Uma nova Geografia eclesial

O Cónego António Janela, diretor do Instituto Diocesano de Formação Cristã (Lisboa) recorda a criação de duas dioceses a partir do território do Patriarcado, em 1975, e sublinha a progressiva desertificação de um grande centro, que desafia a Igreja Católica a encontrar novas formas de presença da Igreja no mundo urbano

Agência ECCLESIA (AE) – A 16 de julho de 1975, do Patriarcado de Lisboa nascem duas novas dioceses: Setúbal e Santarém. Acompanhou e recorda-se do desmembramento?

Cónego António Janela (AJ) – Tenho bem viva a memória da pré-história do nascimento destas duas dioceses. Após o encerramento do II Concílio do Vaticano vivemos um período de certa tensão. Logo em 1966, no ano seguinte ao encerramento, havia uma certa inquietação (no sentido de não ficarem quietos) no clero novo. Esperavam a renovação conciliar. O patriarca da altura, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, prolongou um bocadinho o silêncio.

Nessa altura constituiu-se um grupo que tinha referência à famosa casa da Bela Vista à Lapa. Ligada aos padres da Ação Católica. Por acaso, estava lá nessa altura porque fazia parte de uma equipa de professores de religião e moral, liderada pelo padre Alberto Neto.

 

AE – Nessa altura criou-se uma comissão…

AJ – Sim. Uma comissão «ad hoc» que propôs ao patriarca para se elaborar um plano de renovação pastoral da diocese. O patriarca criou, realmente, uma comissão com nomes que ainda conheci pessoalmente: cónego Manuel Falcão (depois foi bispo auxiliar de Lisboa e mais tarde bispo de Beja), padre Armindo Duarte, o padre Álvaro Proença (pároco de Nossa Senhora do Amparo, em Benfica), padre José Serrazina (ligada à pastoral da Ação Católica) e outros…

Eles fizeram uma proposta com o intuito de agilizar esta renovação pastoral. A diocese, para além das estruturas das paróquias e vigararias, devia ter outro enquadramento. Na altura criaram-se três regiões: Lisboa (dividida em sub-regiões), Santarém e Setúbal.

 

AE – Essa divisão foi o embrião para o nascimento das dioceses de Santarém e Setúbal

AJ – Foi a estrutura embrionária daquilo que mais tarde, em 1975, vai resultar na formação das novas dioceses.

 

AE – Foi um processo lento…

AJ – Sim. Sim… e depois havia sempre aquela coisa de fazer do Oeste uma diocese.

 

AE – Essa proposta já foi esquecida?

AJ – Enquanto estiver um torriense no Patriarcado, se calhar não vai… (risos). Hoje, as distâncias rapidamente são ultrapassadas.

 

AE – Mas têm diferentes marcas sociológicas.

AJ – O Oeste começa a estar urbanizado. Quando vamos a Peniche ou a Torres Vedras estamos num ambiente urbano. A distinção entre urbano e rural vai ser ultrapassada. Atualmente, o modo de viver já se define por outras categorias.

 

AE – As diocese de Setúbal e Santarém celebram 40 anos. Foi difícil esse nascimento?

AJ – Não foi difícil. Depois das reuniões realizou-se, em 1969, a primeira assembleia do clero, onde já estavam implementadas várias medidas feitas pela tal comissão preparatória. A figura dominante neste processo todo é o cónego Manuel Falcão que depois vai ser nomeado bispo auxiliar de Lisboa. A primeira assembleia do clero de Lisboa, pode-se dizer, é o início da sinodalidade no Patriarcado.

 

AE – Estava assessorado por outros padres.

AJ – Sim. Estava rodeado de gente muito válida. O padre Mafra foi o homem que nos legou a memória disto tudo. Está publicado num livro do Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) da Universidade Católica Portuguesa e na revista «Lusitânia Sacra». É nestes documentos que recordo o que vivi na altura porque depois estive ausente de 1969 a 1973.

 

AE – Como é que delinearam as fronteiras?

AJ – Isso estava previsto. Muitos padres, alguns meus colegas de seminário, quando foi a divisão oficial ficaram em Setúbal. Estou a recordar o padre Fernando Belo. O mesmo aconteceu com a diocese de Santarém. As dioceses começaram com o clero que lá estava.

Durante muito tempo, até aos anos 90, os seminaristas de Setúbal e Santarém frequentavam o Seminário dos Olivais, em Lisboa. Ainda hoje, Santarém recorre muito às estruturas da Diocese de Lisboa.

 

AE – O Rio Tejo foi uma divisão natural para a formação da Diocese de Setúbal, excluindo o monumento a Cristo-Rei e o Seminário de Almada.

AJ – Sim. Mas depois tudo isso foi resolvido, creio que no tempo de D. José Policarpo, como patriarca de Lisboa. No entanto é preciso sublinhar que eram encargos muito pesados para uma diocese que estava a nascer.

 

AE – Quem esteve muito ligado aos primórdios das Diocese de Setúbal foi o cónego João Alves.

AJ – Sim. Depois vai para bispo de Coimbra e teve como coadjutor D. Albino Cleto que esteve também envolvido no processo. D. João Alves era um homem muito organizado e que teve um papel muito importante no processo do padre Felicidade Alves. Tudo isso se passa nos finais dos anos sessenta.

Neste processo de divisão também devo destacar o padre Armindo Duarte. Teve um grande empenho na renovação. A própria Diocese de Lisboa foi também dividida em zonas pastorais que, ainda hoje, de algum modo, perduram. Foi um outro modelo que começou a surgir.

 

AE – E o nome incontornável para a formação da Diocese de Santarém? D. António Campos?

AJ – Sim… (Risos). Até se conta que quando atendia o telefone dizia: «António Campos, bispo de Santarém. Ai se o senhor patriarca soubesse». (Risos)

 

AE – O primeiro bispo de Santarém também tinha o nome de António…

AJ – Mas era franciscano, D. António Francisco Marques. Ainda o conheci como provincial da ordem. Foi um homem notável.

No entanto, volto a falar de D. Manuel Falcão. Ficará na história, como uma referência da sociologia moderna e de todas estas iniciativas.

 

AE – O cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira aceitou, facilmente, esta divisão?

AJ – No início, aquele silêncio foi perturbador. O cardeal, além de ser um príncipe no trato, era um homem extremamente afetivo na relação pessoal. Com grupos era mais difícil… Era fruto de uma certa mentalidade. Com iniciativas de grupos, ele assustava-se um pouco.

O concílio pedia uma renovação e, passados 50 anos, essa renovação ainda se está a realizar. Veja-se a atualidade dos documentos conciliares. Alguns pontos ainda não estão explorados.

 

AE – A velocidade de execução não foi igual em todas as dioceses?

AJ – Sim. Em Lisboa, o processo da crise desencadeou-se mais rapidamente do que noutras dioceses.

 

AE – As filhas ribatejana e sadina desligaram-se, completamente, do pai patriarcal?

AJ – Enquanto iniciaram este processo ficaram muito ligadas a Lisboa. Não podemos esquecer que o clero foi formado no patriarcado. Em relação à celebração da liturgia, os padres «apanharam» a memória de monsenhor Pereira dos Reis e depois o cónego José Ferreira. Depois, pouco a pouco, estas dioceses começaram a criar a sua identidade própria.

 

AE – O carisma dos primeiros bispos deixou marcas, tanto em Setúbal como em Santarém.

AJ – Em relação a Setúbal, aquela década de 80 foi difícil. A posição de D. Manuel Martins, o bispo vermelho, foi essencial. Ele antecipou, um bocadinho, o nosso Papa Francisco em muitas coisas: estilo e denúncia. O primeiro bispo de Santarém foi discreto, mas de extrema importância.

 

AE – Olhando para o panorama eclesial, a falta de clero requer uma nova reorganização pastoral?

AJ – Não tenho dúvidas nenhumas. Não é apenas uma questão de organização, mas também de mentalidade e de perspetiva. Tenho esperança que o Sínodo de Lisboa seja capaz de rever aquilo que a sociedade civil já reviu. Esta revisão não pode ser feita apenas na secretaria. Deve ser um trabalho de base que passa muito pelo laicado.

 

AE – E as vocações?

AJ – Essas dependem muito da consciência de seara.

 

AE – É a diocese que faz o bispo ou o bispo que faz a diocese?

AJ – As duas coisas. 

 

 
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