Irmão David fala da experiência única de viver na comunidade monástica, que não quer ser um movimento, mas uma inspiração para os jovens cristãos
O Irmão David, natural de Portalegre, é actualmente o único português na comunidade ecuménica de Taizé, no Sul de França. Durante a semana que a Agência ECCLESIA passou em Taizé, pode testemunhar a forma próxima como este religioso se relaciona com todos os portugueses e o desejo também de os jovens não se fecharem numa experiência única, mas procurarem o seu lugar na Igreja.
Ao longo de uma hora, numa conversa que percorreu a sua vida, o Ir. David relembrou o Irmão Roger e deu a conhecer melhor a proposta que Taizé vai trazer a Portugal, em Fevereiro de 2010, integrada na Missão 2010, da diocese do Porto.
Agência ECCLESIA – A comunidade de Taizé surge num contexto de guerra. Na Europa decorria a II Guerra Mundial e os cristãos estavam também divididos. A proposta que se fez na altura, faz sentido fazê-la agora? Estamos a viver uma guerra diferente?
Irmão David – A guerra foi um empurrão dado ao Irmão Roger, mas a intuição já vinha a ser amadurecida ao longo de alguns anos.
Acredito ser uma intuição que permanece válida para os dias de hoje. É importante na Igreja a existência de cristãos que procuram dar um testemunho de paz e de reconciliação no nosso mundo de hoje.
A anúncio de um Deus de paz e amor torna-se palavras vazias quando não são vividas concretamente e, sobretudo, quando os cristãos estão divididos e de costas voltadas. Parece que anunciamos coisas bonitas mas não as conseguimos viver. O testemunho torna-se desfigurado e não tem a mesma força de um testemunho de vida.
O Irmão Roger achava na altura, e continua a ser algo muito presente na vocação da comunidade, que é importante anunciar o Evangelho com palavras, mas mais importante ainda é fazê-lo com a nossa própria vida. Sermos sinais do Evangelho, testemunhas de Deus com a nossa vida.
Foi isso que o Irmão Roger procurou fazer. Quando começou a 2ª Guerra Mundial, ele sentiu não poder esperar mais. Sentiu que era importante os cristãos serem fermento de paz numa Europa dividida. O fermento de paz não se reveste de lições de como a construir, mas de começar por viver essa paz. E ele começou sozinho, em 1940. O Irmão Roger chegou a Taizé com o objectivo de um dia vir a ter uma comunidade, de reunir um grupo de jovens e de homens que se quisessem consagrar monasticamente a Cristo, para ser uma parábola de comunhão, um sinal muito concreto.
AE – Pode dizer-se que a comunidade vive afastada do mundo, mas recebe o mundo em Taizé?
ID – Jesus disse aos discípulos «Vós não sois do mundo, mas estais no mundo». Precisamos ter consciência da importância de estar no mundo hoje, presentes entre os homens.
O Irmão Roger vivia na Suíça, com os pais, e sentia-se chamado a começar esta aventura. Mas, ele dizia muitas vezes, não podia ser na Suíça, porque isso seria escolher um caminho de facilidade, quando havia situações tão difíceis a meia dúzia de quilómetros.
Viver uma vida por Cristo e pelo Evangelho significa vivê-la no coração do mundo e onde houver pessoas a sofrer e a precisar do testemunho cristão.
De facto não vivemos com os mesmos critérios que existem hoje na sociedade, mas levando um testemunho ao mundo de hoje.
AE – Sente-se em Taizé um ambiente diferente do que na sociedade. Se as pessoas são as mesmas, porque é que é tão diferente?
ID – Essa é uma questão que gosto de lançar às pessoas que vêm a Taizé. O que aqui vivemos não é algo fora da realidade. É evidente que aqui se torna mais fácil viver um espírito de abertura a Deus e ao próximo, de solidariedade, de entrega e de serviço, porque há um ambiente circundante que contagia.
Três vezes por dia tocam os sinos, todos se dirigem à igreja da Reconciliação, possivelmente, muitos sem pensarem no que estão a fazer, simplesmente vão atrás da multidão e deixam-se levar. Mas ao deixar-se levar, são espontaneamente conduzidos a uma proximidade com Deus, através da oração. Existe uma comunidade que reza. Esta oração trabalha mais as pessoas do que podemos imaginar.
Há muito que não depende de nós, que é trabalho dele. Quando as pessoas saem da oração, certamente saem transformadas por essa presença de Deus, por esse louvor a Deus que acabam de cantar, por se entregarem a Deus com o que têm e o que são. Não precisamos fazer de nós o que não somos, nem de nos transformar para ir à oração. Pelo contrário, vamos tal como somos e é essa oração que nos transforma.
Quando as pessoas saem da oração inserem-se num ambiente de grande fraternidade, de solidariedade, de respeito e atenção ao próximo. É algo que contagia.
Nesse sentido, é verdade que o que vivemos na sociedade muitas vezes não é isso. Se nos deixamos levar pelo ambiente à nossa volta, não somos levados a uma maior proximidade com Deus e abertura ao próximo, mas antes levados a viver centrados em nós mesmos, num espírito de competição e individualismo.
É preciso força de vontade para não nos deixarmos levar por todas as correntes à nossa volta. Temos de parar, ouvir o Deus profundo e seguir o que o nosso coração diz.
Mas o que vivemos em Taizé é também parte do mundo. O mundo também é assim.
AE – Mas é uma proposta de conversão? Propõe-se que a pessoa que faz a experiência de Taizé não volte igual?
ID – É uma proposta concreta de encontro com Cristo. Quando encontramos Cristo não voltamos iguais. Não é uma conversão única, mas um contínuo voltar para Deus. É um encontro com Cristo que nos marca cada vez que o encontramos e que aqui podemos viver de forma profunda e forte, mas que podemos continuar a viver quando regressamos a casa.
Viver em comunidade e do trabalho
[[i,e,415,Artesanato feito pelos irmãos de Taizé]]AE – Como é que a comunidade dos irmãos se organiza no seu dia-a-dia?
ID – Somos uma comunidade com cerca de 100 irmãos. Em Taizé vivem cerca de 70 irmãos. Temos quatro pequenas fraternidades nos países do Sul – Brasil, Senegal, Coreia e Bangladesh. As fraternidades correspondem ao desejo dos irmãos não viverem centrados na Europa, mas de irem ao encontro dos povos que vivem em situações difíceis e de grande pobreza. No fundo ser uma presença do Evangelho junto destes povos e uma parábola de comunhão.
A presença dos irmãos está também dependente das necessidades da altura do ano em Taizé. No Verão aumenta muito a procura. Durante os meses de Inverno, com menos pessoas, é possível animar encontros noutros locais e preparar os encontros anuais.
No concreto da vida, como irmãos, procuramos viver numa grande família e numa confiança mútua.
Desde o início, os irmãos sentiram ser chamados a viver exclusivamente do seu trabalho. Não vivemos do acolhimento, antes pelo contrário. Apoiamos as estruturas de acolhimento. Não vivemos nem de doações nem de heranças. Vivemos exclusivamente do que fazemos.
AE – Que trabalho é esse que fazem?
ID – Uma parte do dia da comunidade é dedicado às oficinas, onde fazemos olaria, peças em esmalte, na tipografia também a imprimir os livros, ou na oficina de vitrais. Todo o trabalho manual que fazemos é vendido na sala de exposição.
Em Taizé, e também nas fraternidades, o dia segue o ritmo das três orações. São momentos em que todos nos reunimos para ir ao essencial da nossa vocação, de forma simples. São os momentos de oração que vivificam o resto.
Temos também uma grande disponibilidade para acolher os que chegam a Taizé e viver a hospitalidade. Esta é característica que não estava no projecto do Irmão Roger. A ideia original era ser um sinal na Igreja e no mundo, através da vida dos irmãos.
Foi mais tarde, quase 20 anos depois de o Irmão Roger estar em Taizé, que começaram a chegar alguns grupos que pediam para ficar uns dias e partilhar as orações com os irmãos.
Alargar fronteiras
AE – Como é que isso aconteceu?
ID – No final dos anos 50 não havia nada aqui. Era um grande descampado. Os irmãos encontraram uma pequena casa, em Cormatin, a cinco quilómetros de Taizé, onde os jovens dormiam e, durante o dia, subiam a Taizé para participar nas orações dos irmãos. Não havia um programa organizado como actualmente.
Mas depressa os irmãos compreenderam que essa situação não era a ideal. Havia continuidade na presença dos jovens em Taizé, não exclusiva de algumas pessoas, mas visível na procura e na vontade de a juventude viver uns dias junto de uma comunidade.
Os irmãos começaram a questionar como poderiam acolher, sem querer destruir o que tinha sido construído como vida religiosa e comunitária, e como poderiam partilhar o que iam vivendo do Evangelho com as pessoas que os procuravam.
A pouco e pouco foram sendo encontradas formas de acolher em Taizé. Primeiro foi construído El Abiodh, uma casa para poder acolher as pessoas, depois foi o parque de campismo. Dez anos depois da sua inauguração, a igreja da Reconciliação tornou-se pequena demais e não era possível acolher todos, em especial na oração que é a parte mais central da nossa vida.
Por isso, os irmãos não tiveram medo de destruir a fachada da igreja, colocaram tendas à volta para acolher as pessoas que vinham, em especial no Verão. A fachada era muito bonita, com vitrais, mas o mais importante eram as pessoas, não o edifício. Isso esteve sempre muito presente no Irmão Roger. O Irmão dizia mesmo que «não somos guardiões de museus, mas jardineiros para lançar sementes de fé».
Quando a presença das tendas deixou de ser algo excepcional para ser a norma, da Páscoa até ao final do Verão, os irmãos pensaram em substituir as tendas por construções simples mas que permitissem acolher as pessoas de forma mais consistente.
No princípio dos anos 90, com a abertura das fronteiras dos países de Leste, o número de participantes duplicou.
[[i,e,461,Reflexão em grupos]]AE – E foi nessa evolução, que foram percebendo a necessidade de fazer uma proposta estruturada? A jovens, a adultos e a famílias, concretamente?
ID – Sim, foi algo que veio com o tempo. Com a experiência e com os erros que fomos fazendo. Percebemos que era importante ir ao encontro das pessoas. As questões de um jovem de 20 anos não são as mesmas de uma pessoa de 40. Daí a necessidade de adaptar o programa a diferentes faixas etárias.
Existe um programa para famílias que vêm com filhos com idade inferior a 15 anos mas apenas durante o Verão. No espaço Olinda conseguimos acolher 80 a 100 famílias. Há também uma zona para encontros de adultos, com mais de 35 anos, onde as reflexões são organizadas de forma diferente. Mas a grande maioria que vem são jovens, entre os 18 e os 25 anos.
AE – Vêm à descoberta ou à procura de algo em concreto?
ID – Há uma grande diversidade entre os jovens que chegam a Taizé. Alguns vêm à descoberta, outros porque um amigo lhes falou, outros ainda porque já conheceram.
AE – A comunidade é para todos…
ID – Sim, e é aberto. À chegada explicamos um pouco o sentido do que se vive em Taizé, o programa da semana e deixamos a pessoa livre. Se a pessoa perceber que não era o que procurava, está livre de ir embora. Ninguém é forçado a nada. Todos são bem-vindos. Mas é uma proposta muito concreta, para viver um tempo de paragem, de oração e reflexão e também de encontro com os outros jovens que chegam de vários pontos do mundo.
Cada Domingo é uma surpresa, ver a quantidade de autocarros que chegam. Questionamos como é possível chegarem tantos.
AE – E qual é a resposta que encontra?
ID – Não sei dar. Podemos talvez perguntar a alguns porque vêm. Alguns poderão responder que foi um amigo que perguntou, outro dirá que viu na Internet, outro dirá que leu um livro, ou ouviu na paróquia. A grande maioria penso que tem conhecimento de Taizé através de amigos.
Mas permanece o mistério de porquê virem tantos. Na Europa assistimos ao decréscimo de participação nas igrejas, menos jovens, e aqui é ao contrário, cada vez aparecem mais. Como explicar isto? Não sei.
Sem «movimento»
[[v,d,349,Celebração da Luz em Taizé]]AE – Pode dizer-se que há um movimento de Taizé?
ID- Quando começaram a chegar jovens a Taizé, os irmãos perceberam que não queriam formar um movimento, guardar os jovens num espécie de grupos de Taizé, mas oferecer uma hospitalidade gratuita. Os Irmãos queriam proporcionar uma experiência de Igreja, um espaço de encontro com Cristo, com as pessoas, consigo próprio, um espaço de reflexão, mas muito gratuito que ajudasse cada um a encontrar-se a si mesmo, para continuar a sua vivência cristã, na sua terra e na sua comunidade.
Há muitos grupos aos quais é preciso dar vida. A nossa vocação não é criar mais um grupo, mas ajudar os jovens a descobrir o que já existe, a procurar dar vida ao que já existe, a desenvolver coisas novas, se for esse o caso, mas com o apoio nas suas comunidades locais.
Procurando ser um espaço de comunhão, a nossa vocação não passa por criar um movimento. Queremos oferecer uma comunhão onde todos se sintam em casa e não formar um grupo onde nos fecharíamos em determinado carisma.
AE – A proposta é que as pessoas vivam esta experiência mas regressem aos seus locais e aí percebam o seu lugar?
ID – Exactamente. O Papa João Paulo II passou por Taizé, em 1986, e disse isso mesmo. «Passa-se por Taizé como se passa perto de uma fonte». O viajante chega, pára, sacia a sua sede e depois continua o seu caminho, refrescado pela sede saciada e com forças renovadas para o seu caminho.
Taizé é um sítio onde se pode descansar, o corpo e a mente, para poder continuar o caminho. É isso que procuramos oferecer aos jovens – um tempo de paragem para ir às fontes da fé, para ir ao essencial, para encontrar o sentido da nossa vida para, depois, regressarem às suas vidas e aí viverem um compromisso cristão, mais activo e com mais entusiasmo.
AE – Mas reconhece que para muitos esta é uma experiência finita? No regresso não levam esse compromisso…
ID – Digo muitas vezes aos que encontro em Taizé que não podemos viver uma experiência bonita, espectacular, como alguns dizem e, ao voltar a casa, querer copiar e colar à nossa realidade local, numa linguagem de Internet. A nossa vida não é assim. Cada experiência vale por si, no contexto onde se encontra.
O que vivemos em Taizé é também adaptado à situação que aqui temos, à presença de muitos jovens e de grupos internacionais. Quando vivemos um encontro internacional numa grande cidade, temos de adaptar, assim como numa pequena cidade.
Sem copiar, os jovens devem perguntar-se o que foi importante em Taizé: o que me marcou, porque é que a experiência foi bonita, o que me levou a saciar essa sede, e como posso viver esses aspectos na minha vida quotidiana?
Questionados por diversas dimensões que em Taizé lhes tocaram, os jovens devem inspirarem-se nessa experiência e adaptar o essencial à situação concreta em que se encontram.
Evidentemente, nós lançamos propostas. Somos como o semeador da parábola de Jesus. Mas, se o semeador quando lança a semente se põe a pensar «será que esta vai dar fruto ou morrer?», então não lança nada.
AE – A gratuidade está aí?
ID – É com uma grande gratuidade que fazemos este acolhimento em Taizé. Acolher quem chega, partilhar o que vivemos e, depois, deixar que as sementes cresçam. Mas tenho confiança. Sei que muita coisa boa cresce, outras coisas morrem, mas isso é inevitável. No entanto, o resultado final será certamente muito positivo.
«Inquietação vinda de Deus»
AE – Como é que o Irmão David descobriu que este seria o seu caminho para ir à fonte?
ID – Para mim foi mais do que ir uma vez à fonte (risos). Descobri que o meu lugar é aqui. Penso que o descobri a pouco e pouco. Não foi algo que surgiu de repente.
AE – Começou a pouco e pouco a vir a Taizé?
ID – O meu primeiro contacto com Taizé foi num encontro europeu em Roma, na altura eu tinha 15 anos. A minha paróquia organizava um grupo, que habitualmente se deslocava a Taizé e aos encontros europeus. Quando eu fiz 15 anos convidaram-me para participar e foi esse o meu primeiro contacto.
Fui sem saber o que era Taizé ou a comunidade. Na altura achei que era uma viagem que me interessava, apenas isso.
Em Roma gostei muito do que vivi. Os tempos de oração foram uma descoberta para mim. A forma simples de rezar, o ambiente, o ter espaço para nós próprios. Na altura, lembro-me de pensar, vi que era possível viver aquele tipo de encontro no meio da dispersão, inevitável de uma grande cidade, e perguntava-me como seria numa aldeiazinha como é Taizé.
Acabei por vir a Taizé com o grupo da paróquia e passei a vir regularmente no Verão. Mas quando vinha, na altura com 15, 16 ou 18 anos, nunca me passou pela cabeça que um dia viria a ser irmão na comunidade. Era uma experiência muito rica, quer a nível pessoal como para o grupo de jovens. Foi mais tarde que o questionamento surgiu.
AE – E como surgiu?
ID – Eu sou natural de Portalegre. Durante três anos estive a estudar em Lisboa. E quando fui para a capital, sem o procurar, naturalmente afastei-me do grupo de jovens porque já não estava tanto tempo em Portalegre. Sentia que como vivência cristã não me bastava ir à missa ao Domingo, queria mais. Mas, com o ritmo que tinha, de estudos, das viagens constantes entre Lisboa e Portalegre, de estar com família e amigos, percebi que isso não me bastava. A determinada altura tive necessidade de parar, de me encontrar.
Como conhecia Taizé escrevi aos irmãos e falei sobre a possibilidade de ficar não uma semana, como nos anos anteriores, mas durante as férias de Verão. Quando chegou o final das férias, em que eu deveria regressar para começar as aulas, senti que tinha sido demasiado rápido. Tinha chegado com algumas perguntas e ao fim de um mês e meio não tinha respostas. Tinha mais perguntas ainda. Sentia falta de espaço e de tempo para poder pensar e formular essas perguntas. Na altura achei que era importante continuar por mais tempo.
Fui a Portugal preparar as coisas, pensei interromper o curso por um ano e ficar uma temporada maior em Taizé. Foi já vários meses depois de aqui estar que, tendo-me identificado tanto com o que aqui encontrei e estava a viver, espontaneamente começou a surgir a questão: «Será que não é isto que eu quero?»
Com o tempo, a pouco e pouco, fui compreendendo que de facto era isto que eu queria e acabei por ficar.
AE – Já lá vão 15 anos. O que mudou em si?
ID – Diria que estou mais consciente do que sou. Vivemos num mundo cheio de solicitações e deixamos de ouvir o que temos dentro. Taizé ajuda-nos a ter um espaço de liberdade para sermos nós próprios. Não criamos máscaras para nos apresentarmos, mas vivermos como somos.
Estou aqui há mais de 15 anos. Por um lado é como se tivesse sido ontem. O tempo passa muito depressa. Mas ao mesmo tempo, já se viveram tantas coisas em Taizé. Foram anos muitos preenchidos.
AE – E em que é que a comunidade mudou nestes 15 anos?
ID – De certa forma não mudou nada e mudou tudo. No essencial não há diferenças. Quando encontro pessoas que estiveram em Taizé há muito tempo e depois voltam, dizem isso mesmo. No fundo nada mudou.
O mesmo ritmo de vida centrado nas orações, a mesma atenção à pessoa, a mesma vivência de fraternidade, de reconciliação de comunhão. Ao mesmo tempo as situações vão evoluindo e, por isso, adaptamo-nos às exigências que mudam.
AE – Sem perder o essencial?
ID – Que é a simplicidade. Procuramos, com muito poucos meios que temos, dar respostas a exigências, permanecendo na simplicidade. E procurando utilizar a simplicidade com criatividade.
AE – O Irmão Alois escreveu na carta do Quénia que Deus nos perturba e nos vai fazendo mudar de planos. Isso acontece consigo?
ID – Sem dúvida. Eu estudava, pensava seguir a minha vida numa determinada direcção e, de repente, sem sentir nenhuma pressão, surgiu uma inquietação interior. Hoje olhando para trás, acho que essa inquietação veio de Deus.
AE – A comunidade tem uma marca muito humana na hospitalidade e acolhimento que faz. Essa marca é estrutural e imprescindível nos dias de hoje?
ID – O esforço é de acolher de forma muito humana. Há marcas que ficam quando o acolhimento é feito com naturalidade.
Portugueses dão testemunho de fé
[[i,e,367,Membros do grupo de Regueira de Pontes na fila para a refeição]]AE – Essa ligação é também muito especial com os portugueses. O Irmão David mantém uma relação, natural dada a sua nacionalidade, mas intencional na proximidade que se instala?
ID – A comunidade pediu-me para ser um pouco referência para os portugueses que chegam a Taizé. É com grande alegria que eu vejo que há muitos portugueses a chegar a Taizé. Não é um aumento que duplique ou triplique, mas cada vez chegam mais.
Penso, sobretudo, que as pessoas que vêm a Taizé levam algo da sua experiência. É uma marca de autenticidade. Não são palavras bonitas que ouvimos, numa palestra ou num workshop. É uma experiência concreta que se vive. Uma experiência que tem, depois, espaço para o convívio, para o contacto com as pessoas, para a oração e reflexão. Mas que ultrapassa tudo isso e não se define apenas por uma dessas dimensões.
AE – Em 2010 a comunidade de Taizé desloca-se, pela segunda vez, a Portugal. Inserida na Missão 2010 da diocese do Porto, vão organizar um encontro ibérico no Carnaval. Como surgiu esta proposta?
ID – Para nós é uma grande alegria regressar a Portugal. No seguimento do que se viveu há cinco anos atrás. E já tinha havido outras experiências mais pequenas.
AE – Correu bem o encontro de 2004?
ID – Essa experiência foi muito positiva, tanto para nós, que preparámos e vivemos o encontro de forma profunda, como para os jovens do resto da Europa que participaram.
Ainda hoje continuamos a ouvir testemunhos de jovens que participaram no encontro em Lisboa e que foram marcados pelo testemunho dos portugueses. Um testemunho de acolhimento, de hospitalidade, mas também de fé.
A experiência nas paróquias, que decorreu de manhã, foi marcante. Os ecos que nos chegaram foram de um verdadeiro acolhimento dos jovens locais que participavam nos grupos, nas orações. Muitos dizem ser difícil e raro, em alguns países, encontrar jovens nas paróquias.
Os portugueses deram um testemunho de fé a nível europeu que se resume a uma vivência cristã. Quando olhamos para a situação em Portugal achamos que é pouco e que se reduz a uma minoria. Mas essa minoria vai e está presente. E os portugueses sabem fazê-lo com entusiasmo e alegria.
AE – Quanto ao encontro ibérico, como surgiu?
ID – O convite partiu de D. Manuel Clemente que, no contexto da Missão 2010, nos questionou sobre a possibilidade de participarmos na iniciativa. Junto das estruturas de pastoral juvenil e universitária, procuramos encontrar uma proposta para esse encontro ibérico. Veremos a receptividade, mas os portugueses com quem temos contacto têm-se mostrado muito abertos a esta ideia e com vontade de participar.
AE – Será um encontro especificamente para portugueses e espanhóis?
ID – Sobretudo para eles, sim. Não vamos, evidentemente, excluir a participação de outros, mas é uma altura do ano em que, sabemos, será mais difícil outros deslocarem-se.
AE – É normal organizarem-se encontros mais pequenos?
ID – Não nos fechamos numa única fórmula. Mas é verdade que nos últimos anos, têm surgido mais encontros regionais. Há pouco mais de 30 anos surgiu a tradição do encontro europeu no final de ano que, posteriormente, foi alargado a encontros intercontinentais mais regulares.
Depois da morte do Irmão Roger surgiu o convite para um encontro na Índia e o Irmão Alois considerou ser importante aceitarmos o convite para concretizar o apelo deixado pelo próprio Irmão Roger no dia da sua morte, de encontrarmos formas de alargar a Peregrinação da Confiança.
Agora, em cada ano, temos encontros intercontinentais. Isto é algo que vamos continuar a organizar. Há jovens de outros continentes que vêm a Taizé e não têm possibilidade de ir aos encontros europeus no final de cada ano. O próximo encontro intercontinental será nas Filipinas.
Começaram a surgir tantos convites para encontros que considerámos importante encontrar outras formas e não ficarmos fechados na fórmula do encontro europeu. Ter encontros mais pequenos envolve mais os jovens locais. Temos percebido que os jovens gostam que lhes confiemos responsabilidades. Não basta convidar os jovens, mas confiar-lhes coisas práticas.
Constantemente temos essa experiência em Taizé. Se os envolvermos, os jovens aderem e sentem-se parte integrante do que está a ser preparado. Nos encontros mais pequenos essa dimensão pode ser potenciada.
AE – Com o desaparecimento do Irmão Roger houve a necessidade de um período de transição, para as pessoas sentirem que o essencial de Taizé não se perdia?
ID – Acho que foi tudo muito natural e de uma grande continuidade. Não notei uma fase de transição.
É evidente que o fundador da comunidade tinha uma presença especial e permaneceu Prior da comunidade até ao final da sua vida com uma presença, apesar da sua idade, muito visível quer na animação da vida da comunidade como entre os jovens.
Todas as noites ele ficava na igreja a conversar com os jovens que se dirigiam a ele. Lembro-me de o ver ficar com as pessoas e a falar longamente com quem precisava. No final tinha já dificuldade em ouvir, em compreender e a comunicação era mais limitada, mas ele queria sempre ficar, nem que fosse para rezar um bocadinho com cada jovem que viesse ter com ele.
O Irmão Roger tinha a preocupação de acolher pessoalmente e fê-lo até ao dia em que morreu. É evidente que tinha e continua a ter uma presença muito importante na comunidade. Mas simultaneamente, o Irmão Roger foi capaz de preparar essa transição de forma natural e discreta, sem darmos conta.
Foi um choque para todos, pela forma como as coisas aconteceram, mas o essencial estava preparado.