No próprio dia em que Joseph Ratzinger foi escolhido pelo conclave como Papa, o teólogo Hans Küng declarava numa entrevista que “precisamos, mais do que duma figura mediática, de um Papa pastoral”. Talvez Bento XVI seja isso mesmo. E estes dois anos de pontificado devem ser lidos a essa luz. Foram dois anos reveladores de uma certa visão estratégica da Igreja e do mundo que a rodeia. Um mundo que aparece, aos olhos do Papa, em viragem de uma modernidade desequilibrada para uma pós-modernidade sem referências. E se o Concílio Vaticano II enunciou os fundamentos da reconciliação da Igreja com o mundo moderno – afirmando a centralidade de uma eclesiologia de comunhão e de uma teologia do mundo – os novos tempos, carregados de dúvida, de perplexidade e de esvaziamento do pensamento forte às mãos de um pensamento débil, convocam, no entendimento de Bento XVI, um reposicionamento estratégico da Igreja. Esse entendimento é o de que cabe à Igreja assumir-se como guardiã da invariância, da perenidade de uma ordem de valores que o Papa vê ameaçada pelo que designou por “ditadura do relativismo”. É isso que o faz insistir em que o Vaticano II é um património para assimilar e não uma dinâmica para continuar a abrir. É isso que o faz regressar ao Direito Natural para firmar em sedimentações valorativas ancestrais a resistência ao “pluralismo ético”. É isso, enfim, que o faz perspectivar a Europa como terra de missão por excelência, crente de que a principal ameaça à mundividência cristã vem deste lado do mundo e do seu suposto declínio cultural de sentido utilitarista e nihilista. Sem surpresa, por isso, estes dois anos de pontificado de Bento XVI têm sido menos “sociais” e mais “principiais” do que o legado do seu antecessor. É certo que a sua encíclica “Deus caritas est” fica a marcar o pensamento social da Igreja, quer pelas portas entreabertas a discursos sobre a corporalidade que não têm tido respiração na governação da Igreja (o que alguns já chamaram “a reabilitação do eros”), quer sobretudo pela fundamentação densa de toda a actividade da Igreja “num amor que procura o bem integral do homem”. É igualmente certo que, na senda de João Paulo II, Bento XVI se assume como um adversário da tese do choque de civilizações, contrapondo-lhe o primado do respeito pela vida e pela paz. A este respeito, aliás, estes dois anos trouxeram-nos repetidas advertências do Papa contra “concepções religiosas aberrantes” que alimentam a violência irracional, reiteradas no equívoco discurso de Ratisbona. Mas este é, essencialmente, um Papa apostado em deixar a marca do encontro da fé com a razão, num processo que tem a verdade como referência absoluta, coincidente com Deus. Radica aqui a sua concepção do trabalho ecuménico como diálogo teológico; e talvez radique nesta concepção das coisas a relativa indefinição do que sejam os “passos concretos” de que carece o ecumenismo para se fortalecer. Que o fim do segundo ano de pontificado de Bento XVI fique marcado pelo sancionamento disciplinar de Jon Sobrino, voz qualificada da teologia da libertação, é também um sinal. De que Joseph Ratzinger não é especialmente sensível à prioridade que Hans Küng apontava para o Papa na referida entrevista de 19 de Abril de 2005: “um Papa que coloque no centro da sua atenção os incontornáveis grupos e indivíduos marginalizados no seio da própria Igreja Católica e que encontre soluções corajosas para os muitos problemas que se acumularam no seu interior”. José Manuel Pureza, Professor da Universidade de Coimbra