Um mundo em convulsão

Padre M. Correia Fernandes, Diocese do Porto

É certamente drama deste tempo, destes dias: a ameaça de guerra, de que já o Papa Francisco se faz frequentemente eco. Ressalta, para a nossa sensibilidade e proximidade, o pequeno território de Israel (Faixa de Gaza, Cisjordânia, Líbano, Síria), ao lado do grandioso território de Ucrânia/Rússia. Mas é preciso pensar também em locais como a China/Formosa, o Sudão, a Etiópia, Myanmar ou Moçambique e outros países africanos, onde o estado de guerra é permanente ameaça.

É neste mundo que nem as Nações Unidas e as suas missões de paz, nem tantas organizações humanitárias conseguem colocar algum freio e promover equilíbrio humanizador.

Por outro lado, causa perturbação a referência constante a absurdas quantidades de dinheiro postas à disposição da guerra, finalidade para a qual parece não haver limite nos orçamentos, e mesmo se afirmam as disponibilidades monetárias para as guerras como realidades virtuosas, donativos humanitários e mesmo expressões de generosidades. Não encontramos referência do mesmo nível, e muito menos idênticos valores materiais para projetos de desenvolvimento, para esquemas de alimentação ou de habitação, para benefícios sociais ou para desenvolvimento de atividades produtivas de equilíbrio e bem-estar.

Este parece se tornar-se um vício institucionalizado: o desenvolvimento da guerra, sempre disfarçado de defesa de direitos, mas essencialmente de interesses. Os planos de paz de uns são rejeitados pelos outros. A ameaça da dimensão atómica de qualquer guerra futura, cujo contexto de universidade é supinamente afirmado (“a guerra não se limitaria à Europa”, declarou Putin) inquieta a humanidade, enquanto os próceres do poder se digladiam nas ameaças e nas mentiras.

O Papa Francisco tem tornado recorrente as suas referências, sempre com propostas de paz, de defesa das populações e dos direitos das pessoas. Interessante é a oportunidade da celebração do dia de Santo Agostinho, que lembrou como construtor de caminhos de liberdade e de fraternidade, a busca da experiência da paz com Deus que nasce da sabedoria e supera todo o entendimento. Esta sabedoria como caminho para a paz é uma carência do entendimento da condução dos povos, e o conceito de guerra justa que considerou devia estar sempre sujeito a todas as possibilidades de paz.

No século XVII o Padre António Vieira sentiu os dramas da guerra, cuja vivência o levou àquela descrição antológica e atual: “É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e, quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal nenhum que ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro”. Palavras de um sermão panegírico, em ambiente de respeito fúnebre, manifestam as mesmas vivências de hoje.

Parece no entanto esquecida pela sociedade, pelos canais de informação, pelo ambiente social do quotidiano das populações, a afirmação do próprio Papa Francisco: a consciência de que a guerra é um crime contra a humanidade. Essa consciência não existe nem nos governantes, nem nos políticos, nem nos generais, nem nos próprios responsáveis ou mentores das convicções da sociedade, nem nos edificadores da inteligência artificial.

Interessante seria sugerir aos responsáveis alguns conceitos esquecidos. O primeiro é o da boa convivência social, assente na verdade e no espírito fraterno e de respeito mútuo. O Papa Francisco chamou-lhe além disso “uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade” (Laudato Sì, 231).

E na Fratelli Tutti salienta a raiz de toda a política que conduza à paz: a que é “centrada na dignidade humana”, na consciência dos cidadãos, o conceito e prática da política como serviço do bem comum, da erradicação da pobreza e proteção dos direitos humanos.

O apelo à negociação, aos mediadores e à arbitragem de conflitos é igualmente proposta da Nações Unidas para a solução de conflitos.

Infelizmente não tem sido este o caminho dos dirigentes políticos. Agir através da violência constitui o caminho da destruição, como  o que está a ocorrer nos locais de guerra. Destruir para pensar ganhar é a mais bárbara das ilusões. E no entanto é o caminho que tantos insistem em seguir.

Talvez seja tempo de promover os heróis do futuro, como lembra a Fratelli Tutti: Os heróis do futuro serão aqueles que souberem quebrar a lógica da violência, e sustentar respeitosamente uma palavra densa de verdade. Queira Deus que estes heróis se estejam gerando silenciosamente no coração da nossa sociedade.

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Agência ECCLESIA

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