Uma pessoa vai a passar e vê alguém que dedica a sua vida a Deus. Olha mais de perto para ver se percebeu, se é mesmo assim. Afinal, estamos em 2014, no século XXI e estamos com pressa. Parar para ver quem assim passa é um luxo, mas um dia não são dias e fica-se a olhar. Ali vai uma mulher ou um homem que optou pela Vida Consagrada. A palavra Consagração mete respeito ao observador, surpreende pela sua solenidade e proximidade ao mesmo tempo. Dá ideia de um mundo próprio, que quem está a olhar gosta de saber que existe, mas a que não seria capaz de pertencer. Se o posto de observação permitisse via-se um olhar tranquilo, uma atitude de uma desconhecida paz interior. Com mais atenção percebia-se que essa não era uma atitude passiva, antes uma forma de estar em ação na cidade, com plena concentração nesse agir.
Vai um consagrado a passar na cidade, está uma consagrada a habitar a cidade – para o cidadão comum, ou seja, todos, este não é um acontecimento “normal”. O normal é que as coisas estejam no seu sítio, com as suas funções bem definidas, os seus espaços bem delimitados. Por exemplo, os padres estão nas igrejas, nas paróquias a tratar no sítio certo das coisas de Deus.
Mas a desordem começa quando as mulheres e os homens que estranhamente dedicaram a sua vida a Deus, a sua vida toda e numa quase impensável escala temporal de “para sempre” não ficam quietos e vêm ter connosco. Aos sítios mais difíceis em que estamos: nos hospitais, nas prisões, nas fronteiras da vida, nos bairros mais pobres, nos cruzamentos mais perigosos. Ou aos sítios mais habituais, mas que são decisivos para formatar o mundo como as escolas, aprofundando o sentido da Educação. Desordem ainda nos conventos quando se cria ali uma contra ordem de reclusão, afinal abertura mais radical a um Deus desconhecido. Esses conventos dos filmes, míticos, que conseguem sobreviver a todas as configurações societais.
Vai uma pessoa a passar na rua, a olhar pela janela do carro, a fazer compras para o Natal e vê alguém que dedica a sua vida a Deus. Não seria próprio ir ter com esse alguém, seria um gesto estranho. Mas apetecia ir lá mais ao pé dela, talvez mesmo tocar na sua roupa consagrada. Talvez fazer uma pergunta, trocar um olhar. Por ventura convidar para um breve – claro que breve, descomprometido – café. O mais provável é que não aconteça nada disto. Ficará para uma próxima vez. Afinal, eles de vez em quando passam na cidade, afinal sabe-se que habitam a cidade. Não há perigo de mudarem de personalidade, de deixarem de ter aquela atitude interior feita de uma estranha tranquilidade, que lhes permite fazer tanta coisa. Fica para a próxima. Ainda por cima vai haver um Ano inteiro (a Igreja até acha que de novembro de 2014 a fevereiro de 2016 é só um ano, pensa divertido o observador) dedicado a esta estranha forma de vida, por isso haverá mais oportunidades.
Às tantas este observador não resiste a perguntar-se por que é que há quem dedique radicalmente a sua vida a Deus. Se houvesse coragem para abordar o consagrado que passa ele poderia responder no seu melhor latim: Vidimus Dominum, traduzindo logo a seguir com um olhar luminoso: Vimos o Senhor! É uma boa razão, pensa o observador ao mesmo tempo que não deixará de fazer uma segunda pergunta: como será que isso se faz?
Carlos Liz