Um contributo para o Livro Branco das Relações Laborais

Comissão Nacional Justiça e Paz Vários factores têm vindo a intensificar as pressões competitivas e a necessidade de transformações estruturais profundas na generalidade dos países. De entre essas transformações destacam-se: a rápida integração económica internacional (globalização), a emergência de novas grandes economias na cena mundial, a rápida introdução e evolução de novas tecnologias, nomeadamente nas áreas da informação e comunicação, o envelhecimento das sociedades europeias que juntamente com taxas de emprego relativamente baixas pode pôr em risco a sustentabilidade financeira dos sistemas de protecção social e o crescimento de mercados de trabalho segmentados, onde coexistem sectores protegidos e não protegidos. Embora, se bem geridos, os processos de globalização e as alterações estruturais possam ser no seu conjunto favoráveis ao crescimento e ao emprego, sabe-se também que trazem implicações profundas para os trabalhadores e para as empresas. As empresas têm de tornar-se mais flexíveis para responderem a alterações imprevisíveis dos padrões de procura e devem adaptar-se às NT e métodos organizacionais que dinamizem a inovação e competitividade. Os trabalhadores precisam de adquirir qualificações para criarem e usarem NT e se adaptarem às novas práticas de trabalho, ao mesmo tempo que necessitam de efectuar transições rápidas no mercado de trabalho em condições que permitam a salvaguarda dos seus direitos fundamentais. Uma Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa, de Novembro de 2002, lembra que: “a evolução económico-social exige um código de trabalho adaptado às novas circunstâncias com uma concepção que tenha verdadeiramente presentes as dimensões éticas e sociais inerentes ao mundo do trabalho”. No momento em que a Comissão Europeia se encontra preocupada com a modernização da legislação do trabalho (Livro Verde da U.E.) e em Portugal se encontra em elaboração um Livro Branco das Relações Laborais, existindo mesmo uma Comissão a quem foi atribuído esse mandato, a C.N.J.P. não quis deixar de participar na discussão pública deste tema e de vir expressar a sua opinião, à luz da Doutrina Social da Igreja, acerca de uma matéria que incide directamente sobre a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o presente documento aborda os seguintes aspectos fundamentais: – O direito do trabalho, numa perspectiva universal de defesa dos direitos fundamentais dos trabalhadores e de dignidade do trabalho – O papel central da negociação colectiva – Novas exigências do mundo do trabalho – As empresas transnacionais e as deslocalizações. O DIREITO DO TRABALHO “A dignidade do trabalho” A principal função/finalidade do direito do trabalho é garantir que nas relações laborais a dignidade do trabalho seja respeitada. Na Doutrina Social da Igreja Católica e, nomeadamente, no recente Compêndio da Doutrina Social da Igreja (2004) “a dignidade do trabalho” (nº 270 a 286) e os “direitos dos trabalhadores” (nº301 a 304) têm um lugar destacado. Além de se reafirmar o princípio da “prioridade do trabalho” em confronto com o “capital” (também expresso na carta encíclica de João Paulo II “Laborem Exercens”) e da prioridade do ser humanos sobre o trabalho, salienta-se também que “os direitos dos trabalhadores, como todos os demais direitos, baseiam-se na natureza da pessoa humana e na sua dignidade transcendente”, enumerando-se seguidamente alguns desses direitos como, por exemplo, os relativos a uma remuneração justa, ao repouso, à segurança social, à acção sindical, entre outros (cf. nº 301). Não é, por isso, admissível que, perante um contexto de mudança, se enfraqueça neste domínio a defesa da dignidade humana no trabalho: “Mudam as formas históricas em que se exprime o trabalho humano, mas não devem mudar as suas exigências permanentes, que se reassumem no respeito pelos direitos inalienáveis do homem que trabalha” (nº319). É, também, significativo que a O.I.T. designe hoje como seu principal objectivo assegurar que o trabalho seja para todos “Trabalho Digno”. É sob esse título que são designados os programas relacionados com este domínio, apresentados no relatório de 1999 do seu Director-Geral, que se inicia nos seguintes termos: “Este Relatório propõe para a OIT nestes tempos de transição global um objectivo primordial: assegurar trabalho decente em toda a parte para as mulheres e homens… Hoje, trabalho decente é uma exigência global que confronta a liderança política e empresarial em todo o mundo. Muito do nosso futuro comum depende de como enfrentamos este desafio”. A UE também se comprometeu em colaborar com a OIT para “a realização da agenda do trabalho digno no mundo” (Comunicado da CE 24/05/06), esperando-se que, na sequência desse compromisso, o respeito pela dignidade do trabalho seja garantido e reforçado quando se trate de “modernizar o direito do trabalho”. “O conteúdo do direito do trabalho” Em nosso entender, o direito do trabalho deve basear-se nos seguintes pressupostos: a) Um quadro legal seguro (isto é, que seja cumprido e feito cumprir…) que responda à necessidade de a situação de trabalho conter um grau mínimo de previsibilidade, sem a qual, aliás, as relações humanas não são possíveis, particularmente as relações laborais; b) Critérios que orientem a regulação dos tempos de trabalho e descanso, numa gestão minimamente previsível do tempo, que possibilite atender a aspectos fundamentais relacionados com as necessidades da vida pessoal, familiar, cívica ou comunitária; c) Um quadro legal que assegure o respeito da relação de trabalho enquanto baseada numa dimensão contratual que não se confunda com uma mera relação de negócio, nem mesmo como uma prestação individual de serviços; d) Uma relação contratual, própria da relação laboral, que acolha a possibilidade de defesa do trabalhador como parte mais fraca, cuja dependência da parte “patronal”, mesmo que em algumas actividades profissionais não seja dependência de orientação técnica e hierárquica, implica sempre dependência económica; e) Um quadro legal que assegure e promova o enquadramento colectivo das relações laborais, dado que a dimensão contratual da relação de trabalho não se restringe ao nível do contrato individual. “A modernização do direito do trabalho” A legislação do trabalho deve constituir, como referido, o quadro principal de referência das relações laborais. Nas décadas recentes, têm proliferado várias formas atípicas de contratos de trabalho (trabalho temporário), que conduzem a uma maior flexibilidade de ajustamento dos níveis de trabalho pelas empresas, mas à custa de um reduzido nível de segurança no emprego e de rendimentos, com pobres perspectivas de carreira para a grande maioria dos trabalhadores recrutados no quadro desses acordos contratuais. Essas “formas atípicas” de contrato de trabalho coexistem com o modelo tradicional de “trabalho típico”, com emprego permanente, a tempo inteiro, no mesmo local, ao qual estão consagrados vários tipos de direitos. As necessidades de maior flexibilidade para as empresas e, portanto, a existência de novas formas de contratos de trabalho não devem fazer esquecer que: • Devem ser dadas garantias idênticas para todos os trabalhadores relativamente a situações equivalentes, independentemente do tipo de situação contratual; • Deve ser concedida protecção adequada às formas de maior precariedade, nomeadamente quanto à transição entre formas contratuais diferentes, ao acesso à formação e qualificação, à passagem de postos de trabalho mal remunerados para outros de melhor remuneração e à garantia de transferência de direitos no âmbito da segurança social; • Deve ser incentivado o papel fiscalizador do cumprimento das obrigações legais, já que o desenvolvimento das relações de trabalho mostra uma certa distância entre o quadro legal em vigor e a prática, nomeadamente em relação às situações mais precárias. A NEGOCIAÇÃO COLECTIVA Para além do papel central da lei, uma das melhores formas de regular as relações de trabalho é a negociação colectiva, pondo em confronto as diversas partes envolvidas, através das suas organizações, completando-a, sempre que possível, com o diálogo social, a nível macroeconómico. Contudo, em Portugal, a negociação colectiva apresenta vários estrangulamentos que impedem que a mesma adquira uma maior dinamização e um conteúdo mais rico. Para obviar a esta situação, uma modernização da legislação do trabalho deverá procurar estabelecer critérios de representatividade das entidades sindicais e patronais, com vista à negociação, introduzir normas de actualização dos instrumentos negociados, fomentar a negociação ao nível das empresas, especialmente no caso das pequenas e micro-empresas, bem como criar mecanismos de articulação entre os vários níveis de negociação, incluindo o nível macroeconómico. Entre os vários domínios que deverão passar a ser abrangidos pela negociação colectiva, refiram-se as novas realidades e exigências do mundo do trabalho, que a não serem devidamente reguladas, poderão ser causadoras de maior segmentação e desigualdades crescentes. NOVAS EXIGÊNCIAS DO MUNDO DO TRABALHO “Flexibilidade e adaptabilidade” Os termos de flexibilidade e adaptabilidade são referidos em múltiplas acepções (flexibilidade interna, externa, funcional, salarial, adaptabilidade a nova organização do trabalho, a novos postos de trabalho, etc.), mas não há dúvida que correspondem a novas exigências do mundo do trabalho, sendo efectivamente necessárias, embora não em termos universais aplicáveis a todas as situações de trabalho. Os critérios para a sua aplicação devem atender quer a referenciais tecnológicos e profissionais (especialmente quanto à flexibilidade funcional), quer a necessidades de mercado e logísticas que sejam verificáveis e que justifiquem formas de adaptabilidade, nomeadamente, do tempo de trabalho. Radicam aqui razões para que a aplicação de formas de flexibilidade/adaptabilidade seja predominantemente enquadrada por negociação colectiva, preferencialmente ao nível de sector de actividade ou de empresa.Com efeito, os níveis mais apropriados para se discutir e negociar flexibilidade ou adaptabilidade, serão aqueles em que se disponha de referenciais concretos, e esses níveis são o sector de actividade e ou a empresa: o processo tecnológico de “produção” pode enquadrar melhor uma “flexibilidade funcional”, e parece dispor-se já hoje, em Portugal, de referenciais do tipo “competências profissionais” para enquadrar tal flexibilidade. Além disso, as exigências conjunturais de mercado e logística podem justificar adaptabilidade do tempo de trabalho ou flexibilização de horários, sendo que tal possibilidade não é justificável para todos os sectores de actividade. Deste modo, é mais provável que tais formas de flexibilidade/adaptabilidade sejam coerentes com especificidades tecnológicas e de mercado e resultem de uma situação de equilíbrio e aceitação negocial e, portanto, com menor potencial de conflito laboral e social. “A flexisegurança” Para além da existência de limites à aplicação das várias vertentes da “flexibilidade” impostos pelo respeito da dignidade humana, não é pertinente falar de “flexibilidade” sem a conjugar com “segurança” através de, nomeadamente, prestações sociais adequadas, politicas activas do mercado de trabalho eficientes, que apoiem de forma eficaz as transições de estatuto profissional e assentem na antecipação e gestão rápida da mudança. Em toda esta problemática deve ser tida, devidamente, em conta o papel e a opinião dos parceiros sociais. Não existem modelos únicos de “flexisegurança”, os quais são influenciados pelas características institucionais, sociais e económicas de cada país. Não sendo os termos “flexibilidade” e “segurança” propriamente novos, mas sendo frequentemente usados em acepções limitadas aos interesses de quem as defende, o conceito de “flexisegurança” ou “flexigurança assenta na ideia que as duas dimensões não são contraditórias, mas que se devem apoiar, nomeadamente no quadro dos novos desafios. A intenção de se proceder, na U.E., a uma “modernização do direito do trabalho” parece basear-se numa preocupação de tornar o direito do trabalho mais flexível como resposta a uma maior flexibilidade do mercado de trabalho. Para isso, promover-se-ia um quadro de regulação dos contratos de trabalho e de políticas de emprego em que a flexibilização dos vínculos laborais, incluindo o despedimento ou a “desvinculação”, seriam mais facilitados ao mesmo tempo que, em contrapartida, os trabalhadores teriam apoios no acesso a novo emprego ou actividade profissional e na manutenção, enquanto na situação de desemprego, de grande parte do rendimento correspondente à anterior situação de trabalho. Tendo em consideração o que se acabou de referir, entendemos que deverão ser atendidos os seguintes aspectos: • A modernização do direito do trabalho poderá ser alargada à questão da flexisegurança, desde que a introdução da mesma seja tratada num clima de franco diálogo social, isto é, as condições da sua implantação sejam negociadas, caso a caso, pois dessa forma poder-se-á evitar maior conflitualidade social; • Aspectos penalizadores para os trabalhadores deverão ser devidamente compensados em termos de: adequadas compensações de rendimento durante os períodos de desemprego; devido acompanhamento dos trabalhadores no processo de reinserção no mercado de trabalho; políticas activas de emprego que apoiem as transições entre empregos; períodos de formação e aprendizagem ao longo da vida que facilitem novas inserções no mercado de trabalho; • Uma tentativa de flexibilização da legislação do trabalho no relativo à cessação do contrato de trabalho depara-se, frequentemente, com um quadro legal já relativamente abrangente, pelo que dificilmente se poderá perspectivar uma alteração da mesma. No caso português, existem fortes condicionantes a uma aplicação do conceito de flexisegurança, já que o Estado e o sistema de segurança social continuam a enfrentar graves restrições financeiras, a actividade económica não tem apresentado potencial para um ritmo crescente e suficiente de criação de emprego, os níveis de qualificação escolar e profissional de grande parte dos trabalhadores não lhes conferem uma empregabilidade facilitadora de mobilidade profissional, o contexto cultural é favorável a comportamentos arbitrários no exercício de poderes hierárquicos e patronais. Não se deve esquecer que, nos países que têm sido apontados como exemplo na aplicação da “flexisegurança”, as condições de riqueza e de distribuição equitativa do rendimento são bem diferentes das existentes em Portugal, assim como os níveis de literacia e sentido de responsabilidade social, tanto dos empregadores e gestores como dos trabalhadores. De referir ainda que, com frequência é apresentada como exigência de competitividade e de aumento de produtividade, a necessidade de se eliminar o princípio constitucional português da proibição dos despedimentos sem justa causa. Por outro lado, o Código do Trabalho continua a integrar, nos artigos respeitantes quer a despedimento individual com justa causa quer a despedimento colectivo, uma tão ampla variedade de motivos justificativos para o despedimento que se é forçado a concluir que só por arbitrariedade se poderá despedir “sem justa causa”. Ora, mais do que por respeito a uma norma constitucional, é por respeito à dignidade do trabalho e à dignidade humana que consideramos inaceitável despedir um trabalhador sem ter que se apresentar razões justificativas ou motivos baseados em critérios de justiça. Além disso, a rigidez da legislação de trabalho é também muitas vezes apontada como factor que, segundo alguns organismos internacionais, dificulta o investimento estrangeiro. Mas não se deve esquecer que a conflitualidade social resultante de situações sentidas como injustas e que não respeitem a equidade no tratamento dos trabalhadores poderá ocasionar um ambiente social que também não é certamente atractivo para o investimento estrangeiro. AS DESLOCALIZAÇÕES Num quadro de globalização, como o que estamos a assistir, as empresas deslocalizam-se com grande facilidade, sem que os interesses dos trabalhadores estejam, na maior parte dos casos, devidamente protegidos. É certo que esses movimentos, ao mesmo tempo que levam a uma crescente concentração de poder económico, podem ter aspectos positivos aumentando as possibilidades de criação de emprego à escala global, mas também acarretam transformações nas condições de trabalho para as quais os trabalhadores se encontram, geralmente, desprotegidos. Embora esta temática não possa ser resolvida a nível de um só país, mas num quadro mais geral, mundial ou comunitário, poderá desde já avançar-se no sentido de procurar introduzir normas, mesmo a nível nacional, que protejam os trabalhadores nos casos de deslocalizações. Lisboa, 10 de Maio de 2007

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