam espaço e reconhecimento dentro deste paradigma da diversidade, liberdade e pluralidade interna à Igreja, que se afirmou exteriormente no confronto e na possibilidade de proposta no interior das sociedades.

 

E – Após o Concílio a Igreja deparou-se com tempos de alguma perplexidade e confusão…

PF – Uma das perplexidades está ligada à internacionalização da Igreja Católica, de que o Concílio veio ser imagem e expressão. A abertura do Concílio é de uma riqueza extraordinária, com os mais de 2300 padres conciliares num cortejo de três km, com pessoas de todo o mundo e de todas as cores, com as mais diferentes vestes litúrgicas, com católicos latinos e de tradição oriental, com bispos de África, Ásia e América e com pastores das Igrejas protestantes convidados.

Pela primeira vez o Concílio pôde ser filmado e retransmitido pelas televisões, dando a imagem da universalidade da Igreja. Os bispos ganham consciência que têm responsabilidade não apenas como pastores à frente de uma diocese, mas que são, com o Papa, responsáveis de uma Igreja universal. Isso criou-lhes perplexidades e conferiu-lhes responsabilidades novas quando retornaram às suas diocese de origem.

 

E – Ainda há riquezas a explorar sobre o Concílio, 50 anos após a sua abertura?

PF – Penso que sim. A partir de uma leitura histórica, e colocando-me como observador, creio que muitas das afirmações dos textos conciliares estão hoje, em grande medida, por concretizar.

Valeria a pena, por exemplo, voltar a uma pedagogia da fé a partir da leitura dos sinais dos tempos. No mundo onde a tendência para a secularização se aprofundou, o mesmo acontecendo com a valorização da pluralidade na sociedade, e em que a Igreja Católica se afirma como uma proposta, como disse Bento XVI quando esteve em Portugal, é fundamental que essa proposta seja acompanhada de uma convicção e capacidade profunda dos crentes que se reveem no catolicismo de serem os sinais de esperança que dizem afirmar perante o mundo. A convicção dos cristãos de que Jesus é o caminho, a verdade e a vida tem de traduzir-se em gestos e palavras de esperança.

Nunca como hoje precisamos, à escala nacional e mundial, de leituras renovadas capazes de apontar caminhos novos, porque estamos, do ponto de vista civilizacional, em situações de extrema gravidade e fragilidade. A Igreja Católica e as outras confissões religiosas são chamadas a pensar e a dar um testemunho sério e fundamentado de propostas novas. A Santa Sé não se tem eximido a fazê-lo, por exemplo quanto à crise financeira internacional, como já antes o tinha feito sobre o desencadear de alguns dos últimos conflitos e guerras à escala internacional. Desse ponto de vista o Concílio está sempre em processo de atualização e realização. Assim os cristãos queiram e estejam dispostos a estudá-lo, aprofundá-lo e levá-lo à prática através da uma vida centrada no essencial, que é essa pessoa de Jesus, onde reconhecem o Cristo com o qual pretendem identificar-se.

PTE/RJM

 

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