Um sonho: de uma sociedade de conflitos a uma sociedade de cooperação

Alinhavos para uma agapocracia sustentada numa eleuterologia cristã

Luís Manuel Pereira da Silva, Diocese de Aveiro

As alterações climáticas parecem ter descido da atmosfera para as relações humanas. Sente-se um encrespar do mar dos encontros entre os seres humanos, para o que muito se tem invocado como causa a pandemia e os seus ‘misteriosos’ efeitos.

Ouso arriscar uma outra leitura, mais profunda e menos circunstancial: deixámo-nos tomar por um modo de pensar que nos faz viver em estado de permanente conflito e conflitualidade.

Percebamos porquê e propunhamo-nos uma ‘terapêutica’…

O mundo viveu em tensão, no período da ‘guerra fria’, expressão cujo significado contemporâneo devemos a George Orwell. O fim dos regimes de leste fizera crer que esse estado de tensão seria suplantado por uma espécie de ‘fim da história’, assente no modelo liberal da democracia.

Marx parecia ter sido, portanto, definitivamente derrotado quando, em 1989, desabaram, sob extensa nuvem de pó, os regimes coletivistas de Leste…

Pura ilusão!

Na economia, Marx fracassou, tal como (eventualmente) na geopolítica, e isso deveria ter sido razão suficiente para se declinar qualquer novo ‘contrato’ com o seu modo de organizar a sociedade, mas Marx deixou o seu modus cogitandi, que repousa nas mentes ocidentais.

Parece que o derrotado se anichou na mente dos vencedores, ganhando numa batalha já sem exércitos…

Urge, por isso, evidenciar esse modus cogitandi, para lhe dar resposta e suplantá-lo, sob pena de nova nuvem de pó se vir a erguer, talvez com surpresas maiores do que as que nos revelara a de Leste…

Uma sociedade assente na ideia de ‘luta de classes’

Do seu ‘modus cogitandi’ importa-nos, para o assunto aqui em análise, reter, de imediato, o seu axioma de que a sociedade, para se configurar como lugar da realização da utopia, se estrutura como espaço de ‘luta de classes’.

E se, na sua visão original, tal deveria promover-se em nome da suplantação da economia de matriz capitalista, constatado, porém, o erro de diagnóstico, a ‘matéria’ em causa deixou de ser a economia, mas o modo de pensar permaneceu. Já não para se promover a suplantação da economia de tipo capitalista, mas para promover a emergência de um ‘homem novo’.

A matriz permanecia: a luta de classes.

As relações passaram a estar assentes, não na confiança recíproca, mas na suspeita.

Veja-se como, hoje, um simples conflito entre um homem e uma mulher, prontamente se torna um conflito entre ‘O’ Homem’ e ‘A’ Mulher; um conflito entre vizinhos logo se avoluma para uma luta de ‘religiões’ ou de ‘raças’, etc….

Como recorda, com a pertinência que o caracteriza, Roger Scruton, no seu livro Tolos, impostores e incendiários, traduzido para português, pela Quetzal, em 2018 (edição que iremos citar, ao longo deste artigo), ‘a História foi reescrita como um conflito entre o bem o mal, entre as forças da luz e as forças da escuridão.’ (Op. Cit., p.18) Marx recuperou o modo de pensar maniqueu e deu-lhe a força revolucionária que faltava ao pensamento de Manes (Maniqueu).

É o mesmo Scruton que recorda, já muito perto do fim do livro citado, que ‘aqueles que imaginaram, em 1989, que nunca mais um intelectual seria apanhado a defender o partido de Lenine, ou a advogar os métodos de Estaline, não tiveram em conta o arrebatador poder do absurdo. Na necessidade urgente de acreditar, de encontrar um mistério central que seja o verdadeiro sentido das coisas e ao qual a vida de alguém possa ser dedicada, o absurdo é muito preferível ao sentido; porque constrói uma forma de vida à volta de algo que não pode ser questionado. Nenhum ataque racional é possível contra aquilo que nega a possibilidade de um ataque racional. […] Uma nova geração redescobriu a voz autêntica do proletariado, que fala a língua da máquina de absurdo.’ (p. 361)

A verdade e o humano concreto dão lugar ao ‘ideológico’ e ao Homem abstrato

Acrescentamos, assim, à lógica de que tudo está em dinâmica de ‘luta de classes’, um segundo elemento do modus cogitandi de Marx: a substituição da ‘verdade’ pelo ‘ideológico’, que R. Scruton define, aqui, como sendo ‘absurdo’, na mesma linha, aliás, de Braunstein, no seu luminoso ‘a religião woke’ (um guia para sobreviver à lógica de cancelamento em que está ‘enfarinhada’ a cultura ocidental. Veja-se como a ideologia de género, hoje tão disseminada, assenta nesta matriz…

Um terceiro elemento deste modus cogitandi é a deslocação da preocupação com a pessoa concreta, na situação concreta, na realidade concreta, para um abstrato ser humano em nome do qual tudo se pode fazer e defender.

‘O mundo da Novilíngua é um mundo de forças abstratas, no qual os indivíduos são meras personificações dos «ismos» que se revelam neles. Por consequência é um mundo sem ação. Mas não é um mundo sem movimento. Pelo contrário, tudo está em constante movimento, empurrado para diante pelas forças do progresso, ou puxado para trás pelas forças da reação. Não existe equilíbrio, estagnação ou pausa no mundo da Novilíngua. Toda a tranquilidade é uma ilusão, a quietude de um vulcão que pode irromper a qualquer momento. A paz nunca aparece na Novilíngua como condição de sossego e normalidade. Há sempre qualquer coisa para «lutar por», e ideias como «Luta pela Paz!» e «Defende a Paz!» encontraram o seu espaço dentro dos slogans oficiais do Partido Comunista.’ (P. 22-23)

E Scruton especifica, ainda mais. ‘Os seres humanos aparecem na História marxista apenas como «forças», «classes» e «ismos». Instituições jurídicas, morais e espirituais só têm um lugar marginal ou são chamadas para discussão apenas quando pode ser facilmente vistas em termos das abstrações que falam através delas. As categorias mortas, impostas à matéria viva da História, reduzem tudo a fórmulas e estereótipos.’ (p. 58-59)

Como tão mordazmente recorda o mesmo Scruton (ao analisar o pensamento do marxista Lukács), ‘se os factos servem para refutar a teoria «total» do marxismo, então «pior para os factos».’ (p. 169)

Neste registo, como tudo se reduz a abstrações, a linguagem, pela qual se veicula o modo exclusivo de acesso ao real, passa a ser um alvo privilegiado da análise e manipulação deste modus cogitandi. ‘Como entendeu Orwell, o primeiro alvo de toda a revolução é a linguagem. O objetivo é criar uma Novilíngua que coloca o poder no lugar previamente ocupado pela verdade e, feito isto, apresentar o resultado como uma «política de verdade».’ (P. 216)

Naturalmente, a partir do momento em que o critério deixa de ser a realidade, os factos, a verdade, urge impor a ideologia. A melhor estratégia é evitar a discussão e promover o consenso, muitas vezes apenas presumido. ‘Em lugar de objetividade, temos apenas «intersubjetividade» – noutras, palavras, consenso. Verdade, significados, factos e valores que são agora vistos como negociáveis. O curioso, no entanto, é que esse subjetivismo vago é acompanhado por uma vigorosa censura. Aqueles que colocam o consenso no lugar da verdade, em breve dão por si a distinguir a verdade do falso consenso. […] A conclusão inescapável é que a subjetividade, o relativismo e o irracionalismo são defendidos não para acolher todas as opiniões, mas precisamente para excluir as opiniões de pessoas que acreditam em velhas autoridades e verdades objetivas.’ (p. 315)

A conclusão está à vista…

Para aqueles que defendem a existência de critérios de justiça, de verdade, de respeito pela realidade, está reservado o lugar indicado pela censura, pois quando tudo é arbitrário, sobra a a ‘ditadura da opinião’, como denunciava, em finais de 90, Giovanni Sartori, no seu ‘profético’ homo videns: televisão e pós-pensamento (Edição da Terramar: 2000).

‘Por conseguinte, quase todos os que abraçam os «métodos» relativistas introduzidos nas humanidades por Foucault, Derrida e Rorty são adeptos ferrenhos de um código do «politicamente correto» que condena em absoluto o desvio em termos intransigentes. A teoria relativista existe para apoiar uma doutrina absolutista.’ (p. 315)

Redunda, daqui que ‘quando tudo é permitido, é essencial proibir o proibidor.’ (p. 317)

Restará, perante isto, o silêncio e a rendição dos que defendem que é possível continuar a buscar e participar da verdade? E que continuam a existir verdade e erro?

O que resta? O silêncio e a rendição?
Proposta de uma agapocracia sustentada numa eleuterologia de matriz cristã

É em resposta a este desafio que proponho uma agapocracia sustentada numa eleuterologia de matriz cristã.

Definamos o conteúdo dos termos, neologismos que não pretendo que sejam mais uns ‘ismos’ na selva da manipulação linguística tão típica da matriz denunciada, mas luminosos termos de um modo distinto de pensar e agir. Socorro-me, para tal, da etimologia para os construir.

Os gregos enunciavam três modos de vivência do amor (magnificamente retratados na encíclica de Bento XVI, ‘Deus caritas est’).

O primeiro deles, mais físico e assente na reciprocidade esperada, era descrito como ‘eros’.

O segundo era o que se evidenciava na relação entre dois amigos: gratuito e desprendido, mas sem compromisso nem exigência. O amor descrito como ‘filia’ (infelizmente, a criação do termo ‘pedofilia’ denegriu o termo (e o conceito) original. Melhor seria ter-se chamado ‘pedomania’ ou ‘pedopatologia’, mas já pouco poderemos fazer…). Este é o termo que se ‘aninha’ nas palavras ‘filosofia’, ‘filantropia’, etc. O amor genuíno, mas ainda descomprometido.

Por fim, o amor gratuito, doado, sem esperar retorno, dedicado ao outro até ao ponto de dar a vida por ele. É um ideal, bem certo, mas assente numa visão confiante em relação ao outro. Descreve-se como ‘agápê’.

A agapocracia é a defesa de uma sociedade em que o poder (que existe e não pode senão existir, nas relações societárias, ao contrário do que pensam os anarquistas, encavalitados na visão marxista…) existe, mas é gerido com a matriz que lhe confere a presunção de que o outro é humano, frágil na sua condição, mas digno e merecedor de respeito e acolhimento. O outro, mesmo quando pensa de modo diferente, não é um inimigo, um ser a abater, mas um outro a acolher. A amar!… (Numa crítica a Michel Foucalt, também ele marxista, Roger Scruton recorda que ‘ao levar as posições das mulheres e das crianças a sério, chega quase a reconhecer a verdade: não é o poder, mas sim o amor que faz o mundo girar.’ (P. 156)

O fundamento desta visão que aqui proponho não é uma utopia, mas uma abordagem realista da igual condição frágil, vulnerável, débil, de todos os humanos que, por não serem absolutos, não podem nem devem ter todo o poder sobre a vida dos demais. (Quanta repercussão na visão sobre os limites autoimpostos da democracia que, como bem lembra G. Zagrebelsky, não deveria admitir-se decidir sobre a vida e a morte dos cidadãos!)

Esta conceção tem como pressuposto um entendimento de liberdade (em grego ‘eleutería’, donde o termo ‘eleuterologia’) não absoluta (ao contrário da visão marxista que a pressupõe absoluta e não condicionada…), sempre condicionada e realizada, necessariamente, no encontro com o outro. Ao contrário da visão marxista, que funde a liberdade num abstrato humano (mas depois de a conceber como a-histórica e solipsista, sem vínculos ao passado e à memória), a liberdade desta visão é sempre a do ser humano concreto, feito do encontro com os demais, pensada como realidade construída com os outros. Esta perspetiva pressupõe que ser livre é procurar libertar-se de tudo o que aprisiona, podendo esses aprisionamentos ocorrer no próprio interior do ser humano, sempre que a sua realização não se faz na busca do que mais o realiza. A liberdade não é, aqui, identificada com mero exercício da ‘vontade que quer’, mas como discernimento e necessária busca da verdade. Repercute, aliás, a ideia da ‘libra’, a balança que os romanos pensavam como um objeto que deveria, permanentemente, equilibrar-se, pois o risco do desequilíbrio era constante.

Nesta visão, os seres humanos não são, já, primeiramente indivíduos (a fundir, num segundo momento, numa massa anónima e abstrata), mas pessoas, conceito distinto da mera quantificação que se exprime na ideia de ‘indivíduo’. Ser-se pessoa (conceito que o mundo deve ao cristianismo e que nasce no contexto das discussões trinitárias – como poderia conceber-se Deus como único e uno e, ao mesmo tempo, como diverso em si mesmo? O conceito de indivíduo não servia. O de ‘pessoa’ é a resposta.) define-nos como razão e relação. O ser humano define-se, assim, como intrinsecamente projetado para a verdade (Razão), mas não concebível de forma solipsista ou monádica (não é uma mónada fechada sobre si): é primeiramente ‘relação’. Aliás, como tantas vezes fomos afirmando (recordamo-lo no livro ‘ensaios de liberdade’, editado em 2023, pela Editora Tempo novo), o ser humano desperta em si a autoconsciência (em si em potência) pela ação dos outros que fazem emergir a consciência de si mesmo. Sem os outros, não seríamos consciência de nós. Eles são, por isso, a condição de possibilidade da nossa própria consciência. Logo, as liberdades que somos não se anulam, mas projetam-se umas às outras. Esta é a nova eleuterologia: não uma em que as liberdades se estorvam e conflituam, mas em que as liberdades só são pensáveis como condição de geração das liberdades dos demais.

Não somos, por isso, apenas realidades coexistentes: somos a condição da realização dos demais.

Senão, o que sobrará: o conflito até à extinção ou até à sobrevivência dos que têm poder, dos que podem?

Esta nova eleuterologia presume que a liberdade não é matéria de vontade, mas, como condição exclusivamente humana (e divina, certamente!), mas não animal, não é exercício do querer: é ação da inteligência concreta e histórica que ilumina os desejos e os afetos.

Liberdade não é, assim, fazer o que ‘se quer’, mas a capacidade de iluminar o que se quer e agir em conformidade.

E se as vontades (por serem absolutas e indeterminadas, tudo querem!) se estorvam umas às outras, as inteligências iluminam-se, reciprocamente, e porque apontadas para a verdade, elevam-se umas às outras.

De forma brilhante, é isso que preconiza Scruton, focando a verdade na busca da justiça: ‘A nossa preocupação enquanto seres políticos devia ser, não a abolição dos poderes que unem a sociedade, mas a mitigação do seu exercício. Não deveríamos pretender um mundo sem poder, mas um mundo em que o poder é consentido, e onde os conflitos são resolvidos de acordo com uma conceção partilhada de justiça.’ (P. 369)

Como em outros tempos da história, muito se espera do Cristianismo. E hoje, como sempre, ao longo destes 2000 anos, o desafio não está na ‘fuga do mundo’, mas na ousadia de permanecer fiel, quando a tempestade se abate, prestando o contributo ímpar que da visão cristã se espera… É o humano que está em causa e considerando (em paráfrase do pensamento de Terêncio) que ‘nada do que é humano nos é estranho’, cabe identificar o verme que corrói a raiz, extirpá-lo, para que a árvore se agigante para o alto. Porque a salvação é concedida aos homens e mulheres concretos, não às abstrações do Humano. E porque os humanos que somos nascem d’Aquele que faz deles muito mais do que o casual resultado da fria e anónima evolução: faz deles irmãos!

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