Em grande entrevista, D. António Marto, que no próximo dia 20 de Junho completa um ano como Bispo de Viseu, faz um balanço da sua nova missão e fala das questões mais discutidas na vida da Igreja Qual o balanço que faz deste primeiro ano? D. António Marto – Ao chegar ao fim do primeiro ano, recordo toda uma série de actividades e contactos com as mais variadas representações do povo e das instituições desta diocese de Viseu. Os primeiros seis meses foram sobretudo preenchidos com audiências aos movimentos, às instituições, aos padres, às pessoas mais simples… que quiseram cumprimentar o Bispo, apresentar-se e dialogar com ele. Isso ofereceu-me um primeiro panorama da riqueza da relação humana acolhedora e calorosa desta gente de Viseu. O ano foi marcado, também, pela mobilização da diocese à volta da Eucaristia. Deu-se a feliz coincidência de o Papa, João Paulo II, ter proclamado um ano especial da Eucaristia. Pude assim traçar um plano pastoral para este ano e verifiquei também que toda a diocese viveu unida e convergiu para Cristo na Eucaristia, como escrevi na minha primeira Carta Pastoral, “A Eucaristia, Coração da Igreja”. Acresce ainda que todos os sábados e domingos, foram ocupados em visitas às paróquias, tanto para o sacramento do Crisma como para celebrar acontecimentos significativos da vida das comunidades. Além disso, visitei particularmente quase todos os arciprestados para conhecer a geografia das paróquias e os respectivos párocos. Tudo isto deixou-me a ideia de uma igreja cheia de vida, em movimento, capaz de mexer com grande número de crianças, adolescentes e jovens e onde se encontra um laicado cheio de uma dedicação impressionante à igreja e à sua missão, homens e mulheres que vivem a santidade laical. Fiquei com uma imagem muito positiva da igreja diocesana que o Senhor me confiou. Partindo da realidade da diocese de Viseu e tendo em conta as exigências e a complexidade da vida de hoje, quais as prioridades pastorais? AM – Trago comigo um sonho, que é uma resposta ao desafio que o Papa João Paulo II lançou: um projecto de Nova Evangelização, que procura ir ao coração da fé para redescobrir a sua novidade e a sua beleza e que eu intitularia: “recomeçar a partir de Cristo”. Exactamente porque na Europa se vive um tempo de fé cansada que contagiou os ambientes cristãos. Não sei se será possível realizar este sonho, pois gostaria que fosse pensado, projectado e assumido juntamente com o presbitério e todo o povo de Deus. Vamos ver o que o futuro nos dirá. Como prioridade prática mais urgente parece-me ser a pastoral vocacional. O nascer e o surgir das vocações é algo que diz respeito a todos os cristãos e comunidades cristãs. A esta prioridade está aliada a pastoral dos jovens pois eles vivem, hoje, num mundo que se assemelha a uma grande feira ou supermercado, onde é difícil orientar a vida e ser capaz de grandes opções e de compromissos duradoiros. Outra prioridade é tudo fazer para que o clero viva verdadeiramente a comunhão fraterna e pastoral dentro do mesmo presbitério para que cada padre se sinta realizado, alegre e satisfeito na sua missão. Hoje não há missão eficaz sem esta comunhão. Todas estas preocupações pastorais tornar-se-ão “ocupação” pastoral também nas visitas pastorais que iniciarei no próximo mês de Novembro à zona de Lafões, que ocupará o Bispo durante dois anos pastorais. No próximo ano será Oliveira de Frades e Vouzela e a seguir S.Pedro do Sul e Mões. Acabou de falar nos padres. A partir dos contactos pessoais e do trabalho pastoral, que avaliação faz do clero de Viseu? AM – Já tive a oportunidade e aproveito mais esta ocasião para deixar expresso ao clero o testemunho de gratidão e reconhecimento pela sua fadiga apostólica, pela sua colaboração bem como pela amizade e simpatia. Encontrei um clero ainda bastante numeroso, se compararmos com outras dioceses. Um clero dedicado, amigo, trabalhador, próximo do povo, com sentido de igreja e com gente muito competente. Referiu também a urgência vocacional. Que iniciativas pensa tomar em relação à pastoral vocacional? AM – Já tive ocasião de nomear um novo Secretariado Diocesano da Pastoral Vocacional formado a partir das várias vocações que existem na igreja. A este secretariado confiei a dinamização da pastoral vocacional em toda a diocese e das comunidades em ordem a despertar a vocação cristã e projectos válidos em todas as fases da vida sem faltar nunca a proposta da vocação sacerdotal. Os membros do secretariado estão a elaborar um programa para sensibilizar toda a diocese e porventura, talvez, já neste próximo ano o programa pastoral da diocese será dedicado a esta vertente. Procuraremos sensibilizar as comunidades cristãs para a responsabilidade que têm no surgir das vocações. Não podemos esquecer que a questão vocacional se coloca, hoje, de maneira diferente de há alguns anos, que surgia como que através de uma espécie de contagio num ambiente propício. Hoje vivemos num mundo muito diferente e a vocação requer um chamamento pessoal a cada um e sobretudo um ambiente de fé nas famílias e nas comunidades cristãs. A vocação tem de ter um húmus propício onde possa brotar. Não haverá vocações se não houver comunidades cristãs onde se viva o encanto, a alegria e a beleza da fé em Jesus Cristo. É importante e essencial o despertar vocacional. Fundamental também, e concretamente para a vocação sacerdotal, a formação. Como gostaria que fossem preparados os padres para a igreja do presente e do futuro? AM – Vivemos um tempo novo, uma viragem cultural a que todos estamos a assistir e em que participamos. Estão a surgir traços ainda genéricos de um mundo novo que coloca problemas muitos difíceis e completamente novos para a evangelização e o anúncio da fé. De maneira que os novos padres têm de ser formados para este novo mundo. Ninguém escolhe o mundo em que tem de viver e realizar a sua missão. Desejaria que os padres aprendessem a viver profundamente uma espiritualidade marcada pelo encanto por Jesus Cristo. Precisamos absolutamente de espiritualidade pois corremos o risco de nos tornarmos máquinas que trabalham 24 horas por dia. Padres culturalmente bem formados, que conheçam bem a cultura do mundo moderno para poderem dialogar com ele. Padres com solidez doutrinal e, por conseguinte, bem preparados pelo estudo da teologia para poder responder e corresponder aos problemas que estão presentes no coração das pessoas, na sua vida quotidiana e na vida da sociedade. Padres que tenham um grande sentido da comunhão, que façam eles próprios esta experiência no presbitério e ajudem a construir uma igreja casa e escola de comunhão, que promovam a corresponsabilidade dos serviços e ministérios laicais. Não é um padre isolado que recebe a missão de Cristo e da Igreja, mas enquanto inserido num presbitério, com um Bispo. É aí que encontramos elán e impulso interior para trabalhar em comunhão. Quais são os desafios que se colocam à igreja no início do novo século e do novo milénio? AM – Como já acenei, estamos a viver uma época de transformações profundas e vertiginosas que levantam grandes desafios à igreja. O primeiro é o desafio de uma nova evangelização, porque alastra por toda a Europa a indiferença religiosa. Em termos mais cultos podemos falar em agnosticismo. É esta a proposta quotidiana que é feita hoje na cultura dominante e por isso, é preciso despertar nas pessoas o apetite pela voz do Espírito e pelo conhecimento de Jesus Cristo. O coração das pessoas é hoje é preenchido pelas “coisas”, vivemos na chamada civilização do consumo ou consumismo. Esta nova evangelização tem de ter em conta, necessariamente, o diálogo ecuménico e o diálogo inter-religioso. Em segundo lugar, não se pode esquecer a questão dos valores. Vivemos na era do relativismo ético e cultural, em que tudo se mete no mesmo saco e parece que tudo vale o mesmo. É preciso recuperar os valores perenes e fundamentais para orientar a vida humana. Sobretudo colocam-se grandes questões que tocam a manipulação da vida humana, os problemas laborais que hoje se levantam com o mercado global, como o drama de muitas famílias que perdem o emprego; o problema da educação da liberdade, característica que define a pessoa humana criada à imagem de Deus. Hoje tem-se uma concepção de liberdade individualista que confunde liberdade com capricho, fazer o que dá na real gana a cada um e não se tem o sentido da liberdade no amor e para o amor, para a comunhão e para o bem da pessoa humana e da comunidade. Outro desafio novo é o campo da afectividade e da sexualidade humana que hoje corre um risco grande de degradação de modo a reduzir a sexualidade humana a algo meramente genital, ou no máximo a ser só uma questão de saúde, como propõe o actual Ministério da Educação, tirando-lhe toda a dimensão e conteúdo de espiritualidade. Confunde-se sexualidade apenas com o sexo genital e a mensagem dominante que passa pelos meios de comunicação é somente o sexo seguro “ do usa e deita fora” como uma chiclete. É um aspecto importante porque quando se degrada a sexualidade humana é a degradação do amor e da própria dignidade da pessoa. Várias vezes manifestou a alegria pela eleição do novo Papa Bento XVI. O que pode dizer como antigo aluno e alguém que contactou de perto com o cardeal Ratzinger? AM – Foi para mim uma surpresa, tendo em conta a idade. Não estava a contar. Pensava que os cardeais escolheriam uma pessoa entre os 60 e 70 anos. Mas fiquei de facto satisfeito com a eleição de Bento XVI, porque é uma pessoa de uma inteligência rara, de uma cultura invulgar, de uma fé ao mesmo tempo profunda e simples. Penso que depois de um grande pontificado como foi o de João Paulo II, inimitável, pois um papa nunca é clone do outro, requeria-se uma pessoa capaz de dialogar com o mundo moderno e o cardeal Ratzinger, hoje Bento XVI, é daquelas poucas pessoas, que se contam pelos dedos que existem num século ou numa época da história, que tenham um conhecimento tão vasto e tão profundo da cultura moderna, do mundo moderno e dos problemas da igreja. Por isso fiquei feliz pela sua eleição para além da relação particular e amiga quando em 1975 fui seu aluno. Admirava-o já. Era conhecido pelos alunos como o “doutor melífluo”, em virtude da voz melodiosa na comunicação e da beleza na exposição dos assuntos. Depois, mais tarde, tive oportunidade de o trazer aqui a Portugal para fazer uma conferência sobre a Europa, no Porto, perante um auditório de 600 pessoas e verifiquei como é uma pessoa encantadora ao nível da relação humana. Um homem simples e humilde que dá a atenção toda a cada um e transmite serenidade, paz e alegria interior que lhe brotam espontaneamente da sua maneira de ser e da vivência da fé e da cultura. Diaconado Permanente? AM – Uma necessidade para a Igreja, para enriquecer a sua ministerialidade e corresponsabilidade e permitir que os padres se dediquem mais profundamente aos aspectos essenciais da evangelização. Ordenação sacerdotal da mulher? AM – Respondo com o exemplo de Maria, mãe de Jesus, que foi uma mulher por excelência que desempenhou a maior missão na história da humanidade e por conseguinte da igreja, exemplo do génio feminino com tudo o que ele encerra de afecto, acolhimento, de relação humana, que nos leva ao essencial do amor e da comunhão que constitui a igreja e não foi apóstola nem sacerdote. Devemos contudo dar mais espaço ao génio feminino, à sua criatividade e corresponsabilidade nas comunidades cristãs. Acesso dos divorciados recasados à comunhão sacramental? AM – Um problema complexo, porque há que salvaguardar, ao mesmo tempo, a verdade do matrimónio cristão indissolúvel e a misericórdia divina para os falhanços humanos. Por isso, a Igreja como mãe de misericórdia considera que eles continuam membros da Igreja, -podendo mesmo trabalhar em vários âmbitos como o da caridade- embora numa situação irregular que não lhes permite o acesso à comunhão eucarística enquanto expressão plena da comunhão eclesial. Esta é a norma em vigor. O Ecumenismo? AM – É o futuro da Igreja e das Igrejas. Não é algo opcional, mas antes um imperativo evangélico que Jesus nos deixou no discurso de despedida “que todos sejam um “. Não pode haver um Cristo dividido; os cristãos têm que refazer a unidade que Cristo lhes deixou como dom e tarefa. Diálogo com os não crentes? AM – Um cristão é alguém de coração universal. Tem de dialogar com todos. A fé é um mistério no coração de cada um. Dialogar com o testemunho à maneira de Jesus Cristo como quem faz um proposta e não como quem impõe algo. Diálogo com o mundo a cultura? AM – A fé deve ser geradora de uma cultura nova a dos grandes valores e dos grandes ideais do espírito humano, capaz de construir a civilização do amor, da solidariedade e da paz. Cultura da morte e da vida… aborto, eutanásia? AM – É outro dos grandes desafios com que a igreja se confronta. Vivemos num mundo em que se procura avaliar tudo pela eficiência, pelo económico e pela felicidade imediata, uma felicidade de facilidade, a curto prazo e ao formato de cada um. O valor da vida vai descendo na cotação da cultura dominante. O aborto e a eutanásia são actos de violência sobre o ser humano que nasce ou sobre o ser humano em fase terminal. É preciso despertar de novo o amor à vida humana, uma nova cultura da vida consciente de que toda a vida pede amor em qualquer fase da sua existência. Educação das novas gerações para a paz? AM – A paz do coração é o coração da paz. Essa paz constrói-se a partir de dentro do coração, das relações humanas e extravasa para a sociedade e para a relação entre os povos. De maneira que é preciso acreditar na coragem do bem. Construir algo de bom entre pessoas e as culturas, valorizar o que nos une e como nos dizia o saudoso Papa João Paulo II: vencer o mal com o bem! Quais as maiores alegrias e decepções que experimentou, neste primeiro ano? AM – De decepções não posso falar porque ainda não as tive. De alegrias são sobretudo duas. A alegria da comunhão com o clero que comigo se manifestou sempre disponível e colaborador para além da amizade que dedica ao Bispo. Também a alegria da comunhão com o povo humilde, simples, afectuoso, que sinto nas visitas que faço às comunidades cristãs e que admiro imenso. Fico maravilhado com a espontaneidade com que as pessoas conversam com o Bispo e lhe abrem o coração e com testemunhos de verdadeira santidade popular que me deixam comovido. Qual a mensagem que gostaria de deixar não só aos cristãos, mas também a todas as pessoas que habitam, lutam pela vida digna e trabalham na diocese de Viseu? AM – A primeira coisa que diria aos cristãos é que vivam a sua fé com alegria, com entusiasmo e sem qualquer complexo de inferioridade. É belo ser cristão hoje, embora seja exigente. Vivemos num momento difícil sócio-económico e cultural. Que todos se façam próximos e solidários ajudando a levar o peso da vida uns aos outros. Diocese de Viseu