Um profeta e um Santo

O Pontificado de João Paulo II ficará sem dúvida com um dos mais longos e mais fecundos na história da Igreja. João Paulo II é o homem que veio de longe, que interrompeu uma série secular de Papas italianos, que imprimiu um cunho muito pessoal ao exercício do seu ministério petrino, já pela peculiar intensidade que imprimiu a tudo o que empreendia e que tinha a energia de um atleta na escalada das Montanhas do espírito, cuja força lhe vinha daquela tão espontânea e surpreendente devoção filiar mariana – Totus Tuus -, já também pela forma pessoal em primeira pessoa do singular nas suas comunicações, nos seus textos, em vez do tradicional plural majestático dos pontífices anteriores. Para mim, três coisas sempre me surpreenderam na acção apostólica de João Paulo II. Em primeiro lugar, o espírito de oração que dele irradia, essa energia que lhe vem do fundo da alma e que contagia. Sempre senti uma profunda emoção nas poucas vezes que tive o privilégio de estar perto dele. Na primeira vez que participei numa audiência integrado num grupo de capelães militares, em Roma, em Junho de 1986, aquele olhar de profundidade com que me envolveu, tendo eu próprio ficado surpreendido quando na fotografia, que conservo como uma preciosidade, os nossos olhares se cruzam, num sorriso aberto de comunhão intensa de alma e do coração. Ele não sabia seguramente quem eu era: mas aquele modo de olhar era tão pessoal! E no ano jubilar, em Roma, na celebração de encerramento do Congresso Mariológico Internacional, coube-me, como presidente do grupo de Portugal, ficar muito perto dele. E foram várias as vezes nas quais o seu olhar me envolveu, de um modo que senti particular, mesmo se na realidade, da parte dele, era um olhar que passeava por todos os que se encontravam a concelebrar com ele. E, numa das suas peregrinações a Fátima, aqueles largos minutos que permaneceu em silêncio, em profunda concentração diante da imagem de Nossa Senhora, completamente absorvido, em colóquio íntimo, alheio à multidão que se encontrava no recinto e às câmaras de televisão que transmitiam aquela tocante cena para todo o mundo!… Era neste espírito de oração que ele encontrava e encontra a força para ser sinal de contradição: o homem da fidelidade ao depósito da fé no que respeita à vida interna da Igreja em termos de ortodoxia e de ortopraxia; a coragem profética nas suas viagens apostólicas pelo mundo todo, e o arrojo da sua doutrina social, económica e política. Numa vez ou noutra tinha a impressão de ele ser a única voz a ouvir-se, e tal como na antiguidade, nos atribulados séculos IV e V, também a fidelidade da Igreja ao seu mistério como que se concentrava na cabeça e no coração de João Paulo II. Esta coragem em ser sinal de contradição, que se manifestava na fidelidade ao essencial, nos campos da teologia e da moral, e na ousadia nos campos da doutrina social, é o segundo aspecto que sempre me impressionou no ministério petrino de João Paulo II. O terceiro aspecto tem a ver com a dimensão simbólica dos seus gestos: sem trair a fidelidade ao que é, as suas acções práticas e concretas no campo do ecumenismo e do diálogo inter-religioso; o seu gesto de perdão ao autor do atentado e a sua visita à prisão; os encontros com a Juventude, com uma capacidade e uma vibração de empatia que se adensava à medida que avançava na idade e as suas forças iam diminuindo; a coragem e firmeza em manter-se de pé e no seu lugar, mesmo na doença, que não oculta, como a dizer, com S. Paulo, cujo nome leva, que é à medida que o homem exterior se vai degradando, que se renova o homem interior. Onde está o segredo de tanta energia? Não vejo onde, a não ser na sua espiritualidade, naquela energia que lhe vem do fundo do ser e que nos toca e nos contagia, e que fez dele o homem que mudou a história, porque também a ele se deve a queda do muro de Berlim. Mas, mesmo a este respeito, fiquei muito impressionado quando li num dos seus textos o reconhecimento de que a queda do comunismo como sistema económico, social e político também trouxe um certo desequilíbrio, pois isso abriu o caminho a certos excessos do capitalismo neoliberal que podem pôr em causa a paz e o desenvolvimento equilibrado do mundo. Eu diria, parafraseando uma afirmação de Eça de Queirós, que João Paulo II não é apenas um génio! Ele é sobretudo um profeta e um santo. Bem haja, Santo Padre! José Jacinto Ferreira de Farias, SCJ Joseffarias@netcabo.pt

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