D. Antonino Dias, bispo de Portalegre-Castelo Branco
O Dia Internacional da Família é celebrado, desde 1994, a 15 de maio. Esta data, escolhida pela Assembleia Geral das Nações Unidas, tem como objetivos, entre outros, destacar e chamar a atenção para a importância da família. De facto, é bom que todas as instâncias locais, nacionais, supranacionais e toda a sociedade civil se interessem cada vez mais pela família, pela sua verdade, pela sua solidez, pela sua estabilidade, pelos seus direitos, pela sua qualidade de vida com tudo o que isso implica. Tudo quanto se possa fazer – de bem -, pela família é sempre muito pouco, pouquíssimo em relação ao que ela merece e precisa. De promessas, blablá e de quem a agrida é que ela não precisa mesmo.
A família é o fundamento da vida das pessoas, ‘o protótipo de todo o ordenamento social’, a primeira e fundamental estrutura a favor da ‘ecologia humana’. É no seio da família que a pessoa recebe as primeiras e mais importantes noções acerca da verdade e do bem, aprende o que significa amar e ser amado, o que quer dizer ‘ser pessoa’. É o primeiro espaço onde se fomenta a cultura do diálogo, do acolhimento, da tolerância, da partilha, do respeito mútuo, da afetividade, da atenção ao outro, do cuidar do diferente, da corresponsabilidade e da alegria do encontro, do saber ser e estar. É o primeiro espaço que também educa e fortalece para saber ultrapassar as dificuldades, as tensões e as contrariedades da vida, ou, quando isso é de todo impossível, devido à doença, ao sofrimento, à fragilidade humana e à própria morte, mesmo que custe, aí se aprende que a vida engloba tudo isso. Não é como desejaríamos que fosse, é o que é, “um caminho dinâmico de crescimento e realização” percorrido na humildade da sua realidade concreta, com realismo.
Sujeito titular de direitos próprios e originários, é a mais pequenina e a primeira sociedade humana, tem a sua legitimação na natureza humana, não no reconhecimento do Estado. É anterior à sociedade e ao Estado e não é para a sociedade nem para o Estado, o Estado e a sociedade é que são para a família (DSI214). Reconhecidas e responsabilizadas na sua integridade, as pessoas têm aí, na família, com os seus defeitos e as suas virtudes, a primeira e insubstituível escola de humanização, de sociabilidade, de cidadania. Nela se faz a experiência de comunhão e participação, inspirada e guiada pela lei da gratuidade. Aí se guardam, vivem, defendem e transmitem virtudes e valores (FC42). E a família, tanto mais contribuirá, de modo único e insubstituível, para o bem da sociedade e do Estado quanto mais a sociedade e o Estado a defenderem, apoiarem e promoverem. Sem famílias fortes e estáveis no compromisso, sem famílias saudáveis e felizes, os povos banalizam-se, degradam-se, destroem-se.
Sabemos que a evolução das relações familiares e da sua ordenação jurídica foram sempre influenciadas pelas transformações sociais, políticas, económicas, culturais e religiosas. A família vive no espaço e no tempo. Tem sido aí, apesar de todas as dificuldades que enfrenta, que ela tem mostrado a sua força e a sua grandeza. E quão grande foi o contributo do cristianismo para a concretização da dignidade da pessoa humana no contexto da família. Foi e continua a ser esse o projeto ou modelo de família que anunciamos e propomos, isto é, a família fundada no casamento entre um homem e uma mulher, monogâmico, aberto aos filhos, verdadeira comunidade de vida e de amor. Uma comunidade fundada no reconhecimento da igualdade e das diferenças entre homem e mulher, em verdadeira comunhão e colaboração ativa, sem relação de poder ou de domínio. Mais do que um contrato, a família é uma aliança.
Há outros modelos de família, sim, há, e não temos dificuldade em considerar os valores que, porventura, em alguns deles possam existir ou existam mesmo. Estes novos cenários familiares, porém, fruto de escolhas pessoais e muitas vezes provisórias, às quais, à falta de outra palavra se continua a chamar família, enfraquece a união matrimonial e enfraquece a família como instituição, chegando-se a afirmar que não é a família que está em crise, mas que em crise está sim o modelo de família estável e harmoniosa, de homem/mulher e filhos.
Alguns desses modelos nascem a pretexto dum pretenso conflito entre fé e progresso. Outros surgem em obediência a ideologias e em reação à família tradicional. Outros serão fruto dos modos de pensar e viver a liberdade, hoje, nesta sociedade líquida, do usa e deita fora. Outros emergem só porque sim, por afirmação light. Na base das leis de alguns países já está subjacente a ideia do alargamento do conceito de família a novas formas ou modelos. Olhando-os com olhos de ver, porém, alguns desses modelos não só contradizem o verdadeiro conceito de família, não só negam a identidade da família, mas até se opõem ao conceito de cultura e de progresso cultural. E fazem-nos valer como inevitável consequência do progresso cultural e social, logo apelidando de retrógrados, conservadores e contra as leis do progresso quem discorda, quem não se conforma nem se cala! O progresso autêntico não se desvincula da sua ligação com a natureza. Tem como objetivo o desenvolvimento dos seus próprios valores. Supera as contradições criadas pela sua dinâmica e desenvolvimento. Não entra por uma conceção relativista e contraditória da natureza, da vida e da pessoa, desumanizando e destruindo a identidade pessoal e social. O Concílio Vaticano II lembra-nos que “É próprio da pessoa humana não ter acesso a uma verdadeira e plena condição humana, senão pela cultura, isto é, cultivando os bens e os valores da natureza. Por isso, sempre que se trata da vida humana, a natureza e a cultura estão intimamente ligadas” (GS53).
A situação de numerosas famílias, ao perto e ao longe, é muito sofrida e quase só sujeita de deveres. Instituições e leis ignoram os seus direitos invioláveis, agridem-na com violência nos seus valores e nas suas exigências fundamentais. Vítima de injustiças, inação, atrasos e lentidão nas intervenções, a família, ‘património da humanidade’, em muitos lugares, geme e grita, mas em vão (cf. FC46).
Qualquer modelo social que se leve a sério e pretenda servir o bem comum não pode prescindir da centralidade da família e de agir com responsabilidade em prol da mesma. Melhor: poder pode, mas não irá longe nem pelos melhores caminhos. Acho mesmo que temos aqui uma exceção a confirmar a regra: neste caso, nem todos os caminhos levam a Roma!