Uma estranha geografia

A nossa relação com Portugal não é verdadeiramente geográfica. Ainda aqui contará a fortíssima herança judaica, nómada por excelência. Antes de mais, na sua própria consciência circunscrita. É frequentíssimo encontrar portugueses sem ideia precisa da localização de terras, rios ou montanhas nossas. Frequentíssimas as confusões de caminhos e distâncias, não sendo estas as mesmas no Minho e no Alentejo. E isto mesmo seria de estranhar num povo que tão habilmente se instala em qualquer parte do mundo, como se já fosse casa sua. Digo seria, porque realmente não o é. Mais do que o “Brasil mental” de que falava Bruno, “mental” é o Portugal em que idealmente nos figuramos, depressa suportando qualquer geografia física. Em meados de Duzentos reconquistou-se o território básico, “onde a terra acaba e o mar começa”. Mas nem esse nem as ilhas atlânticas nos concluíram nunca. Ainda hoje temos outra geografia: quinze milhões repartidos em cinco alíneas: (a) da cordilheira central para Norte; (b) daí para Sul; (c) Açores; (d) Madeira; (e) emigração. E cada uma destas muito subdivididas, obviamente. Só que, qualquer beirão ou açoriano, qualquer alentejano ou madeirense, pode ter a sua geografia verdadeiramente pátria noutro recanto do mundo, coberto ou descoberto pela bandeira nacional. Dois episódios, entre tantos de geografia portuguesa: em Paris, na casa de um emigrante abastado e bem-sucedido e bem integrado na sociedade francesa, quando a única coisa que me quis verdadeiramente mostrar foi a horta que cultivava no quintal, absolutamente lusitana; em Cochim, onde não estamos politicamente há tanto tempo, quando o seu falecido bispo, sem uma gota de sangue nosso e nenhuma palavra nossa também, me mostrou embevecido o arquivo que conseguira montar, cheio de documentação portuguesa, que obviamente não lia. Naquele quintal parisiense ou nesta costa do Índico, foi com Portugal que me relacionei, fora da geografia convencional. É habitual insistir-se na nossa infinita capacidade de adaptação, seja aonde for. Pergunto-me se não se trata antes do contrário. Se não devíamos falar até da impossibilidade de deixarmos de ser quem somos, tal a densidade interior que acumulámos. Não temos de nos adaptar por aí além, porque já temos dentro e acumulados os infinitos aléns que nos formaram. Aqui, neste recanto ocidental do Continente, sedimentaram-se, milénio após milénio, os variados povos que, do Norte de África ou do Leste da Europa, tiveram forçosamente de parar numa praia que só no século xv se transformou em cais de embarque. Aqui chegaram outros, que depois vieram e continuam a vir das mais diversas procedências. Tanta gente em tão pouco espaço só pode espraiar-se numa geografia universal. Assim foi e assim é. Por isso também, se é verdade que muitos outros povos manifestam capacidade variável de adaptação fora da sua terra, nós manifestamos algo de endógeno que já não é propriamente adaptação, antes conaturalidade. António José Saraiva comparou-nos a um fruto mole na casca e duro por dentro. Tinha razão: temos por dentro muitíssimo mundo, consolidado em sucessivas experiências, em que a convivência acabou por ganhar às lutas. Por isso concentrámos geografias, para as maleabilizar depois. E será talvez sob este aspecto que melhor nos damos com Portugal. D. Manuel Clemente, in Portugal e os Portugueses (Assírio & Alvim, 2008)

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