Intervenção de D. Manuel Clemente no Fórum Interdisciplinar de Professores e Investigadores
Uma Igreja “renovada”, antes de mais e sempre, pois essa é a sua verdade constante. Renovação ou reforma (= retoma da forma inicial), são para a Igreja necessidades vitais, porque só pode existir e subsistir na “fonte”.
As passagens evangélicas são esclarecedoras desta consciência e necessidade, como estavam bem vivas na primeira comunidade cristã. Valha por todas, esta referência ao Evangelho segundo João, 15, 4 ss. Fala Jesus aos discípulos, daquele e de qualquer tempo: “Permanecei em mim, que Eu permaneço em vós. Tal como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, mas só permanecendo na videira, assim também acontecerá convosco, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira; vós os ramos. Quem permanece em mim e Eu nele, esse dá muito fruto, pois, sem mim, nada podeis fazer”.
São palavras incisivas e claras, devendo ser constantes na memória viva dos crentes. Mas talvez aconteça com elas o que é próprio das coisas luminosas e oferecidas – como a água, o ar ou a luz – que mais se fruem do que consciencializam. No imediato, a tendência é vivermos de nós e por nós, quando não mesmo só para nós, e não de Deus para Deus. Por isso mesmo, as crises da Igreja são basicamente crises de esquecimento de si própria, enquanto graça divina para se realizar segundo Deus.
Podemos verificar sem grande custo que as épocas de pouca intensidade própria e escassa expansão eclesial são datas de pouca escuta da Palavra e pouca correspondência orante e caritativa, ou seja, de pouca relação, pouco amor, pouco acolhimento a Deus que “fala” e aos outros que esperam. Consequentemente, de pouca expressão e expansão.
Nem foi preciso esperar muito tempo… No fim do século I, já a Igreja de Éfeso ouvia estas palavras do Vidente de Patmos: “Tenho uma coisa contra ti: abandonaste o teu primitivo amor. Lembra-te, pois, donde caíste, arrepende-te e torna a proceder como ao princípio. Se não procederes assim e não te arrependeres, Eu virei ter contigo e retirarei o teu candelabro do seu lugar” (Ap 2, 4-5). E a de Sardes: “Recorda o que recebeste e ouviste. Guarda-o e arrepende-te” (Ap 3, 3).
Pelo contrário, a Igreja de Filadélfia guardava e anunciava a Palavra, merecendo o elogio: “Vê, coloquei diante de ti uma porta aberta [exactamente para a pregação evangélica], que ninguém pode fechar. Tens pouca força, mas guardaste a minha palavra e não renegaste o meu nome. […] Porque guardaste a minha palavra com perseverança, também Eu te guardarei na hora da provação […]. Venho em breve: guarda o que tens, para que ninguém te arrebate a tua coroa” (Ap 3, 8 ss). Como se dissesse: quem guarda a Palavra, guarda-se nela, aguardando activamente o seu cumprimento cabal.
Como sabemos, a Igreja dos primeiros séculos viveu e definiu-se como transmissão viva da Palavra divina. Nascia da pregação e vivia da pregação, despendendo aliás muita energia e cuidado para manter certa e definida a tradição apostólica. Assim rejeitando o que não coincidia com o seu núcleo inicial e garantido, assim rejeitando o que o contrariasse, assim apurando a sucessão dos responsáveis eclesiais, como cadeia legítima de guardiães da Palavra: de Inácio de Antioquia a Ireneu de Lião e deste último aos primeiros concílios ecuménicos, é sempre de autenticação pela Palavra guardada que as Igrejas tratam.
Também por isso, a Igreja dos Padres é a Igreja da patrística e do catecumenado, em função da Palavra transmitida, aceite e cumprida. Mesmo quando o não fosse praticamente, era-o sempre ideal e insistentemente. Foi-o também martirialmente, pois esta palavra que lhe adoçava a boca também lhe podia amargar as entranhas (cf. Ap 10, 8 ss).
No final do Império, poderemos dizer que a Igreja estabelecida foi menos ouvinte da Palavra que a guardara. Na viragem do século IV para o V, queixava-se Agostinho de que, quando ia pregar a Cartago, lhe preferiam o teatro e o circo… E os imperadores – como podem demonstrar as respectivas variações nicenas e anti-nicenas do século IV – estariam mais propensos a guardar o Império a pretexto da Palavra (dogma) do que a Palavra como esteio do Império, como quereria o mesmo Agostinho, rumo à “Cidade de Deus”.
No século VI e aqui mesmo em Braga, queixava-se Martinho de Dume que os “cristãos” locais se manifestavam mais atreitos a crenças ancestrais do que à novidade evangélica (De correctione rusticorum); e, mudando desse século para o seguinte, Gregório Magno dirá em Roma que estando o mundo cheio de sacerdotes, não havia quem pregasse a Palavra…
Porém, meio século antes, tinha começado Bento de Núrsia a renovar a Igreja com a sua própria experiência feita Regra monástica e assim mesmo oferecida a quem sinceramente a seguisse. Regra definida precisamente pela “escuta” da Palavra, pela sua plena e persistente assimilação, convertendo o monge e o mosteiro em “lugar” de acolhimento de Deus e do próximo, de Cristo em cada próximo, habitual ou adventício.
Os mosteiros criaram a Europa que conhecemos, do Atlântico aos Urais e do Mediterrâneo ao Mar do Norte, em torno da Palavra ouvida, rezada e cantada, feita pão do espírito e do corpo, para indigências várias. Os povos de fora ou por cima do antigo Império, eram “bárbaros” por não falarem grego nem latim. A Palavra essencial unia-os agora, mesmo que as diversas línguas os desentendessem.
Idealmente, repito; mas também praticamente, constate-se, pois a Cristandade foi um facto, pesem embora as suas muitíssimas contradições. Facto actual, pois ainda vivemos da sua herança, na valorização básica das coisas e dos outros, tão influenciada pelas parábolas de Cristo.
Andemos mais depressa. Somente para verificar que a terceira evangelização da Europa – a seguir à dos apóstolos e à dos monges – foi feita pelos pregadores evangélicos que, à maneira de Francisco de Assis, nada queriam senão isso mesmo, ou seja, ir de terra em terra a lembrar uma Palavra demasiado esquecida.
Foram continuados, três séculos depois, pelos reformadores quinhentistas, todos homens da Palavra, mesmo quando divididos: do “sola Scriptura” de Martinho Lutero às catequeses de Bartolomeu dos Mártires, há grande diferença na moldura eclesial, mas há certa proximidade na prevalência da pregação.
Foi essa – no campo católico – uma das notas da “nova evangelização” que preencheu os melhores momentos da Idade Moderna, em repetidas missões populares que acordavam ciclicamente as comunidades em novo alvoroço evangélico, de conversão a Deus e reconciliação de vizinhos. Os seus melhores frutos ficaram no coração e na vida de tanta gente que, mesmo permanecendo analfabeta, soletrava os acontecimentos e a vida segundo os ensinamentos evangélicos: a vida como redenção, os outros como apelo à caridade, o sofrimento e a morte vividos em esperança pascal…
E assim chegámos quase até nós. À “Igreja renovada e operativa”, segundo o tema desta mesa-redonda. Antes de mais, no actual estado de coisas, assim rapidamente verificável e enunciável: grande pulverização das convivências tradicionais, familiares ou outras; fraca consistência de valores comuns e aceites; refluxo individual de escolhas e percursos, com pouca aceitação de autoridades e instituições; passagem frequente do egoísmo do consumo ao egoísmo do recurso, do quanto mais melhor ao qualquer coisa serve… Poderíamos continuar a toada, sem adiantar muito com isso. Nem serve culpabilizar ninguém com a culpa ou desculpa de todos.
Constatemos antes, com Bento XVI, a necessidade “duma nova síntese humanista” (Caritas in Veritate, nº 21), precisamente a partir da humanidade de cada um, enquanto possibilidade e necessidade de desenvolvimento harmónico, inter-pessoal e ecológico. E isto mesmo, à luz da Palavra encarnada e reencontrada, n’Aquele que “disse e fez”.
Para quase terminar com as recentíssimas palavras da exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini, nº 96: “Na alvorada do terceiro milénio, não só existem muitos povos que ainda não conhecem a Boa Nova, mas há também muitos cristãos que têm necessidade que lhes seja anunciada novamente, de modo persuasivo, a Palavra de Deus, para poderem assim experimentar concretamente a força do Evangelho. Há muitos irmãos que são ‘baptizados, mas não suficientemente evangelizados’. É frequente ver nações, outrora ricas de fé e de vocações, que vão perdendo a própria identidade, sob a influência de uma cultura secularizada. A exigência de uma nova evangelização […] deve-se reafirmar sem medo, na certeza da eficácia da palavra divina. A Igreja, segura da fidelidade do seu Senhor, não se cansa de anunciar a boa-nova do Evangelho e convida todos os cristãos a redescobrirem o fascínio de seguir Cristo”.
Igreja renovada e operativa: renovação na Palavra e operação da Palavra em nós para os outros, de todos para todos, da Igreja para o mundo. Como Paulo escrevia aos colossenses: “A palavra de Cristo habite m vós com toda a sua riqueza: ensinai-vos e admoestai-vos uns aos outros com toda a sabedoria […]. E tudo quanto fizerdes por palavras ou por obras, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando graças por Ele a Deus Pai” (Cl 3, 16-17).
Braga, 20 de Novembro de 2010
Manuel Clemente, Bispo do Porto