Um novo aggiornamento

Padre Hugo Gonçalves, Diocese de Beja

Relata-nos o evangelista São João (cf. Jo 6, 60-69) que, após o discurso de Jesus sobre o Pão do Céu (cf. Jo 6, 22-58), alguns dos seus discípulos consideraram “insuportáveis” as Suas palavras e difíceis de as entender. Nesse mesmo instante, Jesus acabou por lhes dizer que, entre eles, encontravam-se alguns que não acreditavam, algo que será evidenciado pelo Evangelho ao referir que “muitos dos seus discípulos” O abandonaram, deixando de seguir o Senhor. Diante de tal situação – do abandono por parte de um grande número de discípulos – poderíamos considerar que foi um duro revés para Jesus e para o seu ministério na medida em que não foi capaz de ‘segurar’ grande parte daqueles que o seguiam; mas, como se isto não bastasse e de uma forma incompreensível, o Senhor volta-se para aqueles que restam – para os Doze – e diz-lhes: “Também vós quereis ir embora?”.

A pessoa de Jesus, os seus ensinamentos, a radicalidade do anúncio e o convite à conversão são evidentemente o motivo do escândalo, da censura e do abandono. Por isso, se o mesmo acontecesse nos dias de hoje, com toda a certeza que Jesus correria o risco de ser reprovado numa Faculdade de Teologia, criticado pelas mais ilustradas práticas pastorais ou trucidado pelos colegas, pelos paroquianos ou, quiçá, chamado pelo seu Bispo para uma conversa mais séria.

Nos tempos que correm, a questão dos números e das estatísticas não interessam somente à sociedade civil, mas interessam (e muito) à Igreja, ainda que os seus agentes da pastoral não o digam abertamente. Se uma paróquia ou uma diocese vê uma perda constante de fiéis, entra em pânico, passando rapidamente à convocação de reuniões de emergência de Conselhos Pastorais e Presbiterais, se não mesmo de vigararias/arciprestados, para analisar aprofundadamente as causas de tal debandada e quais as estratégias para inverter a situação. Para que tal não suceda, para que a Igreja seja atrativa para aqueles que estão fora dela, procura-se, em grande parte dos casos, ter planos pastorais que incidam em formas de cativar e de ir ao encontro das necessidades de cada pessoa (o que até tem o seu sentido positivo). No entanto, o erro surge quando, para isso, abdicamos da Verdade em detrimento da vontade de outro(s) que deseja(m) estar na Igreja e ser Igreja, não querendo mudar nada nas suas vidas e não prevendo lugar à conversão pessoal. Aquilo que afirmo não se baseia em meras divagações, mas numa realidade que hoje já encontramos em paróquias e dioceses, bastando ler as conclusões da primeira fase deste Sínodo que o Santo Padre convocou e que ainda estamos a viver ou mesmo as conclusões da fase nacional do referido sínodo. Em grande parte delas salienta-se a importância de uma atenção maior para os recasados e os grupos LGBTQI+, como se nas nossas comunidades paroquiais os divorciados recasados ou as pessoas homossexuais fossem como que marginalizadas ou escorraçadas das mesmas – algo que nunca vi isso nas comunidades onde fui pároco, nem nas de qualquer outro colega. Contudo, há efetivamente uma corrente dentro da Igreja (sobretudo no continente europeu e, consequentemente em Portugal) que parece querer tender em normalizar aquilo que, para nós, ainda se chama pecado, transformando-o quase em virtude ou, ao menos, em relativizar essas situações. Obviamente que a máxima ‘condena-se o pecado e não o pecador’ é importante, mas o erro consciente de alguns pastores e leigos está na distorção desta máxima, fazendo uso abusivo das palavras de Jesus diante da mulher adúltera – “Ninguém te condenou? … Também Eu não te condeno” (Jo 8, 10-11) – para ‘despenalizar’ o pecado que, ao fim e ao cabo, acaba por ser revogado pela própria criatura, pelo próprio ministro, indo contra aquilo que o Senhor sempre nos ensinou e que se manifesta, em parte pela conclusão deste diálogo entre a mulher e Jesus: “Vai e de agora em diante não tornes a pecar” (Jo 8, 11).

Este aggiornamento que alguns querem fazer e que já tem expressão e visibilidade concretas na Igreja na Alemanha, no controverso Sínodo Nacional, e que em muito tem preocupado o Santo Padre, procura mundanizar a Igreja, expurgando a Sagrada Escritura, o Magistério e a Tradição de tudo aquilo que vá contra os novos valores, forjando as novas propostas a partir das novas ideologias libertárias ocidentais (ideologia de género, casamento de pessoas do mesmo sexo, etc). Esta aparente e enganadora abertura ao mundo – à contemporaneidade – não vai buscar à ciência o que de melhor aporta ao nosso conhecimento, sobretudo e como já referi em artigo anterior, o que nos pode ajudar a provar a existência de Deus e a dignidade do Homem num mundo mais centrado na ciência e na técnica. Em contrapartida, estes movimentos que tentam transformar a Igreja limitam-se a beber de fontes ideológicas que em nada têm em conta o Evangelho, procurando introduzi-las na Igreja, formatando-a, deformando-a, separando-a da Verdade.

O caminho que alguns procuram trilhar, não só na Alemanha, mas também por terras lusas – aqui ainda de forma encapotada, como lobos revestidos de pele de cordeiro – já está a ser experimentado na Igreja Anglicana e com prejuízos incomensuráveis. O êxodo que ocorre nos anglicanos em direção à católica é significativo, mas as atuais correntes teológicas e pastorais, versadas em documentos recentes de alguns dos principais bispos anglicanos, farão com que a divisão e separação nesta Igreja sejam mais significativas. Não há muito tempo, num jornal de renome em Inglaterra, era declarado que a Igreja Anglicana já não era maioritária, não obstante as tentativas de adaptação às tendências da moda: bênção de uniões entre pessoas do mesmo sexo, normalização e aceitação do pecado, e a absorção do movimento woke e ideologia de género. O conflito e as divisões na Igreja Anglicana são tão grandes que, de entre as diferentes Igrejas a ela unidas noutros continentes, muitas já expressaram a vontade de se separarem da Igreja de Inglaterra exatamente por esta deriva diabólica que atenta contra a Verdade revelada. Num debate talvez nunca visto, na Universidade Oxford (Oxford Union), sobre a temática do casamento de pessoas do mesmo sexo, um simples diácono (Rer. Calvin Robinson) enfrentou os bispos anglicanos recordando o que dizem as Escrituras e questionando-os se porventura Deus se enganou quando nos concedeu a Sua Palavra, se Jesus se enganou quando pregou o Evangelho ou se agora os bispos têm autoridade para desafiar a autoridade das Escrituras ou fazer uma seleção daquilo que se aceita ou não das mesmas. A coragem deste jovem diácono, a sua fidelidade à Sagrada Escritura e à Tradição valeram-lhe o cancelamento da sua ordenação presbiteral. Infelizmente, nós não andamos longe desta realidade na Igreja Católica no ocidente, pelo menos em alguns sectores da mesma. Também a intelectual católica francesa, Chantal Delsol, numa entrevista que concedeu à revista Omnes, em que abordava o seu novo ensaio “O fim da cristandade”, a determinado momento salientava que a moral católica no ocidente está-se a tornar numa filantropia sem transcendência, que está a acontecer uma reelaboração da moral cristã, na qual o Céu (Deus) estava excluído (cf. Omnes – Chantal Delsol: “Los cristianos tenemos la oportunidade de ser mejores como minoría”; Bernard Garcia Larraín; 30 de marzo de 2023).

Se queremos embarcar nesta deriva, de infidelidade a Deus, à Sua Palavra e à Verdade e sermos uma imitação barata da Igreja Anglicana ou da Igreja na Alemanha, fazendo um revisionismo da Sagrada Escritura, da Tradição e do Magistério, tudo por uma questão de números, então lembremo-nos das palavras de Jesus: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revoga-los, mas levá-los à perfeição … Portanto, se alguém violar um destes preceitos mais pequenos, e ensinar assim aos homens, será o menor no Reino do Céu.” (Mt 5, 17.19). Um novo aggiornamento é importante, mas este tem sempre de ser feito à luz e em fidelidade a Deus, à Sua Palavra, à Tradição e ao Magistério. Será importante abandonar um olhar sobre as Paróquias e as Dioceses centrados nos números, como se fossemos empresários e a Igreja uma multinacional que busca cliente numa amálgama de realidades (inclusão, ação social, migrações, etc, etc) e onde falta Deus, o anúncio da Boa Nova que nos leva à conversão e, consequentemente ao amor a Deus e aos irmãos, num caminho de santidade. Termino recordando as palavras do Santo Cura de Ars ao rapazinho que encontrou no caminho, quando ia tomar posse da sua paróquia: “Mostra-me o caminho para Ars, que eu mostro-te o caminho para o Céu” – Que belo plano de ação pastoral.

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Agência ECCLESIA

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