Unidade da Europa, um Projeto de Civilização

Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa

1. O momento que Portugal está a viver, de ajustamento económico-financeiro, que acarreta dificuldades a muitos cidadãos, é uma situação cuja génese e solução se enquadra no contexto da União Europeia, da qual Portugal faz parte. A atual crise é mundial mas é, particularmente, um problema da União Europeia e, de um modo específico, dos países que aderiram à moeda única europeia. Isso torna normal e compreensível que algumas vozes de comentário às soluções adotadas para resolver a crise sugiram a saída da União Europeia e da moeda única.

Nesta Nota Pastoral pretendemos ajudar a refletir sobre o sentido e a importância da nossa pertença à União Europeia. Sempre, mas particularmente em momentos como este, os fiéis cristãos precisam de ter uma compreensão aprofundada do enquadramento institucional da nossa pátria e da nossa vida coletiva. Devemos estar em sintonia com a posição da Santa Sé e do Santo Padre, que ainda recentemente afirmou: “A Santa Sé segue com respeito e grande atenção a atividade das instituições europeias, desejando que estas, pelo seu trabalho e a sua criatividade honrem a Europa que, mais que um Continente, é uma «casa espiritual». A Igreja deseja acompanhar a construção da União Europeia. É por isso que se permite lembrar-lhe quais são os valores fundadores e constitutivos da sociedade europeia, a fim de que esses valores possam ser promovidos para o bem de todos” (1).

 

União Europeia e Globalização

2. A humanidade constitui, toda ela, uma única família humana. Do mesmo modo que as pessoas individuais precisam de se inserir numa comunidade para realizarem a sua vida, assim as diversas comunidades de povos e nações precisam de convergir para o bem da humanidade, solidamente assente na busca da justiça e na construção da paz. Este dinamismo não é novo, mas acentuou-se com o acelerar da história. Logo a seguir à Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional tomou consciência de que, para o futuro, só seria possível construir e defender a paz se se construísse uma comunidade de nações. Nasceu, então, a Organização das Nações Unidas (ONU). Outras iniciativas de unidade das nações foram surgindo, por regiões, culturas, história comum. Não é aqui o lugar de as enumerar. Mas é talvez útil lembrar algumas daquelas a que Portugal pertence. Integra praticamente todas as que derivam do dinamismo das Nações Unidas. Esteve na génese da Comunidade dos Povos de Expressão Oficial Portuguesa e participa nas cimeiras ibero-americanas. Isto torna claro que nunca, mas sobretudo agora, Portugal pode tentar construir-se sozinho; a sua participação e contribuição específica e culturalmente rica em dinamismos de comunidade alargada são necessárias e inevitáveis. Isso significa partilha corresponsável num destino coletivo mais alargado.

 

Um velho sonho europeu: a “utopia” da União

3. A Europa foi sempre um Continente de charneira para a construção da humanidade. “Do Atlântico aos Urais”, se definiu geograficamente. Estas duas fronteiras revelaram-se portas abertas ao contacto com o resto do mundo. Primeiramente, em épocas recuadas, foram os povos do oriente que a procuraram em migrações sucessivas. O indo-europeu não se afirma, apenas, na ancestralidade de muitas línguas europeias, mas no caldear da fisionomia étnica dos povos europeus. Por sua vez o Atlântico foi a porta escancarada a desafiar os povos europeus a empreenderem a aventura de contacto com outros povos.

À medida que o mundo se lhes vai revelando na sua real dimensão, os povos europeus precisam de redescobrir as suas raízes comuns, que determinam a sua identidade, para poderem colaborar e unir-se, tarefa difícil e sempre atual, devido à multiplicidade étnica, linguística e cultural. Essa união foi muitas vezes procurada pela dinâmica dos grandes impérios, que tentaram unir, dominando, desde o Império Romano ao domínio soviético. Mas a Europa foi percebendo, dramaticamente, que só vale a pena unir-se, respeitando, fazendo do progresso e da paz uma experiência de convivência, generosa e responsável.

Cada tentativa de união deixou, como legado para o futuro, uma compreensão cultural da Europa, que se vai purificando com o avançar da História. Um elemento decisivo para a união da Europa foi a sua evangelização. Esta criou laços comuns entre povos de tradição cultural muito diversa, acentuando as expressões da mesma fé, unindo num único corpo o Oriente e o Ocidente, dando origem a um único corpo que respira com dois pulmões, na expressão de João Paulo II. A evangelização lançou as bases de uma cultura, veículo de valores e dimensões éticas que devem ser o alicerce de uma autêntica União Europeia. Os agentes desta evangelização, de modo particular os monges beneditinos, os da tradição de S. Patrício, os evangelizadores dos povos eslavos e outros, foram igualmente agentes da preservação do essencial da cultura clássica greco-romana, elemento integrante da cultura europeia.

 

Um projeto cultural

4. Do ponto de vista cultural, a União Europeia apresenta-se como “zona de paz e de estabilidade que reúne 27 Estados com os mesmos valores fundamentais” (2). Respondendo a esta saudação do chefe da delegação das Comunidades Europeias Junto da Santa Sé, Bento XVI responde: “É justo sublinhar que a União Europeia não se dotou destes valores, mas que foram, antes, estes valores partilhados que a fizeram nascer e foram como que a força de gravitação que atraiu para o núcleo dos países fundadores as diferentes nações que sucessivamente aderiram à União. Estes valores são fruto de uma longa e sinuosa história na qual, ninguém terá a coragem de o negar, o cristianismo exerceu um papel de primeiro plano” (3).

O Santo Padre enumera esses valores de inspiração cristã que identificam a cultura europeia: “A igual dignidade de todos os seres humanos, a liberdade do ato de fé como raiz de todas as outras liberdades cívicas, a paz como elemento decisivo do bem-comum, o desenvolvimento humano, intelectual, social e económico enquanto vocação divina e o sentido da História que daí decorre, são elementos centrais da revelação cristã que continuam a modelar a civilização europeia (…). Estes valores não constituem um agregado anárquico ou aleatório, mas formam um conjunto coerente que se ordena e articula, historicamente, a partir de uma visão antropológica precisa”. E conclui: “É importante que a Europa não deixe que o seu modelo de civilização se desfaça, peça a peça. O seu élan original não pode ser abafado pelo individualismo e pelo utilitarismo” (4).

 

A União Europeia

5. União Europeia é a última designação do projeto de unidade europeia, surgido depois da última guerra, intuição dos países mais destruídos pela guerra de que só unidos poderiam renascer das cinzas. Nasce como um projeto setorial de cariz económico, porque a principal intuição é a da convergência das economias. Mas a identidade cultural da Europa é tida em conta pelos primeiros promotores desta nova etapa de unidade. Para eles era claro que sem a sua identidade cultural este projeto europeu não subsistiria. Homens políticos pertencentes às democracias cristãs europeias, eram sensíveis a esta matriz cristã da cultura europeia, o que os levava a prestar atenção aos ensinamentos da Igreja sobre a sociedade. Mas mesmo aqueles que, partidariamente, seguiam a inspiração social-democrata eram sensíveis a estes valores: na economia defendiam uma “economia social”, procurando o justo equilíbrio entre a eficiência económica e as exigências sociais.

Este equilíbrio foi-se quebrando com a própria evolução das mentalidades europeias. A dimensão económica tende a prevalecer sobre a identidade cultural; a matriz cristã da cultura europeia é posta em questão e chega-se mesmo a afirmar que não há uma cultura europeia, esquecendo que sem base cultural não haverá economia de rosto humano que subsista. Quando num momento de crise económico-financeira se afirma que é preferível sair da União Europeia, é cair no economicismo puro e duro, sem a componente que há de humanizar a própria solução da crise. Renunciando à cultura acaba por se abandonar o modelo de economia social de mercado que é profundamente identificador da economia europeia e de toda a organização da sociedade.

 

6. É esta identidade cultural, enraizada na sua história, que há de permitir à Europa encontrar o seu papel no mundo global, aspeto que pode ser seriamente ameaçado por visões economicistas da presente crise. João Paulo II lembrou, várias vezes, que há uma vocação europeia que a leva a desenvolver “a dimensão de universalidade, a pôr em comum tradições culturais diferentes para dar vida a um humanismo, em que o respeito dos direitos, a solidariedade, a criatividade, permitam a cada homem realizar as suas aspirações mais nobres” (5). Isso exige que a Europa “se torne, sempre mais, uma Europa dos homens e dos povos, na qual os direitos fundamentais da pessoa humana e dos povos sejam reconhecidos e reciprocamente respeitados, identificando os mais adequados meios internacionais que os possam garantir” (6).

Este objetivo constitui sempre um desafio enorme para os promotores e defensores da União Europeia, mas no momento presente esse desafio é ainda mais exigente. “Frente ao grande desafio da globalização dos mercados é necessário e urgente criar um espaço global europeu de liberdade, de justiça e de paz, ocupando o lugar dessa ilha de bem-estar ocidental do continente. É preciso ir mais longe e empenhar-se na superação da globalização na pobreza e na miséria para chegar a uma globalização na solidariedade que envolva todos os povos, particularmente os que estão em vias de desenvolvimento” (7).

 

A Igreja e a União Europeia

7. Já citámos Bento XVI a afirmar que a Igreja quer acompanhar, dando o seu contributo, esta nova aventura histórica de busca da unidade europeia. Foi assim desde o início: a Igreja quis participar sem, no entanto, se identificar. Mesmo quando o número dos Estados que aderiram à União era uma parcela dos Estados Europeus, sobretudo os ocidentais, a Igreja quis participar, consciente do papel histórico da sua mensagem para a identidade da Europa. Denunciou, por vezes, a importância demasiada da componente económica em desfavor da identidade cultural e recusou-se a identificar a Europa com os países aderentes à Comunidade Económica Europeia, defendendo a Europa do Atlântico aos Urais, na convergência das duas tradições do Oriente e do Ocidente. Com o aumento sucessivo dos países que aderiram à União, a coincidência entre União Europeia e Europa é, hoje maior, embora não total. E a Igreja, na sua visão de Europa, e no contributo que as diversas Igrejas dão à sua identidade, não pode deixar de fora os Povos e Nações que não aderiram à União Europeia. Eles fazem parte do espaço onde hoje se caldeia o contributo específico da Igreja: relação entre fé cristã e a noção de pessoa humana, ecumenismo como busca específica da unidade, solidariedade entre as Igrejas e não apenas entre os países da União.

 

8. Por quanto acabámos de afirmar, fica claro que a Igreja deseja que este momento que atravessamos não nos leve a abandonar esta etapa constitutiva da busca da unidade europeia. A Europa unida é, cada vez mais, o quadro do crescimento das Igrejas e do seu contributo para a sociedade como um todo. É preciso aprofundar aqueles valores da identidade cultural europeia, cultivar um sentido de cidadania europeia, que inclua a solidariedade com os problemas de cada povo. Não se pertence à União Europeia só para auferir vantagens e defender interesses, mas para contribuir solidariamente para o “bem comum” desta grande comunidade de nações.

A União Europeia tem as suas origens no Tratado de Roma, perante os efeitos devastadores da guerra. A União continua a ser um instrumento e um meio para construir a paz. É missão da Europa unida preservar a paz, edificar a paz. O Magistério de João Paulo II insiste continuamente nesta missão da União Europeia, na memória do drama da Segunda Guerra Mundial e frente a conflitos localizados que foram deflagrando na Europa, fora das fronteiras da União. Tendo como pano de fundo a guerra na ex-Jugoslávia, afirma categoricamente: “É, para a Europa, um dever de consciência denunciar sem equívocos as atrocidades que estão, atualmente, a ser perpetradas tão perto de nós e ferem populações sem defesa. É um dever denunciá-las, seja quem for o seu autor. A Europa deve pôr fim a este conflito e mostrar a sua capacidade de assegurar a todos os povos do Continente as condições para um livre desenvolvimento, digno da sua História e das suas tradições” (8).

Esta perspetiva de João Paulo II tem grande atualidade. Acreditamos que estas considerações são essencialmente compartilhadas pelo humanismo europeu em geral e, de modo particular, pelos crentes de outras religiões presentes na história e na atualidade do nosso Continente. Se queremos vencer as crises na paz, façamo-lo em conjunto, considerando os outros povos e nações como irmãos e companheiros de aventura.

Fátima, 19 de abril de 2012

 

NOTAS:

1 – Bento XVI, in Insegnamenti, vol. 2, pp. 400-401.

2 – Do discurso do novo Embaixador da União Europeia, saudando o Santo Padre, cf. Ibidem, p. 399.

3 – Ibidem, p. 399.

4 – Ibidem.

5 – João Paulo II, in Profezia per l’Europa, p. 9.

6 – Ibidem, p. 11.

7 – Ibidem, p. 13.

8 – Ibidem, p. 15.

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