Um lírio, um livro e um coração transverberado – Para entender Leão XIV

Padre Pablo de Lima

Ontem o Papa Leão descreveu-se como “um filho de Santo Agostinho”. E é-o verdadeiramente. Em primeiro lugar, porque é um frade agostiniano (em rigor, os agostinianos eram monges, porque a Ordem de Santo Agostinho segue a regra de Sto. Agostinho, do séc. V, mas foram refundados no movimento mendicante do séc. XII). Em segundo lugar, e ainda mais, porque actualizou na sua vida o espírito do santo bispo africano de Hipona (actual Argélia).

No seu brasão episcopal (que será provavelmente adaptado à sua condição pontifícia, mas não alterado na sua essência) constam três símbolos. O “lírio dos vales” do Cântico dos Cânticos (2,1-2) é o símbolo mariano por excelência. Símbolo da pureza imaculada de Maria, obra mais excelsa da Santíssima Trindade, é também conhecido na versão tripartida (alusão às três pessoas divinas) ou francesa como flor-de-lis. Este é um símbolo mariano universal, não é específico da sua ordem religiosa. Não há sombra de dúvida sobre o amor terno do Papa Leão pela Virgem Santa Maria, a quem invocou sob o título de Pompeia e que nos convidou a rezar com ele a Ave-Maria.

O livro e o coração trespassado são símbolos excelentemente agostinianos. Comecemos pelo coração que não é o coração de Jesus, como erradamente alguns se têm apressado a dizer na internet e não só. Na verdade, é o coração mesmo de Santo Agostinho e refere-se a um ideal de vida. Santo Agostinho, nascido em Tagaste (Argélia), é conhecido como o teólogo do amor e da amizade. Dele é profusamente conhecida a expressão “Pondus meum amor meus; eo feror, quocumque feror” (Conf., XXXIII,9), que poderíamos traduzir como “o meu amor é o meu peso, é ele que me move para onde quiser”. “Peso” quer dizer “centro de gravidade” e consistência. Para Santo Agostinho, o amor é a verdadeira força motora e, por isso, afirmava que é necessário tudo organizar segundo o “ordo amoris”, a ordem/forma do amor (De Doct. Christ. I,28; De Vera Rel. 48,93).

Esta centralidade do amor levou à invenção de uma frase atribuída a Santo Agostinho e que pulula na internet: “ama et quod vis fac”, isto é, “ama e faz o que quiseres”. A frase é linda e muito original, mas não é de Santo Agostinho. De Santo Agostinho é sim uma outra, vivida à saciedade pelo Papa Leão XIV: “sit amoris officium pascere dominicum gregem” (In Ioh. Evang., 123, 5), isto é, “apascentar o rebanho do Senhor seja um serviço de amor”. Por estes dias, circulam já fotos do então bispo de Chiclayo, no Perú, a servir sopa aos pobres e a visitar as comunidades de cavalo, para poder chegar aonde os carros ainda não podem deslocar-se, vivendo assim na prática o “ofício do amor”.

O coração transverberado é um episódio simbólico da vida de Santo Agostinho, ainda que a maior parte dos cristãos só o conheçam aplicado à vida de Santa Teresa de Jesus, na famosíssima escultura de Bernini. No entanto, quase toda a iconografia de Santo Agostinho o apresenta com o báculo de bispo numa mão e, na outra, o livro aberto sobre o qual repousa um coração em chamas (ou trespassado por uma seta abrasada). Este coração em chamas estrategicamente colocado sobre um livro, isto é, sobre a Bíblia, está associado a outra expressão de Santo Agostinho: “mens et amor et notitia (…) unum sunt” (De Trin. IX,4,4) ou, “a mente, o amor e o conhecimento são uma coisa só”. Ou, nas palavras magistrais de São Gregório: “amoris ipse notitia est” (In Ev., II, 27, 4), “o amor é em si mesmo conhecimento”. De facto, para Santo Agostinho o amor move a querer conhecer e ensina quem é o Amado. Na teologia e espiritualidade agostinianas, amar a Deus leva a desejar conhecer Deus profundamente, não só na oração, mas também no estudo das Escrituras. Por isso, Santo Agostinho foi um estudioso e pregador insigne das Sagradas Escrituras e Robert Prévost não o foi menos como frade, pároco, professor, reitor e bispo.

Um outro significado do livro está associado a um episódio da vida de Santo Agostinho, relatado por ele mesmo na sua autobiografia “As Confissões” (VIII, XII, 29). Recorda o Padre da Igreja que, estando um dia num jardim, ouviu uma voz de criança que lhe dizia “tolle, lege; tolle, lege”, isto é, “toma e lê, toma e lê”!”. Obedecendo, pegou na Carta aos Romanos (13,13-14) e, lendo a exortação a abandonar as obras da carne e revestir-se de Cristo, deu o passo final de ser baptizado e tornar-se cristão: “Tinhas convertido a ti o meu ser” (VIII, XII, 30). Assim, as Escrituras foram o instrumento definitivo pela qual se operou a conversão de Aurélio Agostinho ao evangelho de Jesus.

Por estas ideias centrais em Santo Agostinho, o lema da ordem agostiniana é “Amor et Scientia” ou “Amor e Conhecimento” ou “Amor e Estudo”. Desta forma, para os agostinianos, a vida cristã, e ainda mais a vida sacerdotal ou episcopal, consistem no amor ou caridade e no estudo, conhecimento e ensino da Palavra. Porém, o Papa Leão XIV, escolheu como seu lema episcopal uma outra frase de Santo Agostinho: “In illo uno unum” (Enarr. in Ps 127,3) ou, “N’Ele, que é Um (só), somos um”. Mas deixemos para outra momento a reflexão sobre este apelo à unidade dos crentes em Cristo. Por enquanto, não ficam dúvidas de que Leão XIV é um “filho de Santo Agostinho”.

Pablo de Lima, 09.V.2025.

PS. O meu percurso vocacional começou na Venezuela com a Ordem Agostiniana Recoleta (OAR) que me incutiu o amor à figura e escritos de Santo Agostinho, particularmente o P. José Luís Uruñuela. Este pequeno texto é também uma pequena homenagem pela marca que deixaram na minha caminhada e que agora reencontro pelo exemplo do Papa Leão XIV, primeiro papa agostiniano da história da Igreja.

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