António Salvado Morgado, Diocese da Guarda
Era uma vez um menino nascido nos finais do longínquo século terceiro numa cidade marítima de nome Pátara, na região da actual Turquia, que ficou órfão na juventude. Filho de pais cristãos de profunda vida de oração que faleceram servindo os doentes e necessitados em tempo de epidemia, meditando na passagem evangélica do jovem rico, este jovem partilhou com os pobres muito da fortuna recebida em herança à morte dos pais endinheirados. E a solidariedade com os mais desfavorecidos, pobres e crianças, foi-se difundindo cedo e deu origem a narrativas reais ou lendárias que fizeram história. Este menino e jovem chama-se Nicolau. E, como que a anunciar o Natal, é um santo celebrado a seis de Dezembro, dia do seu falecimento em 343. Viveu na cidade portuária de Mira, a actual Demre, na província de Antalya na Turquia, onde desenvolveu intensa actividade apostólica como sacerdote e bispo.
Assim se conta, nesta ou noutras versões. Havia três jovens que, não podendo casar porque o pai, a viver em extrema pobreza, não teria os necessários meios materiais para custear os dotes indispensáveis das filhas, corriam o perigo da escravatura ou de entrarem no mundo da prostituição. Nicolau, um dia pela calada da noite, prepara três sacos de moedas, sobe ao telhado da casa térrea daquele entristecido e preocupado pai, lança o ouro pela chaminé da lareira e, num salto rápido, desce do telhado para desaparecer na escuridão da noite. No momento, aquelas três irmãs secavam à lareira as meias que haveriam de calçar no dia seguinte. Aí caíram aquelas moedas de ouro. Será por isso que São Nicolau é o patrono das jovens solteiras?
Aconselhado por um tio, embarcou em peregrinação à Terra Santa para percorrer os mesmos caminhos de Jesus e fazer a solitária experiência contemplativa da Sua vida. No regresso levanta-se uma terrível tempestade e tripulantes e marinheiros temiam naufragar. Todos, menos Nicolau. Diz-se que, discretamente e enquanto ia pairando o pânico entre toda aquela gente, ele aconchegou-se a um canto do navio. Em silêncio orava. Foi quando o vento abrandou, as ondas aplanaram e a viagem continuou com normalidade. Será por isso que São Nicolau é padroeiro de navegantes e mercadores?
Conta-se, também, que três jovens estudantes de teologia a caminho de Atenas haviam parado numa hospedaria para passarem a noite. Aí foram roubados e mortos pelo estalajadeiro que escondeu os cadáveres numa pipa. Também o Bispo Nicolau viajava para Atenas e parou na mesma hospedaria. De noite, em sonhos, terá tido a visão do crime ali cometido. Em oração viu os estudantes regressarem à vida e obteve a conversão do malvado estalajadeiro. Será por isso que São Nicolau é padroeiro dos estudantes entre os quais ganharam tradição, nalguns lugares, as Festas Nicolinas?
Assim se conta também que houve três meninos assassinados e escondidos num barril de sal que pela oração de São Nicolau regressaram à vida. Tal como se conta que um menino de nome Basílio, que havia sido sequestrado por piratas e vendido como escravo a um emir, graças à intervenção orante de São Nicolau, reapareceu misteriosamente em casa dos pais trazendo consigo o ceptro de ouro daquele soberano. Será por isso que São Nicolau é padroeiro das crianças e dos jovens?
Um dia, quando regressava à sua cidade depois de dias de intensa actividade apostólica, decorria uma assembleia dos bispos e sacerdotes que discutiam sobre quem deveria ser eleito novo bispo da cidade em substituição do bispo acabado de falecer. Decidiu, então, aquela assembleia que seria eleito bispo, de entre os ausentes, o primeiro sacerdote que, a partir daquele momento, entrasse no local da reunião. Diríamos hoje que se tratou de um acto de pura sinodalidade de uma Igreja que caminha na unidade de comunhão e se entrega à fé no Espírito Santo. Apareceu Nicolau que assim foi aclamado Bispo de Mira por todos os presentes. Nessa qualidade, participou, em 325, no Concílio de Niceia, o primeiro concílio ecuménico de que resultou um dos primeiros símbolos da fé cristã, o chamado Credo Niceno.
Por se tratar de um santo dos primeiros séculos, pouco se saberá da sua vida com exactidão, mas verdade é que, logo após a morte no ano de 343, começou a ser venerado como santo, o seu túmulo local de peregrinação e cedo o seu culto se espalhou pela Europa cristã.
Sendo São Nicolau um santo com tão elevado serviço aos desamparados e crianças que sobe aos telhados a presentear os necessitados, cedo as crianças começaram a deixar os sapatinhos ao fundo da chaminé para que o Menino Jesus enviasse na noite de Natal o São Nicolau amigo das crianças e ali depositasse uma prenda enviada do Céu.
Era assim quando eu era criança. Agora, inspirada ou não na vida de São Nicolau, aparece uma figura de farda vermelha e longas barbas brancas, não já na chaminé das nossas casas, mas nos centros comerciais das nossas metrópoles ou nas ruas e instituições de aldeias, vilas e cidades, de campainha na mão a convidar as crianças para um banquete de um consumo insaciável, enquanto lá longe, ou ali bem perto, outras crianças passam fome ou ensurdecem com os terríveis bombardeamentos de uma guerra que lhes é completamente estranha.
Naturalmente, as crianças apreciam, felizes, aquela figura estranha que parece ter vindo do lado de lá do mundo para as fotografias de uns dias.
De São Nicolau talvez fiquem as moedas de ouro no cofre de quem as tem. Mas nelas parece já não ficar a espiritualidade do Natal. Porque ao Menino Jesus foram-lhe trancadas muitas portas e a vida já não se faz à chaminé de uma lareira, mas nas tecnologias que, como os bombardeamentos das guerras, parecem ensurdecer os ouvidos para a convivialidade familiar e a paz.
Como o jovem Nicolau, muito precisamos de visitar Belém e fazermos companhia aos humildes pastores na contemplação daquela Santa Trindade, ainda que, iluminados por uma estrela, caminhemos à boleia dos Magos de um ignoto Oriente.
Guarda, Dia de São Nicolau, 6 de Dezembro de 2024
António Salvado Morgado
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