União Europeia: «É importante perceber as causas do descontentamento e do crescimento dos partidos populistas» – Inês Quadros

No dia em que a França, uma das maiores potências da União Europeia, vai a votos, numa segunda volta das eleições legislativas, e uma semana depois de a Hungria ter assumido a presidência da União Europeia, é convidada da Agência ECCLESIA e da Renascença Inês Quadros, professora da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e vice-presidente da Associação dos Juristas Católicos

Foto: Beatriz Pereira/RR

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Recentemente, a Associação dos Juristas Católicos identificou temas que podem comprometer a unidade entre os Estados, na União Europeia, a começar pela guerra na Ucrânia. É um momento decisivo, para o futuro da União?

Parece-me que é um grande desafio para o futuro, sobretudo num contexto de alguma incerteza no panorama internacional e daqueles que são, tradicionalmente, os aliados da Europa, os Estados Unidos. a Europa vai ser confrontada com a necessidade de ter uma posição europeia. As questões da defesa não têm sido sempre unânimes no quadro da União Europeia, pensando na história europeia: a ideia de uma defesa conjunta ou de uma política de defesa única foi sempre difícil de decidir pelos Estados, mas vai ter de ser uma prioridade nos próximos tempos e isso transporta uma série de dúvidas quanto a outras questões que também são prioritárias, mas que eventualmente terão de ficar um pouco para trás. Transporta dúvidas no imediato, quanto ao orçamento da União…

 

A Comissão dos Episcopados Católicos da União Europeia saudou a manutenção de uma maioria pró-europeia em Bruxelas depois das eleições para o Parlamento Europeu que decorreram do dia 6 ao dia 9 de junho. Apesar disso, como vemos hoje na França, houve um crescimento das forças nacionalistas e extremistas. Receia que o novo ciclo político na Europa possa ficar marcado por estes discursos populistas e extremistas, até de negação do próprio ideal comunitário?

Até parece um pouco paradoxal que, no contexto da União Europeia tenham, apesar de tudo, crescido os partidos que são eurocéticos. Eu acho que estamos não só diante de uma mera conjuntura, mas também de uma mudança de ciclo, um ponto de viragem nos regimes políticos. O crescimento do populismo existe ao nível de vários Estados-membros da União Europeia e, portanto, é natural que isto se reflita nas eleições para o Parlamento Europeu. O caso específico da França é um caso emblemático, mas há outros casos em que isso acontece. É preciso perceber as razões que estão por trás do crescimento destes partidos, que ferem e põem em causa a unidade na União Europeia, porque a União Europeia assentou, historicamente, no ultrapassar do ressentimento entre alguns Estados. Não deixa de ser, com alguma mágoa no projeto europeu, que se encontram hoje políticas de ressentimento, de divisão profunda, de fratura profunda na sociedade. Parece-me que o que é importante é perceber as causas desse descontentamento e do crescimento dos partidos populistas.

Os partidos populistas, no fundo, alimentam-se do descontentamento que a população senta em relação à sua vida, às suas condições de vida, e dá respostas erradas a essas preocupações das pessoas. E, portanto, parece-me que é preciso ir ao encontro das pessoas onde elas estão e dar respostas certas.

 

Esse paradoxo do desencanto, digamos assim, com o projeto europeu não terá muitas vezes a ver com a procura de um bode expiatório, para as dificuldades?

A União Europeia, de certa forma, cumpriu o seu papel. O que se passa é que o conforto que os Estados permitiram aos seus cidadãos, em resultado de um Estado social muito protetor, de uma consciência aguda da dignidade e das exigências das pessoas, está hoje em declínio porque cada vez se exige mais do Estado e o Estado não tem capacidade de dar. Naturalmente que este desconforto, depois, se por maioria de razão, se estende à União Europeia, que está mais distante e, portanto, há uma certa perceção que não está ao lado das pessoas a perceber as suas reais preocupações. Num filme do Woody Allen, a certa altura falava-se do restaurante e alguém dizia “os pratos são tão feios e a comida é tão desagradável, este restaurante é tão mau”. E depois alguém dizia, “além disso, servem pratos tão pequenos”. No fundo, a União Europeia é acusada de muita coisa má, mas, na realidade, depois pede-se mais.

Nós temos, em Portugal, muita essa consciência da dependência dos fundos europeus, etc. Portanto, claro que há um certo nível de responsabilização da União Europeia diante daquilo que ela não pode dar. A União é feita a partir dos Estados e, portanto, a crise da União não deixa de ser, antes de mais, uma crise dos Estados, uma crise política daquilo que é exigido aos Estados, em geral.

 

E uma previsível vitória da extrema-direita francesa na segunda volta pode minar ainda mais essa necessidade de unidade para se enfrentarem os grandes desafios, como já falamos aqui, por exemplo, do conflito entre a Rússia e a Ucrânia?

O regresso aos nacionalismos, em princípio, não é muito bom no contexto da unidade europeia. No imediato, no caso específico da França, a política externa é essencialmente conduzida pelo presidente e, portanto, não haverá uma mudança no curto prazo. Agora, é evidente que, a partir do momento em que há mais espaço e que ocupam mais espaço esses partidos, todo o projeto, no fundo, interno da adesão à União Europeia, fica mais fragilizado. Portanto, o crescimento dos nacionalismos é, de certa forma, um perigo para o projeto europeu. Mas, mais uma vez, aqui é preciso ir ao encontro daquilo que realmente preocupa as pessoas. Eu não sei se realmente aquilo que preocupa as pessoas será o projeto europeu, em si; provavelmente é mais a circunstância de sentirem que podem estar fragilizadas as especificidades de cada povo.

Isto para dizer que a União Europeia tem, nos seus próprios textos fundadores, meios de acautelar esse receio de que os Estados deixem de decidir, um receio que as pessoas têm de que as decisões passem a ser mais longínquas e, portanto, a menos relevantes para si. E esses meios são, por exemplo, o princípio da subsidiariedade – está inscrito nos tratados, não é preciso inventar a roda -, que permite que a União confie aos Estados aquilo que os Estados são capazes de fazer e, portanto, não tenha se esgotar todas as decisões em muitos domínios, que são domínios de atuação política europeia. A União Europeia não se faz sem os Estados e, portanto, é natural que num período em que haja, no fundo, um regresso às exigências nacionais, nem por isso se tenha de fazer contra a Europa, mas possa ser feito a partir dos próprios instrumentos europeus.

 

Queria falar-lhe agora de um dos temas que está muito em cima da mesa que é a questão da crise das migrações. A forma como os Estados, e diretamente aos Estados-membros, souberem responder a esta crise com maior ou menor solidariedade entre si é um teste fundamental para o projeto comunitário?

O problema das migrações surge porque a Europa é um espaço atraente, geograficamente atraente, relativamente a zonas em conflito que estão próximas. É um espaço economicamente atraente, porque é uma região próspera… para quem está fora de zonas muito afetadas, com conflitos, zonas muito pobres, de facto a Europa é economicamente muito atraente. E também é atraente porque é uma zona pacífica, segura, não tem militares nas ruas, é uma coisa que não acontece na Europa, União Europeia leia-se.

 

Mas a minha questão é nesse sentido, ou seja, as pessoas tinham uma determinada garantia do Estado Social, que em alguns países, especificamente, foi muito sobrecarregada pela chegada de milhares de outras pessoas. A União Europeia falhou aí em deixar países, por exemplo, como a Itália, Malta, que é um pequeno Estado insular, ou mesmo a Grécia muito isolados na resposta a esta crise?

Houve uma solidariedade de facto, parece-me que, no que respeita às migrações, o caminho foi-se fazendo….

 

Mas não foi uma solidariedade tímida? 

Foi uma solidariedade em parte tímida, quer dizer, há uma dimensão que é inultrapassável, que é a geografia. Há uma dimensão que é inultrapassável, que tem a ver também com os diferentes níveis de proteção social em cada Estado e, portanto, não há uma verdadeira igualdade entre os Estados que permita que, de facto, depois haja uma distribuição equitativa das responsabilidades ao nível do acolhimento. Eu julgo que isso é uma justificação para se incentivar, para, no fundo, acentuar a integração europeia, para que possa haver, de facto, uma aproximação entre os Estados.

 

E não uma justificação para os isolados…

Exatamente. Portanto, eu acho que é importante que se procure isso, para que depois, de facto, no fundo, a pressão que é feita sobre alguns Estados possa ser mais facilmente partilhada pelos restantes Estados. Agora, o que me parece também, e a sua pergunta parece muito importante a este respeito, é que é evidente, num contexto em que cada vez se exige mais ao Estado, em que há cada vez menos recursos, um inverno demográfico, portanto, menos pessoas a contribuir também, há que fazer escolhas e o problema grande na matéria da imigração, para o qual eu não sei se há uma resposta fechada, é que não basta acolher os refugiados, os no ponto de entrada. Muitas vezes discute-se isso, se devem entrar, se deve ser uma política de fronteiras abertas, de fronteiras fechadas, mas a responsabilidade tem que ir além desse momento. E, de facto, aí há escolhas a fazer e, portanto, é preciso ter consciência de que, se a Europa se quer afirmar como uma comunidade ética, como sempre se afirmou, deve ter, de facto, uma política de acolhimento e que isso implica, em alguns casos, escolher, fazer escolhas. Se calhar deixar a sociedade civil também respirar e organizar-se…No fundo, é preciso fazer escolhas quanto ao tipo de pressão que se pode dar. E aquilo a que nós assistimos nas nossas cidades é a situações, muitas vezes, tão precárias em que os migrantes se vêm encontrar, percebemos como é exigente essa política de acolhimento. Não é só no momento de entrada, é depois, na garantia que temos para oferecer dignidade e, no fundo, oferecer às pessoas aquilo que elas procuram em nós, não é?

 

Foto: Beatriz Pereira/RR

Os juristas católicos destacavam a importância de construir uma Europa que respeite a sacralidade da pessoa humana e os valores inalienáveis que estão no seu fundamento.

Esta união, que aos olhos das pessoas é cada vez mais económica, carece de ideais? 

Eu creio que, hoje em dia, já talvez não se possa dizer que a União Europeia é, sobretudo, uma realidade económica. É verdade que desde o Tratado de Maastricht, desde 1992, é uma Europa de cidadãos e, portanto, essa transição foi muito importante porque deixa de se considerar as pessoas apenas enquanto operadores económicos, participantes na vida económica, mas verdadeiramente como pessoas com vários níveis de exigência; exigência ao nível social também. O Estado Social é ainda, em grande medida, tarefa dos Estados, não é tarefa da União Europeia, portanto, a União Europeia não confere ela própria proteção social, embora, em alguns casos, obrigue os Estados a conferi-la ou a estendê-la para além dos cidadãos de cada Estado. Portanto, a União Europeia não pode ser ela própria prestadora no que respeita às exigências do Estado Social, só em grande medida ainda aos Estados que o são. E de facto, nos tratados da União estão claramente vertidos todos os princípios em que a União pode assentar. O que é preciso é regressar a eles, talvez, regressar às exigências da construção europeia, àquilo que tornou possível a construção europeia e aquilo que é, de facto, um fator de unidade entre os Estados.

 

Nesse ponto de vista, houve um momento de tensão que eu queria referir, que teve a ver com o debate sobre a inclusão do direito ao aborto na Carta dos Direitos Fundamentais. Os responsáveis católicos têm sempre sublinhado que não compete a Bruxelas impor visões sobre questões da pessoa humana, da sexualidade, do género, aos Estados-membros. Isto é um tema que pode criar realmente fraturas?

 

Parece-me que cria fraturas na medida em que, por um lado, não é uma questão líquida nos vários Estados-membros, importa dizer isso, não é?  E, portanto, num momento de crise, de fragilidade, de desunião, justamente trazer para a discussão uma questão que não é de todo consensual entre os Estados parece-me uma má estratégia.  E, de facto, é verdade que a União Europeia não tem competência para criar supostos direitos fundamentais. Aliás, o Tratado, mais uma vez, diz aquilo que é suficiente dizer. Diz especificamente que a União protege os direitos fundamentais, mas que a proteção de direitos fundamentais não alarga a competência da União. E, portanto, creio que a exigência da proteção de direitos fundamentais nasce a partir de um desejo que os próprios Estados tenham de que o projeto europeu não venha a ser um pretexto para a diminuição da proteção. Portanto, não se pede à União que crie, no fundo, novos direitos fundamentais. Este é um ponto que me parece importante.

Não é relevante do ponto de vista substancial, podemos discutir se trata de direito fundamental ou não, a mim parece que não, mas acho que nem sequer essa discussão é relevante. O populismo cresce muitas vezes justamente porque as pessoas sentem que há uma separação entre as reais necessidades delas e aquilo que as instituições políticas julgam ser as suas necessidades, ou que querem conceber como sendo as necessidades das pessoas. E, portanto, aquilo que é importante para as pessoas neste momento histórico é, por um lado, a redefinição daquilo que são as prioridades, aquilo em que a União Europeia deve apoiar os Estados numa lógica de subsidiariedade, aquilo em que os Estados devem continuar a ser competentes e em dimensões que são essenciais na dignidade das pessoas, no que respeita às migrações, no que respeita à mobilidade, no que respeita à habitação, no que respeita à saúde, no que respeita à educação. Estas são as preocupações que as pessoas têm. Outras ideias que surjam não promovem a unidade, por um lado, e por outro lado, justamente fraturam e acentuam esta consciência que as pessoas têm de que quem decide não decide o que interessa, não decide as suas reais preocupações. Não é essencial, parece-me até que é nocivo que se introduza um direito fundamental ao aborto na Carta de Direitos Fundamentais. Acho que a União Europeia não tem poderes, mas além disso parece-me que é uma má ideia. E sobretudo não contribui para o projeto europeu.

 

As igrejas da Europa apresentaram contributos para a presidência húngara do Conselho da União Europeia, que se iniciou precisamente no primeiro dia de julho, convidando-a a retomar os valores fundadores da União Europeia e também alertaram para a crescente polarização social e política nos Estados-membros. É uma preocupação que partilha esta? 

De certa forma, isso tem um pouco a ver com aquilo que estávamos a falar. Eu acho que a Hungria, neste momento, nesta hora, assumir a presidência do Conselho é importante porque justamente a Hungria tem sido um dos Estados mais vocais em relação a algum certo descontentamento europeu.

 

Por exemplo, muito crítica no que diz respeito à ajuda militar do Ocidente à Ucrânia…. Exatamente. Eu acho que é importante que a Hungria assuma essa presidência, por um lado porque é importante que estes Estados sejam reintroduzidos no discurso europeu.

É evidente que isso pode trazer uma coordenação que pode ser mais difícil para os vários Estados-membros, mas eu acho que a introdução desses Estados no discurso europeu a médio prazo é positiva. Isto introduz os temas europeus dentro dos Estados também e isso parece-me que é importante na perspetiva dos vários povos europeus. Os exemplos das nossas presidências portuguesas foram bons porque reintroduziram, ou foram uma oportunidade para que os temas europeus fossem discutidos mesmo dentro aqui das nossas fronteiras. Não se tem que ver apenas como um risco, mas na realidade pode ser, na perspetiva do povo húngaro, uma boa oportunidade. É evidente que a circunstância da Hungria assumir uma posição em muitas medidas desalinhada com aquilo que é a posição da União é também em si mesmo um desafio. A União Europeia, assente neste caldo de valores comuns, fez-se sempre com alguma resistência aqui e ali, em diferentes níveis e isso não é necessariamente negativo na medida em que possa contribuir para uma maior reflexão sobre os temas, uma maior fundamentação, no fundo o reforço de algumas convicções. Não me parece que em si tenha que ser um problema, admitindo evidentemente que a posição húngara é uma posição que é desafiante para a União Europeia, assim como a Polónia também. A Polónia agora com a abertura de um ciclo político ligeiramente diferente. Mas de facto há diferenças, apesar de se falar muito nesta unidade política, nesta unidade de valores, mas a verdade é que passando por cima desse primeiro limiar de unidade, a Europa é feita de povos de facto muito diferentes. Há uma Europa do Norte, uma Europa do Sul, há uma Europa Ocidental, uma Europa de Leste, e justamente essas diferenças importa que sejam depois, o lugar certo, no fundo, para elas serem discutidas é depois no espaço da concertação europeia. E, portanto, não vejo necessariamente com pessimismo. Acho que pode ser uma boa oportunidade de se reintegrar a Hungria no discurso e na lógica política europeia.

 

 

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