Uma semana para falar da ressurreição

O especialista de estudos de mercado Carlos Liz explica que a Páscoa sendo uma marca forte, é tímida, porque perde força no anúncio. A Igreja deveria investir numa nova linguagem e numa semana, à semelhança da Semana Santa, dedicada à ressurreição.

Agência Ecclesia (AE) – A marca «Páscoa» é apelativa?

Carlos Liz (CL) – A ressurreição é um tema muito forte e inesperado na vida das pessoas, das sociedades e da História. Creio que uma das dimensões mais interessantes da Igreja é assumir a sua originalidade, a sua diferença sobre muitas outras coisas que acontecem no mundo.

A ressurreição é uma intervenção direta, visível, extraordinária de Deus na História dos homens, muito mais forte do que o Natal, por exemplo. Nessa época nasce uma criança especial que, sabemos nós ao que vinha e para onde ia. Existe uma certa normalidade com o Natal que não existe na Páscoa, por isso é uma grande oportunidade para comunicar o transcendente no máximo da sua força.

O percurso de vida de Cristo, com uma intervenção de Deus na anulação da morte e na criação da vida, é um caso único. Do ponto de vista do marketing, esta é uma marca sem comparação. As marcas são boas quando se conseguem distinguir umas das outras, quando os consumidores conseguem distinguir o melhor e o parecido com as demais. A marca ressurreição é única.

O que pode acontecer, por a Igreja ter perdido importância no mundo contemporâneo, este extraordinário acontecimento dilui-se e os católicos não tiram, penso eu, todo o partido que deveriam tirar desta intervenção do divino na História.

É uma marca muito forte, mas muito tímida, do ponto de vista da comunicação.

AE – A estranheza advém da falta de abertura ao transcendente?

CL – De fato a ressurreição não é parecida com nada. Por muito que se tivesse escrito, que houvesse uma história de salvação, que se acreditasse do ponto de vista racional, uma coisa é prever, outra é ver.

A Páscoa é uma marca identitária da presença de Deus, é a marca do Deus, tal como os cristãos entendem a abordagem do divino. Desse ponto de vista percebemos o porquê de os textos sagrados falarem da centralidade da ressurreição, da importância da semana santa em que cada dia e hora contam. Há um culminar no domingo de Páscoa. É uma narrativa interessante e com muita audiência, com certeza, se fosse contada corajosamente, como esta presença de Deus junto dos homens. Nem sempre é.

AE – Falta uma afinidade pública, utilizando expressões da área publicitária? Que ingredientes faltam para tornar a mensagem comum?

Falta sobretudo romper a linguagem habitual. Um dos grandes problemas na nossa Igreja e de todos nós é a circularidade da linguagem, ou seja, vamos repetindo, fazendo pequenas variações e dá a impressão que já todos ouviram. Como não conseguimos ser inovadores na forma de comunicar, frequentemente tem-se a sensação de ciclo repetido. Esta revolução trazida pela ressurreição acaba por ficar diluída dentro de um discurso já ouvido.

Talvez o primeiro exercício fundamental para que a ressurreição atinja toda a plenitude e seja um instrumento de serviço na evangelização é ter a coragem de inovar, de dizer de outra maneira e nesta procura, encontrar novos ângulos e com isso atrair novos públicos.

Nos discursos oficiais, do Papa dos bispos, que são obviamente cheios de sentido, o sistema mediático pega em mini extratos, que são normalmente pequenas sínteses que já ouvimos. Há uma necessidade de conversão linguística.

AE – Falamos de incapacidade de linguagem ou de incapacidade de a ligar à vida pessoal?

CL – Quando penso na Páscoa e nesta força fora do comum, estou pouco preocupado com a vida pessoal de cada um. Digo isto de propósito. Claro que todas as coisas do Evangelho têm de ser aplicadas na minha vida pessoal, tem de se perder algum tempo a dizer como é bom morrer para o pecado (e estou a cair em linguagem instalada), falar como é bom retomar um novo ciclo. Mas o que me parece importante é que se há um momento ao longo do calendário do ano civil em que eu posso falar de Deus com intervenção direta é agora.

Nascer e morrer pode acontecer com todos, no ressuscitar a intervenção é de Deus. A Páscoa, relacionando-se com um homem que aceitou ser concreto, é o grande palco de intervenção do divino ao seu mais alto nível.

Eu estaria mais interessado em demonstrar a Páscoa como essa grande intervenção do grande divino, do que procurar ilações para a minha vida, que existem com certeza.

AE – A publicidade vende imagens de alegria, imagens perfeitas. À Páscoa chegamos carregados de 40 dias de renúncia. Pode ser esta uma condicionante para que o discurso da alegria pascal não se transforme numa marca visível na vida das pessoas?

CL – Seria se a Igreja tivesse essa influência. Talvez para quem faz jejum, para quem anda 40 dias a refletir sobre a vida, mas esse é um período para os convertidos. A publicidade trata a sociedade em geral e eu não tenho a certeza de a sociedade estar assim sensibilizada para essa gramática do sofrimento. Creio que uma boa maioria da sociedade atualmente não nota esse percurso, portanto não vejo algum tipo de penalização.

Acho sim que antes da alegria, a comunicação da ressurreição deveria centrar-se na surpresa e no poder do transcendente. Sem medo de saber que na sociedade há quem não acredite, quem tenha muitas versões. O que é identitário, o que é novo e escapa ao programa, o que nenhuma religião tem para oferecer é esta capacidade de ressuscitar e com isso provar que aquele homem era filho de Deus. Isso é mais do que a alegria.

Esse é o grande momento de Deus aparecer na História. Se o comunicar com força, mesmo que não seja seguida, pelo menos mostra claramente que é aquilo. A ressurreição é a razão de ser da Igreja cristã como a percebemos.

O que há a comunicar, mais do que a própria vida humana de Jesus, é o poder imenso de Deus.

AE – O Natal constituiu uma marca já instituída?

CL – Sim, porque menos problemática. É profundamente humana, tem toda uma narrativa com personagens que reconhecemos – uma mãe, um pai, testemunhas, tem uma localização, é um nascimento que tem um significado sempre muito positivo. Por isso é uma marca universalmente aceite, por crentes e não crentes.

É muito diferente da marca Páscoa. Fundamental no marketing é a clareza das propostas de valor, ou seja, as pessoas perceberem exatamente o que aquilo é, o que significa, para que serve na minha vida. O Natal apresenta ideias claras, a Páscoa não tanto. A sua integração e proposta de valor são menos claras.

Na Páscoa talvez o peso entre o humano, o sagrado e o divino esteja ainda desequilibrado. Pega-se muito na personagem histórica e quase que não há espaço para saborear essa transformação e intervenção direta de Deus na história. Essa é a novidade da Páscoa. Essa novidade é que parece infra comunicada.

AE – Porquê a dicotomia Norte/Sul? Um fim de semana prolongado ou as procissões e imagens públicas que marcam este tempo? Existem duas sociedades diferentes?

CL – Na análise sociológica do país existem de facto diferenças significativas, não apenas neste campo religioso, entre o Norte e o Sul, no interior e litoral, ou urbano versus rural.

Se em Lisboa não há procissões e há um fim de semana prolongado, eu diria que no Norte há uma espécie de fim de semana prolongado com procissões.

Sabemos que existem diferentes níveis de adesão a fenómenos de religiosidade, diferentes ligações a igrejas paroquiais, mas seja o fim de semana prolongado, consequente do laicismo que se foi instalando, seja no campo das procissões, estamos perante um facto curioso que é a presença de um tempo diferente do habitual.

 A Semana Santa marca um tempo diferente do restante ano e por isso, há da parte das audiências um tempo especial de escuta para algo novo. As procissões, no tempo do sofrimento, têm uma desproporção enorme comparado ao tempo da ressurreição, onde não há uma procissão ressuscitadora. Há a vigília pascal, com a luz de Cristo, mas estão desproporcionadas em relação ao percurso mais cénico da reconstituição dos últimos dias de Jesus.

Do ponto de vista da comunicação seria importante ter uma semana inteira, logo após a ressurreição, a saudar a intervenção de Deus na História. Valeria a pena pensar, em termos comunicacionais, o que fazer com esta ressurreição.

Do ponto de vista simbólico, de criar narrativas para a sociedade, temos muito de sofrimento, e pouco de ressurreição.

AE – Devolvia-lhe a pergunta – o que fazer com a ressurreição em termos comunicacionais?

CL – A semana a seguir à ressurreição seria, a meu ver, uma semana para falar de Deus e não continuar a falar de Jesus Cristo, e fazê-lo num tom de reconhecimento de que a humanidade conta com um aliado poderoso – cada vez mais a sociedade está disponível para ouvir explicações e formas de ver o mundo que ultrapassam a vulgaridade e está aberta a um divino.

Há esta grande oportunidade de Deus falar por ele próprio – o porquê de enviar o seu filho, de ele morrer, e porque é que o ressuscita e o chama para si e com isso chamar a humanidade com ele. É a grande oportunidade para a Igreja apresentar a sua visão de sentido numa sociedade em que o tema do transcendente faz parte da procura de sentido que fazemos. Deveria ser um tempo de abertura, de porta dos gentios, uma grande semana de síntese sobre o que é o projeto de Deus para a humanidade.

AE – Há sinais de que isso possa estar a acontecer?

CL – A Igreja tem-se mantido em contato permanente com a sociedade, não desiste da sociedade, e isso é bem feito. Vejo sinais e possibilidades – utilização plena da televisão e da rádio, a Internet, a imprensa, ou seja, a Igreja tem meios suficientes para fazer isso. Se o constante atualizar da linguagem e dos meios de comunicação significa uma vontade da Igreja não desiste e estar atenta, então sim há sinais.

Como técnico de estudos de mercado digo que há ainda mercado para falar da ressurreição ao mundo. A tese é que deveria ser feita agora, no tempo da ressurreição, porque é a prova que Deus intervém e muda tudo. 

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