Homilia de D. António Marto, na Eucaristia por João Paulo II Ontem, Sábado, dia 2 de Abril, às 20 horas e 37 minutos, no termo da semana pascal da Ressurreição de Cristo, João Paulo II entrou na casa do Pai, na Luz divina. Há um ano também num Sábado, no dia 3 de Abril, o meu caro antecessor, D. António Monteiro, partia para a mesma casa paterna. Quis a Providência que nós hoje, na mesma celebração, façamos memória viva e grata junto do altar do Senhor destes dois pastores: do pastor universal da Igreja e do pastor local da Igreja de Viseu. Despedimo-nos de João Paulo II como de um Pai na fé, um pai afectuoso e inesquecível, depois de o termos acompanhado na sua agonia com a nossa oração. Esta eucaristia, para além de ser expressão de sufrágio, é sobretudo acção de graças pelo dom maravilhoso deste Papa e por tudo o que ele foi para nós e realizou por nós. Os seus sofrimentos, a sua força na doença, a sua morte são como um último sinal do sentido que ele quis dar à sua existência: uma união profunda com Cristo, um amor à vida e à humanidade, uma fé total na ressurreição. As leituras que escutámos projectam um raio de luz sobre o sentido desta despedida e sobre o caminho do seu ministério pastoral. 1. Um novo Moisés, condutor do Povo de Deus A passagem do livro do Deuteronómio apresenta-nos a grande figura de Moisés, chamado pelo Senhor a conduzir, através do deserto, o longo e difícil caminho do povo de Israel, no qual empenhou toda a sua existência até à morte. Também João Paulo II foi chamado a conduzir a Igreja de Jesus em tempos difíceis e de grandes transformações, ao longo do último quartel do século XX para a levar à entrada no novo milénio. E fê-lo incutindo-lhe a coragem da fé desde o início do seu pontificado, com aquela expressão forte, tantas vezes repetida, e inesquecível: “Não tenhais medo! Abri , de par em par, as portas a Cristo! Ao seu poder salvador abri as fronteiras dos estados, os sistemas económicos e políticos, os vastos campos da cultura, da civilização e do desenvolvimento. Não tenhais medo! Cristo sabe o que está dentro do homem. Só Ele o sabe!” (22.10.1978). Foi de facto um novo Moisés, como condutor e guia do Povo de Deus, indo sempre à frente e abrindo caminhos novos. Como Moisés foi um grande crente; de uma fé sólida, forte, convicta e contagiante, alimentada na sarça ardente da contemplação e da oração, da experiência de Deus intensamente vivida. Manteve-se tão firme “como se visse o invisível” (Heb 11, 27). Manteve-se firme frente a todas as provações e ameaças, porque tinha contemplado o mistério do Senhor glorioso. Esta é, a meu ver, o segredo da sua força e do seu ministério. Numa visita ao Brasil depois do atentado que sofreu, disse significativamente: “Tenho três anos de pontificado, os restantes são milagre…” Daqui brotava a sua ânsia apostólica de peregrinar pelo mundo, de fazer encontrar os homens com Cristo, de levar a todo o mundo a luz do Evangelho. Por isso, fez-se Peregrino da Esperança e da Paz. Recolheu no seu coração as esperanças, as angústias, as lágrimas de um século, sem perder a esperança de que “elas prepararam o terreno para uma nova primavera do espírito humano” de paz e liberdade. Peregrinou incansavelmente, aproveitando todas as ocasiões para amar, encorajar, comprometer a todos nesta causa da paz. Visitou-nos três vezes. Pudemos viver juntos momentos fortes cujas imagens evocam uma espécie de coração a coração com ele. Era sua característica falar “coração a coração” a cada um, particularmente aos jovens. Para eles, o Papa nos últimos tempos era como o avô sábio, afectuoso, compreensivo mas também exigente. Para o Papa, os jovens eram “as sentinelas da manhã” a quem confiou o cuidado pelo futuro de vida e esperança do século XXI. Como Moisés também o Papa João Paulo II podia dizer ao seu povo: “Recorda, Israel, o caminho que o Senhor te fez percorrer” (Deut 8, 2-3. 14-16). Foi verdadeiramente intenso o caminho que o Senhor fez percorrer à Igreja, nestes 26 anos, sob a guia do seu Pastor universal. Basta pensar nas 104 viagens pastorais pelo mundo, nas 14 encíclicas, 15 exortações apostólicas, 45 cartas apostólicas e nas celebrações do grande jubileu de 2000, que ofereceu à Igreja. Como Moisés, também o Papa, no termo da vida, foi chamado a subir ao monte, a sós com o seu Senhor, para contemplar de longe a “terra prometida”: a vasta China e a Rússia, levando consigo o sonho de as visitar, deixando ao Senhor dispor os tempos e a alegria da colheita. 2. Um gigante da História, da Igreja e da Fé A segunda leitura do Apocalipse convida-nos a contemplar a luta perene entre o bem e o mal, a vida e a morte, que atravessa a história da humanidade, a própria Igreja, o coração de cada homem e que há-de ver a vitória final de Deus, da sua Graça misericordiosa, em que participa Maria, Mãe de Jesus. Também neste campo, o Papa Wojtila foi um combatente, não com as armas deste mundo, mas com a força do Evangelho. Ficará na história como uma das duas ou três figuras religiosas, morais, culturais e políticas que marcaram o século XX. Ergue-se, na verdade, como um gigante da História: lutou com todas as suas forças contra tudo o que fere e impede a vida e a dignidade na história e nas sociedades, contra todos os totalitarismos. Foi o Papa dos direitos humanos, defensor da dignidade da vida humana desde a concepção até à morte, advogado dos pobres, promotor e artífice da Paz. “A guerra é sempre uma derrota da consciência humana, uma derrota da humanidade” – disse-o apaixonadamente em relação à guerra no Iraque. Ergue-se como um gigante da Igreja: lutou contra tudo o que fere ou impede a vida espiritual e o espírito de comunhão. Foi o Papa do diálogo ecuménico e inter-religioso, da liberdade religiosa, da purificação da memória, do dinamismo da nova evangelização. Ergue-se como um gigante da fé: a tempo e contra-tempo, afirmou que Jesus Cristo é o caminho que conduz à felicidade, ao coração do Pai e ao encontro dos homens. E recusou que o homem se deixe cair na mediocridade da vida propondo a todos, com ousadia, “ a medida alta da santidade”. E, nesta causa da história humana, assumiu como “advogada nossa”, Maria, Mãe da Misericórdia, que assiste a humanidade que anseia por erguer-se. E na encíclica sobre o Rosário propôs-nos Maria como mestra de contemplação da beleza do rosto de Cristo. 3. Papa da Eucaristia A passagem do Evangelho de Lucas narra o episódio sugestivo dos dois discípulos de Emaús, um acontecimento vivido que se tornou “evangelho”, boa-nova. Fala-nos de uma tristeza e desilusão que, pouco a pouco, se tornaram esperança e ardor, sede de uma palavra e alegria de um reconhecimento com a invocação que brota do coração: “Fica connosco, Senhor!” É a boa-nova de que a Igreja vive da Eucaristia, descobre nela a razão da sua vida, o fundamento da sua missão, a força do seu testemunho no mundo. Sabemos como esta narração era tão cara ao nosso Santo Padre. Tinha-a escolhido como ícone para dar ritmo ao Ano da Eucaristia que constitui a síntese do seu pontificado. Terminemos pois com a sua última oração na manhã de Páscoa, precisamente a partir desta invocação: 1.Mane nobiscum,Domine! Fica connosco,Senhor!(Cf.Lc24,29). Com estas palavras, os discípulos de Emaús convidaram o misterioso Viajante a ficar com eles ao cair da tarde daquele primeiro dia depois do sábado no qual havia ocorrido o incrível. Segundo a promessa, Cristo havia ressuscitado; mas eles ainda não sabiam. Contudo, as palavras do Viajante durante o caminho fizeram pouco a pouco arder seus corações. Por isso convidaram-no: «Fica connosco». Depois, sentados em torno à mesa para a ceia, reconheceram-no “ao partir do pão”. E, de repente, ele desapareceu. Ante eles ficou o pão partido, e em seu coração a doçura de suas palavras. 2. Queridos irmãos e irmãs, a Palavra e o Pão da Eucaristia, mistério e dom da Páscoa, permanecem nos séculos como memória perene da paixão e ressurreição de Cristo. Também nós hoje, Páscoa da Ressurreição, com todos os cristãos do mundo, repetimos: Jesus, crucificado e ressuscitado, fica connosco! Fica connosco, amigo fiel e apoio seguro da humanidade em caminho pelas sendas do tempo. Tu, Palavra viva do Pai, infundes confiança e esperança a todos que buscam o sentido verdadeiro de sua existência. Tu, Pão da vida eterna, alimentas o homem faminto de verdade, de liberdade, de justiça e de paz. 3. Fica connosco, Palavra viva do Pai, e ensina-nos palavras e gestos de paz: paz para a terra consagrada por teu sangue e cheia de sangue de tantas vítimas inocentes; paz para os Países do Oriente Médio e da África, onde também se segue derramando muito sangue; paz para toda a humanidade, sobre a qual há sempre o perigo de guerras fratricidas. Fica connosco, Pão da vida eterna, partido e distribuído aos comensais: dá-nos também a nós a força de uma solidariedade generosa com as multidões que, ainda hoje, sofrem e morrem de miséria e de fome, dizimadas por epidemias mortíferas ou arruinadas por enormes catástrofes naturais. Pela força de tua Ressurreição, que elas participem igualmente de uma vida nova. 4. Também nós, homens e mulheres do terceiro milénio, temos necessidade de Ti, Senhor ressuscitado. Fica connosco agora e até o fim dos tempos. Faz que o progresso material dos povos nunca obscureça os valores espirituais que são a alma de sua civilização. Ajuda-nos, rogamos-te, em nosso caminho. Nós cremos em Ti, em Ti esperamos, porque só Tu tens palavras de vida eterna (cf. Jo 6, 68). Mane nobiscum, Domine! Alleluia!