António Bagão Félix
No meio de muita poeira mediática e de uma preocupante lassidão ética, foi divulgada a 296ª Encíclica Papal e a terceira de Bento XVI, "Caritas in Veritate". É um extenso e profundo documento que constituirá um marco assinalável de enriquecimento da Doutrina Social da Igreja enquanto património universal não apenas destinado a orientar a acção na vida dos fiéis, como a dirigir-se a todos os homens e mulheres de boa vontade, de todas as nações e credos.
Pena que aqui e nos dias que se seguiram à sua divulgação, tenha passado ao lado das primeiras notícias, quase sempre num fugidio rodapé. Tivessem sido umas palavras (descontextualizadas) do Papa sobre, por exemplo, o uso do preservativo e durante dias, teríamos assistido a uma avalancha de opiniões, comentários e diktats.
Condensar em poucas palavras o significado e riqueza desta Encíclica é tarefa impossível tal a densidade de cada palavra e pensamento. Por isso, a minha primeira sugestão é a da sua leitura reflexiva não apenas no interior da Igreja (onde nem sempre é lida…), como no seio da sociedade civil, política e económica.
É uma Encíclica fascinante onde para cada frase se pode e deve reflectir com profundidade. Uma Encíclica de um Papa intelectual e teologicamente brilhante.
Bento XVI parte de todo o ensinamento social desde a Rerum Novarum até às encíclicas de João Paulo II e sobretudo à Populorum Progressio (Paulo VI) de há 40 anos para, com sabedoria, e à luz dos dias de hoje e da natureza plurívoca da crise por que passamos, oferecer princípios de estudo e de comprometimento, tendo a pessoa humana como princípio, sujeito e centro.
A palavra-chave desta Encíclica é a de desenvolvimento humano. Um desenvolvimento integral, autêntico, libertador, pluridimensional. Um desenvolvimento associado à ética e à responsabilidade pessoal e social. À justiça distributiva e não apenas á justiça contratual e comutativa. À capacidade de conciliar Mercado, Sociedade e Estado. À afirmação do princípio da subsidiariedade para "governar a globalização". À necessidade de ultrapassar a ideologia tecnocrática dominante. Ao "ser mais e melhor" e não apenas "ao incremento do ter". À importância das energias morais para neutralizar os excessos alienantes de produtivismo e de utilitarismo. À sustentabilidade social, demográfica e geracional que erradique a primazia da lógica estrita do curto-prazo.
Mais do que palavras que possa escrever, permito-me seleccionar (o que não é nada fácil), "meia dúzia" de frases do documento que desejo possam aumentar o interesse do leitor pela sua leitura integral:
O mercado está sujeito aos princípios da chamada justiça comutativa, que regula precisamente as relações do dar e receber entre sujeitos iguais. Mas a doutrina social nunca deixou de pôr em evidência a importância que tem a justiça distributiva (…).
A gestão da empresa não pode ter em conta unicamente os interesses dos proprietários da mesma, mas deve preocupar-se também com as outras diversas categorias de sujeitos que contribuem para a vida da empresa: os trabalhadores, os clientes, os fornecedores dos vários factores de produção, a comunidade de referência.
É preciso evitar que o motivo para o emprego dos recursos financeiros seja especulativo, cedendo à tentação de procurar apenas o lucro a breve prazo sem cuidar igualmente da sustentabilidade da empresa a longo prazo, do seu serviço concreto à economia real
Não é lícito deslocalizar somente para gozar de especiais condições de favor ou, pior ainda, para exploração, sem prestar uma verdadeira contribuição à sociedade local para o nascimento de um robusto sistema produtivo e social, factor imprescindível para um desenvolvimento estável.
Qual é o significado da palavra «decência» aplicada ao trabalho? Significa um trabalho que, em cada sociedade, seja a expressão da dignidade essencial de todo o homem e mulher: um trabalho escolhido livremente, que associe eficazmente os trabalhadores, homens e mulheres, ao desenvolvimento da sua comunidade; um trabalho que, deste modo, permita aos trabalhadores serem respeitados sem qualquer discriminação; um trabalho que consinta satisfazer as necessidades das famílias e dar a escolaridade aos filhos, sem que estes sejam constrangidos a trabalhar; um trabalho que permita aos trabalhadores organizarem-se livremente fazerem ouvir a sua voz; um trabalho que deixe espaço suficiente para reencontrar as próprias raízes a nível pessoal familiar e espiritual; um trabalho que assegure aos trabalhadores aposentados uma condição decorosa.
Quando prevalece a absolutização da técnica, verifica-se uma confusão entre fins e meios: como único critério de acção, o empresário considerará o máximo lucro da produção; o político, a consolidação do poder; o cientista, o resultado das suas descobertas
Razão e fé ajudam-se mutuamente; e só conjuntamente salvarão o homem: fascinada pela pura tecnologia, a razão sem a fé está destinada a perder-se na ilusão da própria omnipotência, enquanto a fé sem a razão corre o risco do alheamento da vida concreta das pessoas.
Além do crescimento material, o desenvolvimento deve incluir o espiritual, porque a pessoa humana é «um ser uno, composto de alma e corpo».
Sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue sequer compreender quem seja.
António Bagão Félix