Pe. Domingos Pestana, Missionário Dehoniano
A missão que nasceu do nada
Cheguei a Angola no dia 5 de março de 2004. Vinha de Portugal, com o coração cheio de entusiasmo e a missão clara de, juntamente com três confrades, implantar a presença da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos) em terras angolanas. Fomos acolhidos no Bairro do Km 9/A, um dos mais pobres de Luanda. À nossa chegada, tudo estava por fazer — não havia estruturas, nem referências. Mas o essencial já lá estava: um povo com uma fé viva, que nos acolheu com uma alegria desarmante.
Apesar das marcas da guerra ainda visíveis nas ruas, nas casas e nos olhos de quem encontrávamos, havia uma esperança e um calor humano que nos tocou desde o início. Faltava tudo… mas Deus estava lá. Com Ele, começámos.
Caminhar com o povo, entre o povo, como irmãos
Instalámo-nos na Diocese de Viana (desmembrada da Arquidiocese de Luanda em 2007), onde fundámos a casa principal da Congregação em Angola. A missão tomou forma na pastoral paroquial, na formação de catequistas, de jovens, do clero, na pastoral das vocações e também no serviço à Diocese.
O maior desafio foi a inculturação. Num país com tantas línguas e culturas, adaptar-se exigia mais do que esforço: pedia entrega. Era impossível escolher uma língua local, pois a nossa missão acolhia gente de todo o país. A única linguagem possível era a da presença, da escuta e da compaixão. Viver com o povo e no meio do povo ensinou-me a ser irmão, a ser padre, a ser missionário.
A vida em comunidade e a Igreja que desabrochava
Na simplicidade do dia a dia, descobri o essencial. As pessoas viviam com pouco, mas sabiam repartir. A fraternidade entre religiosos, entre congregações e entre leigos tornou-se um sinal claro da ação do Espírito. A Igreja ali não era um edifício — era um povo que cantava, celebrava, aprendia e crescia.
Vi os grupos de jovens florescerem, cheios de vontade de servir, cantar, rezar, assumir responsabilidades. Muitos perguntavam: “O que significa ser Dehoniano aqui, hoje?” E outros tantos sentiam o desejo de seguir o mesmo caminho, atraídos por uma espiritualidade de amor reparador, entrega e vida em comunidade.
Desafios que se tornaram Graça
Foram muitos os desafios: a pobreza, o recomeçar do zero, o afastamento da família. Mas a alegria do povo, a fé das comunidades e a comunhão entre irmãos compensaram tudo. O que mais me marcou foi a forma como, mesmo sem quase nada, o povo nos acolheu como família. A sua fé foi uma escola para mim.
Tivemos de construir estruturas físicas, sim, mas sobretudo fomos lançando alicerces espirituais. A paróquia de Nossa Senhora do Rosário que nos foi confiada desde a nossa chegada foi ganhando vida, os grupos e movimentos fortaleceram-se, a formação de catequistas e de líderes leigos deu frutos. E, no meio de tudo, fomos aprendendo a esperar, a estar, a caminhar ao ritmo do povo.
Escutar o Espírito: Uma Igreja sinodal
Uma das experiências mais tocantes foi o processo sinodal. Escutar as pessoas com humildade, deixá-las contar as suas histórias, as suas dores, os seus sonhos — tudo isso foi entrar verdadeiramente no coração da Igreja local. Compreendi que a sinodalidade não é um plano ou estrutura, mas um estilo de ser Igreja: caminhar juntos, escutando, discernindo, servindo.
Um legado feito de rostos e histórias
Hoje, 20 anos depois, olho para trás com o coração cheio. A missão Dehoniana em Angola deixou de ser um projeto e tornou-se pertença. Cresceu silenciosamente, através de rostos, nomes, histórias, encontros, lágrimas e sorrisos. O nosso legado não são grandes feitos visíveis, mas gestos fiéis e constantes.
Deixei parte do meu coração no Km 9/A, mas trago comigo um coração transformado. Ali aprendi que, quando tudo parece faltar, o amor de Deus nunca falta. Aprendi a dar valor ao essencial: às pessoas, às relações, à fé vivida em comunidade.
Uma palavra final de gratidão
Gratidão. É a palavra que melhor resume estes 20 anos. Gratidão a Deus, ao povo angolano, aos meus confrades, às comunidades cristãs, aos jovens, aos pobres que nos evangelizaram com a sua vida.
Aprendi que a missão não está longe: começa onde estamos. Viver missionariamente é estar disponível, escutar, servir. Hoje, de regresso a Portugal, continuo em missão. O mundo é o nosso campo de ação. E só vivendo ao serviço dos outros é que encontramos a verdadeira alegria e o verdadeiro sentido da vida.
“O amor não se cansa, não recua, não calcula — apenas se dá” (Padre Leão Dehon)
Pe. Domingos Pestana
Missionário Dehoniano
Em Parceria com a Missão PRESS (mensalmente no dia 24)
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