Uma crise de fé

Elias Couto

1. Vaclav Havel falava do Ocidente como a primeira civilização ateia da história. Mesmo não concordando em absoluto com tal afirmação, percebe-se-lhe o alcance. Se olharmos à Europa, esta é a primeira civilização a escolher, conscientemente, massificadamente, cortar todas as ligações com a transcendência e fazer do «orgulhosamente sós», referido a Deus, o seu modo de vida. Fazendo-o, cortou também as suas raízes e, a continuar assim, a breve trecho não será a Europa. Será outra coisa, decadente, empobrecida, espiritualmente estéril, demograficamente condenada, mas não será a Europa, senão geograficamente – Oriana Fallaci falava da Eurábia e quem sabe se alguns dos que estão vivos não viverão num híbrido assim…

2. Como muito bem diagnosticou João Paulo II – o primeiro a falar da urgência de uma nova evangelização – a Europa vive uma «crise da memória e herança cristãs, acompanhada por uma espécie de agnosticismo prático e indiferentismo religioso, fazendo com que muitos europeus deem a impressão de viver sem substrato espiritual e como herdeiros que delapidaram o património que lhes foi entregue pela história» (Exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Europa, n. 7). Lenta mas inexoravelmente, esta indiferença torna-se rejeição ativa do Cristianismo, não raro, verdadeiro ódio ao facto cristão. E, o que é absolutamente novo, camadas inteiras da população parecem «imunizadas» contra o Cristianismo.

3. A crise da fé, porém, não constitui apanágio apenas de quem se afastou da Igreja ou já nem sequer a conhece. Dirigindo-se aos membros da Cúria romana, no habitual discurso de saudações natalícias (22/12/2011), o Papa Bento XVI usou palavras desassombradas para sinalizar onde se situa, em toda a sua gravidade, a origem desta crise: «O cerne da crise da Igreja na Europa é a crise da fé. Se não encontrarmos uma resposta para esta crise, ou seja, se a fé não ganhar de novo vitalidade, tornando-se um convicção profunda e uma força real graças ao encontro com Jesus Cristo, permanecerão ineficazes todas as outras reformas».

4. No citado discurso, Bento XVI lembra que a Igreja na Europa é, hoje, em grande parte, um corpo anémico. Pior ainda, apoderou-se de muitos crentes uma «lassidão da fé», um «tédio de ser cristão» que corrói os fundamentos da fé e ameaça os alicerces das Igrejas locais. Mas não precisa de ser assim. Há sinais abundantes de que o Evangelho continua a ser boa nova, profundamente original e capaz de transformar a vida. Bento XVI testemunhou-o em África, onde, «apesar de todos os problemas, de todos os sofrimentos e penas que existem, sem dúvida (…), sempre se palpava a alegria de ser cristão, o ser sustentado pela felicidade interior de conhecer Cristo e pertencer à sua Igreja».

5. A nova evangelização é a resposta dos dois últimos Papas a este estado de coisas. Infelizmente, tem encontrado resistências de muita gente dentro da Igreja. A criação do Conselho Pontifício para a Nova Evangelização, por Bento XVI, representa, a meu ver, uma tentativa de «forçar» o andamento – e o próximo Sínodo dos Bispos vai no mesmo caminho, dada a urgência da situação. Não se trata de uma estratégia, mas do regresso à originalidade da fé e à capacidade de síntese que fez das primeiras Igrejas poderosos focos geradores de cultura, uma cultura nova que reinventou o mundo antigo. Hoje, é necessário fazer, de novo, apelo a esta capacidade de síntese, não para fazer a Igreja render-se aos ventos do relativismo dominante, antes para ajudar a cultura atual a recuperar as suas ligações fundamentais – à transcendência, ao valor do indivíduo, à dignidade da vida, sobretudo da mais frágil, à liberdade…

6. A nova evangelização é um dever da Igreja face à antiga Europa cristã. Não para que a Igreja venha a ter de novo o papel preponderante de séculos passados, na vida europeia – nem isso é desejável. Mas, sobretudo, para que na Europa se continuem a escutar vozes convocando-a às suas raízes. E, se assim for, talvez, só talvez, a Europa possa subsistir – pois nada garante estarmos ainda a tempo de exorcizar os demónios que concorrem para o seu colapso. Quanto à Igreja na Europa, oxalá não venha a escutar as palavras do Cordeiro ao anjo da Igreja de Laodiceia: «Não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente. Assim, porque és morno (…) vou vomitar-te da minha boca. Porque dizes: sou rico, enriqueci e nada me falta – e não te dás conta de que és um miserável, um cego um nu…» (Ap 3, 15-16).

Elias Couto, editor de www.cristoeacidade.com

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