Octávio Carmo, Agência Ecclesia
Uma das imagens que me vai ficar da votação final global que levou à legalização da eutanásia são as gargalhadas de alguns deputados, no hemiciclo, durante um dos momentos mais delicados da nossa história democrática. É humano, compreendo, perante uma troca de nomes, mas também é muito significativo: os deputados optaram por fechar-se no seu mundo e ignorar o que os rodeia. Mesmo a morte de outros seres humanos é uma questão processual, de listas e enganos, pessoas que afinal ninguém conhece e que, provavelmente, nenhum eleitor teria mandato para votar, em seu nome, tão delicada matéria. O riso, parece-me, terá um custo muito elevado em lágrimas, no futuro.
Desde 2016, como se projetava na altura, grande parte do debate em torno da eutanásia rapidamente ficou marcado pela confusão, evitando desde logo um mais do que necessário esclarecimento de conceitos. Anos depois, em plena pandemia e sem consenso social evidente, o Parlamento procura encerrar este processo, ligado temas centrais para a definição do que é a humanidade, como a dor, o sofrimento e a morte.
O pensamento social e ético dos católicos não propõe um sofrimento sem controlo nem o encarniçamento terapêutico. Acompanhar e ajudar são conceitos centrais na nossa tradição religiosa, em relação aos doentes – matéria tão séria que até ficou plasmada numa das obras de misericórdia.
Há uma questão antropológica que ultrapassa a mera política. Somos seres de perguntas. Sem respostas, pelo menos as que desejaríamos ou as suficientemente óbvias para que as possamos perceber, parece impossível que haja lugar para a esperança. Muitos, perto ou longe de nós, vivem como se a dor não tivesse fim, mas a luz está à espera de uma qualquer brecha para entrar.
Job, símbolo bíblico do sofrimento do inocente, dizia a certa altura: “Recordai-Vos que a minha vida não passa de um sopro e que os meus olhos nunca mais verão a felicidade”. Mergulhado num sofrimento terrível, tinha respostas definitivas. Enganava-se.
Somos sopro. Passamos. Da nossa dor, da nossa angústia, da incerteza do que virá, há peças que se soltam, numa estrutura tão frágil como é o ser humano, e são muitas vezes difíceis de reparar.
Passamos. O que é afinal ser humano? Acreditamos que o questionamento constante terá um resultado óbvio, feliz, mas às vezes nem mesmo o fim do caminho parece lançar alguma luz sobre o percurso que se acabou de fazer. Resta-nos questionar. E acreditar mesmo quando, aparentemente, não há esperança. Pelo menos na política.