Vagar em Évora – Uma mensagem à Humanidade

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

Sendo da Guarda, muito gosto eu da cidade de Évora. E, direi eu, quem não gosta de Évora será porque não a conhece.

Évora é uma cidade branca pintada na planura alentejana, onde até o Sol é branco. E, no ano transacto, não fui a Évora. Não sei se me perdoo a mim mesmo por tal falha. Mas sei – disso não tenho a mais pequena dúvida – que ela continua branca, fidelíssima à tradição, ou mais branca ainda, esta cidade encantada que se elevou, há tempos, a Capital Europeia da Cultura. Com vagar saltou anos e voou para 2027. Mas vamos devagar, devagarinho, porque foi assim que Évora fez o caminho. Rima e é verdade. Como é verdade a rima de planura e brancura da Évora alentejana.

A vida moderna impõe tal ritmo de vida que não são os metros nem os quilómetros que medem a distância entre dois lugares. E não penso numa prova de atletismo ou na maratona, mas no dia-a-dia de qualquer trabalhador. A distância é medida pelo tempo. Pelo tempo que se gasta de casa ao trabalho, ultrapassando, sempre com pressa, as filas e as esperas múltiplas do percurso: nas paragens do autocarro, na confusão do trânsito e até numa passadeira enquanto um simples peão espera pelo boneco verde que dê autorização de passagem. Porque a decisão já não é nossa, humanos que somos, mas das máquinas que criámos que, se muito nos ajudam, também muito nos empurram nesta ladeira da tecnociência.

Nos tempos correntes não são os metros nem os quilómetros a medida do espaço. É o tempo. É o tempo que mede a distância entre o lugar onde se mora e o lugar para onde se vai. Poderemos não saber quantos quilómetros medeiam entre a Guarda e Lisboa, mas sabemos quanto tempo demora a viagem, de automóvel, de autocarro ou de comboio. Poderemos não saber a quantos quilómetros de casa fica o lugar do trabalho, mas sabemos quanto tempo demoramos na viagem. É o tempo que mede o espaço. É o tempo a moderna medida de comprimento.

Évora vai ser Capital Europeia da Cultura em 2027, partilhada com a cidade de Liepaja, na Letónia. As outras três cidades portuguesas, Aveiro, Braga e Ponta Delgada, que foram as outras três cidades finalistas, vão ser entre 2024 e 2026, Capital Portuguesa da Cultura, como foi anunciado em tempo adequado. A Guarda, também candidata inicial, não chegou a ir à final. Eu, que da Guarda sou, não me admirei. É verdade minha, e não sei se de mais gente, que a candidatura da Guarda nunca foi assumida com aquela convicção de quem quer ganhar com real esperança. Digo verdade minha na esperança ética de estar enganado e para apaziguar os ânimos de quantos a ela estiveram ligados.

Apreciei e anotei as palavras do Presidente da Câmara de Évora, quando recebeu a feliz notícia para a sua cidade. E guardei a mensagem. Emocionado, Carlos Pinto de Sá, declarou: «Propusemos um conceito de “vagar” para a Europa porque entendemos que a Europa precisa desse vagar. Estamos numa encruzilhada e precisamos repensar a nossa sociedade, a nossa vida, a forma como vivemos, como nos juntamos, como procuramos a felicidade. E julgo que o vagar, que está radicado na identidade cultural alentejana, é fundamental não apenas para o Alentejo, mas para o país e para a Europa. Insere-se exatamente nos valores que Europa aponta e que nós aqui também apontamos por via da cultura.»

Estamos habituados a glosar criticamente com o «vagar» alentejano, traduzido, quantas vezes, em anedotas pouco abonatórias para os alentejanos. Mas agora são eles que nos dão lições de humanidade quando podemos ler: «Queremos afirmar o vagar como uma outra arte de existência para a Humanidade. Porque acreditamos que a criatividade do povo alentejano, o seu modo de ser e de viver podem contribuir para encontrar soluções sustentáveis, inclusivas e belas para os principais desafios que enfrentamos enquanto europeus.» (Do spot publicitário de Évora). É claro: Évora quer celebrar a lentidão num mundo acelerado, enfrentando, com o «vagar», os desafios europeus, e afirmando a necessidade de «uma outra arte de existência para a Humanidade». Verdadeiramente, um «vagar» de ambição e de coragem, este «vagar» alentejano da cidade de Évora.

O «vagar», eis a questão. Se não erro, o «vagar» vem do latim “vagare” [andar sem destino] ou do “vacari” [estar vazio, desocupado, sem uso]. E a pergunta é: como é que o vagar do “estar vazio” se pode transformar em plenitude cultural do ser? E como é que o vagar do “andar sem destino” pode ser virtude de direcção e sentido? Évora dará a resposta. Ela já começou a responder. Com vagar, Évora deu razão ao ditado: «devagar se vai ao longe». É bom vaguear por lá, pela cidade branca de Évora e aprender com ela a saborear o vagar do viver. Fecundo vagar alentejano que assim ensina a cantar.

Ainda não visitei novamente a cidade de Évora depois do acontecimento cultural que lhe deu nova visibilidade, que a fará reviver, com vagar, o seu património cultural, os saborosos manjares dos seus restaurantes e que uma dotação financeira de vinte e nove milhões de euros fará brilhar ainda mais a luz na sua brancura de raiz. Évora tem agora ainda três anos para que essa luz vá entrando devagar nos seus espaços para ficar ainda mais bela e apreciada.

Em tempos que já lá vão ouvia-se com frequência dizer que «a ociosidade é a mãe de todos os vícios.» e os nossos antigos lá saberiam as razões. Ou sabemos nós, também. Quando assim saboreamos, com agrado, o vagar que colocou Évora no horizonte da cultura não fazemos a apologia da ociosidade. Anuncia-se, antes uma espécie de salvação de um modo de escravidão do trabalho que nos rouba o tempo para viver, embora os dicionários nos dêem o “ócio” como sinónimo de “vagar”. Sabendo nós que não há sinónimos perfeitos, importará aqui recordar que há o ócio da ociosidade e o ócio do vagar, cujos efeitos poderão ser bem diferentes.

Diz-se que aqueles séculos do iluminismo grego antigo foi, em parte, propiciado pelo ócio. Seria um ócio fecundo. Um vagar social que, libertando o homem do trabalho, foi ocasião de desenvolvimento da reflexão, da atenção virada para a admiração e a interrogação que propiciou a ciência, a filosofia, e os problemas superiores da vida. E deu-se um salto na história da cultura no Ocidente. Um salto de tal ordem que, com propriedade ou sem ela, foi chamado «milagre grego», expressão que se poderá encontrar ainda nos livros da História.

Foi a mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2024 que me veio lembrar esta Évora do “vagar” que nos convida a uma quietude interior. Não abusando do paciente leitor, embora em citação bastante longa, aqui deixo palavras papais: «É tempo de agir e, na Quaresma, “agir é também parar: parar em oração”, para acolher a palavra de Deus, e parar como o Samaritano “em presença do irmão ferido”.» «Por isso, oração, esmola e jejum não são três exercícios independentes, mas um único movimento de abertura, de esvaziamento: lancemos fora os ídolos que nos tornam pesados, fora os apegos que nos aprisionam. Então, o coração atrofiado e isolado despertará. Para isso, há que diminuir a velocidade e parar

Ainda não sei quando voltarei a Évora mas sei que, quando novamente a visitar, saboreá-la-ei com mais vagar e nela encontrarei a voz do Papa Francisco a associar-se ao embalo alentejano e cantar com os alentejanos: «agir é também parar… há que diminuir a velocidade e parar» para despertar o coração e deixá-lo reflectir-se na brancura daquela cidade da planura do Alentejo, para melhor se «afirmar o vagar como uma outra arte de existência para a Humanidade». Verdadeiramente, celebrando o vagar num mundo acelerado e de cansaço, o cante alentejano é música que anuncia o futuro e algum remédio para depressões e esgotamentos das nossas sociedades. Acto de fé? E porque não?

Guarda, 7 de Março de 2024

António Salvado Morgado

 

 

 

 

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