A reitora da Universidade Católica Portuguesa (UCP) disse à Agência ECCLESIA que “não há temas tabus” no ensino da nova Faculdade de Medicina, que vai ser inaugurada esta terça-feira, e que um projeto com 54 anos, de “todos os reitores”.
Entrevista conduzida por Paulo Rocha
Agência ECCLESIA (AE) – No dia 14 de setembro é inaugurada a Faculdade de Medicina da Universidade Católica Portuguesa. Um dia sonhado ao longo da história desta instituição, há mais de 50 anos, e que agora é concretizado. Um feito histórico, mas mais do que um sonho concretizado é uma missão que se assume. Que missão é essa?
Isabel Capeloa Gil (ICG) – É a missão de capacitar o país sempre em direção àquilo que é o bem comum da dignificação da pessoa. Uma formação no sentido integral como nos diz o repto do Papa Francisco que todos já conhecemos e nos interpela diariamente a fazer. Portanto, uma universidade que se quer por um lado compreensiva, ou seja abarcando todas as áreas do conhecimento onde pode, efetivamente, fazer a diferença com o seu modelo de ensino, o seu modelo pedagógico, o seu modelo de produção de conhecimento centrando-se, sobretudo, em aspetos que, tendencialmente, sejam determinantes para que possamos viver em sociedades mais respeitadoras, sociedades democráticas e justas. Mas onde também desenvolvamos o respeito pelo ambiente e uns pelos outros.
A Medicina é, talvez, não vou fazer uma hierarquia das ciências porque não se trata aqui de uma rivalidade entre faculdades, mas dizer que a Medicina é uma das ciências mais nobres que se pode cultivar porque trata-se de cultivar a vida e a dignidade das pessoas.
AE – E por isso, a insistência da própria universidade em conseguir chegar a este dia?
ICG – Exatamente. Se a nossa missão é servir o país, a sociedade e o mundo, capacitando não só tecnicamente, mas fazendo com que os profissionais que nas várias áreas de saber que a universidade cultiva, sejam pessoas que verdadeiramente contribuam, diariamente, com sua prática, com a sua atividade, desde o Direito, a Economia, a Medicina para que os indivíduos tenham e desenvolvam vidas dignas. E essa vida digna tem também uma dimensão biológica e, naturalmente, a Medicina é central.
AE – E desde logo biológica?
ICG – A Medicina é uma ciência humana em primeiro lugar.
AE – O que a Medicina da UCP terá de específico? Olhando o percurso até aqui, aí sim podemos falar do tal sonho que se concretiza…
ICG – Eu disse, no dia em que o diretor da faculdade tomou posse, que há um tempo para tudo, naturalmente, nós somos os protagonistas do presente, mas este é um projeto que é de 54 anos da UCP.
AE – É de todos os reitores?
ICG – É de todos os reitores. De formas diferenciadas, aquilo que nós realizamos hoje é um trabalho que foi pensado, delineado, explorado, testado a bem ou mal, que foi proposto e gizado, digamos, praticamente desde o início da Universidade, de forma mais concreta, já depois com o reitor D. José Policarpo, depois com reitor Manuel Braga da cruz, depois a reitora Maria da Glória Garcia e nós tivemos esta função, este privilégio de materializar o sonho, mas o sonho não é nosso, o sonho é de toda uma geração de reitores.
Eu tenho um enorme orgulho de dizer e de reconhecer o trabalho que todos eles fizeram para hoje estarmos aqui.
AE – E conseguiram chegar a este dia. Mas tiveram algumas contrariedades?
ICG – As contrariedades no processo fazem parte do caminho, e por isso este momento é particularmente importante e sentimos muito orgulhosos de termos chegado aqui. Mas algo que foi, absolutamente, determinante para o sucesso do projeto foi a confiança na bondade daquilo que estávamos a propor, na qualidade do projeto, a segurança que tínhamos na infraestrutura construída e proposta para desenvolver a Faculdade de Medicina. Nós tínhamos a certeza da robustez do projeto e a certeza da bondade e do contributo que este projeto vai trazer para o país.
AE – Sendo algumas dessas contrariedades do âmbito profissional, da Medicina, teme que os licenciados, doutorados que saiam desta faculdade possam ter alguma rejeição… Ser olhados como um gueto?
ICG – As objeções não foram profissionais foram corporativas e todas as faculdades de medicina criadas em Portugal, nomeadamente as mais recentes, tiveram objeção corporativa na altura em que foram criadas. Eu não esperava nada de diferente. O que se vai seguir agora… Nós vamos fazer o nosso trabalho, vamos dar uma formação sólida que se vai afirmar pelos seus créditos.
Portanto, os licenciados da Universidade Católica terão o mesmo acolhimento que os licenciados das outras universidades ou os licenciados que se formam na República Checa, Espanha, Reino Unido e que depois voltam a Portugal
AE – Esse é um argumento que levou a reitora a insistir também neste curso na Universidade Católica. Dar à sociedade portuguesa, médicos formados em Portugal.
ICG – Exatamente. É certo que as universidades portuguesas no século XXI não formam apenas para o país. A nossa missão prioritária é capacitar o país, mas nós atraímos talento internacional e formamos também os nossos estudantes de forma que eles possam ser competitivos ao exercerem as suas profissões fora do país. Isso não está errado, o modelo do ensino superior é, por natureza, supranacional.
Numa área tão sensível para a coesão, para a vivência da sociedade, como é a Medicina há que pensar também politicamente se nós queremos que em Portugal os médicos que exercem Medicina neste país que haja um controlo sobre a formação que o país dá sobre aqueles que vão exercer essa Medicina ou se em situação de falta de médicos se optamos prioritariamente por ir buscar médicos a outros países, certamente bem qualificados, mas cuja formação não foi controlada, supervisionada por nós.
Nós temos instituições muito capazes para fazer essa supervisão, mas o que queremos é que a Medicina portuguesa tenha qualidade e queremos também que os nossos formandos exercendo em Portugal o façam com os maiores princípios éticos e com toda a capacidade técnica e um melhor conhecimento disponível no momento. É para isso que estamos a fazer o nosso percurso.
AE – Também para responder às exigências crescentes que os próprios sistemas de saúde serão chamados a dar às necessidades das pessoas?
ICG – As sociedades, sobretudo na Europa, que temos sociedades muito envelhecidas e tendencialmente a envelhecer, como vimos com a pandemia, em saúde a única certeza que temos neste mundo é a incerteza. Tal como tivemos o Covid, poderemos ter outras situações graves de saúde pública. As condições em que se planeia saúde pública no século XXI não podem ser idênticas àquilo que se fazia século XX.
A correlação simples entre o número de habitantes e o número de médicos não é uma medida adequada porque nós podemos ter uma população muito jovem que necessita de poucos cuidados ou uma população menor, mas que é muito envelhecida e precisa de muitos mais cuidados de saúde. Portanto, a correlação não pode ser simplista, não pode ser meramente quantitativa, por outro lado vivemos em sociedades complexas e cada um de nós está mais atento àquilo que significa uma vida saudável, poder dispor do seu bem-estar.
O médico não é só alguém que contactamos quanto estamos com sintomas de uma doença ou patologia, mas alguém que nos ajuda também a desenvolver o nosso bem-estar. Para isso, vamos precisar cada vez mais de médicos, não de menos porque a população diminui, porque a nossa sensibilidade à realidade da condição física é muito maior
Aliás, a tendência na Europa neste momento tem sido a abertura crescente de faculdades de Medicina. Os dados demonstram que o planeamento do futuro – estamos a falar de sociedades também envelhecidas como a portuguesa – o projeto de desenvolvimento da sociedade aponta necessariamente para um reforço.
AE – Esse é um ponto que as várias faculdades de Medicina estejam atentas. O que pode distinguir a da UCP?
ICG – Três coisas. Em primeiro, lugar nós estamos a montar uma faculdade no século XXI que tem equipamentos, em termos de tecnologia e daquilo que é disponibilizado aos alunos muito diferente daquilo que eram as faculdades do século XX. Todo o modelo de comunicação e de aprendizagem está muito baseado naquilo que são os mais recentes desenvolvimentos tecnológicos. Os estudantes terão acesso, praticamente, a tudo aquilo que é bibliografia médica em museu digital, sem papel.
As salas estão todas equipadas para uma coordenação entre aquilo que é apresentado na aula em quadros eletrónicos e depois o download para os computadores dos estudantes.
É uma faculdade criada pós pandemia e falamos da transformação digital das universidades. Foi um investimento enorme da UCP.
Por outro lado, tem um modelo pedagógico, é verdade que não é a primeira vez que é utilizado em Portugal, aprendizagem baseada em problemas, mas que é feita com a parceria de uma grande faculdade Medicina da Universidade de Maastricht, na Holanda, e portanto este modelo pedagógico que é predominante e que fez com que o corpo docente, ao longo destes últimos anos, tenha vindo a ser formado, especificamente, nesta metodologia que é inovadora. Uma formação que será complementada também, naturalmente, com alguns modelos mais tradicionais de ensino de Medicina.
Um modelo aplicado de forma muito cuidada e monitorizado depois pelo Instituto de Educação Médica dentro da própria faculdade.
Em terceiro lugar, dizer que este é um curso que dá uma abertura para outras áreas do conhecimento dentro do espírito daquilo que é a ecologia integral de saberes. Tem uma fortíssima componente ética, muito centrada, esse é um aspeto que foi testado também para a admissão dos estudantes naquilo que é o desenvolvimento das capacidades de comunicação, da empatia com o doente e de acompanhamento.
No fundo demonstrar que esta relação entre o médico e o doente não é meramente uma relação técnica, mas que é uma relação humana e que a Medicina é verdadeiramente, talvez, a mais humana das ciências.
AE – A defesa da dignidade humana está no centro.
ICG – A Medicina lida, prioritariamente, com a fragilidade humana. O corpo doente, com patologias, as pessoas nos momentos limites, final de vida, mas também momentos extraordinários como o nascimento.
É fundamental que o médico olhe para o paciente que tem à sua frente como pessoa e não como objeto que tem de ser tratado. E olhar para o paciente como uma pessoa significa entender a sua fragilidade, acompanhá-lo, orientá-lo e reconhecer a dignidade dessa pessoa que tem à sua frente, independentemente, daquilo que é a sua posição na vida. Dando dignidade em momentos de grande sofrimento e sobretudo valorizando a vida dessa pessoa, desde o nascimento à morte.
AE – Este tema está relacionado com as questões ditas fraturantes: aborto e eutanásia. O que é que a faculdade vai ensinar sobre estes temas?
ICG – Em primeiro lugar, a Universidade Católica é universidade e não há temas tabú numa universidade. Tecnicamente, os médicos formados na Faculdade Medicina terão as competências técnicas para desempenhar tudo aquilo que são atos médicos. É uma faculdade católica e, portanto, enquanto Universidade Católica, os princípios conhecidos pela igreja em matéria de defesa da vida fazem parte dos valores de missão e de identidade da universidade.
Ao médico exige-se, diariamente, tomar decisões de vida ou de morte. As decisões que se tomam nos serviços de urgência, e para isso é necessário que haja justamente esse discernimento, essa prática do discernimento, de poder justificar uma decisão com base em princípios que preservam aquilo que são os valores que referi há pouco da dignidade humana.
AE – O aborto ou a eutanásia não estão entre essas decisões, do dia-a-dia, de vida ou de morte?
ICG – Não estão, mas há outras decisões de vida ou de morte que se tem que tomar.
Quando se toma uma decisão se dois doentes que têm que ser ventilados, mas só há um ventilador e o médico tem perfeita consciência que o doente que não for ventilado vai morrer. Ele tem que avaliar claramente as duas pessoas que tem à sua frente. É uma decisão que tem que tomar. Confiamos que eles vão tomar uma decisão que é técnica e que traz todas as componentes que dá uma avaliação daquilo que a situação efetiva do paciente, mas é uma decisão ética.
É importante dizer que aquilo que os médicos juram no final do seu curso – juramento de Hipócrates – é um juramento que assume que o médico vai defender a vida. A função do médico é laborar para que o paciente tenha uma vida melhor. Não para matar, mas ajudar o paciente. Somos fiéis a esse juramento.
AE – Na tomada de posse do diretor da Faculdade de Medicina disse que é uma decisão que se teme. Porquê?
ICG – Foi uma conversa com um reitor de uma universidade chinesa que disse que uma Faculdade de Medicina é tudo o que um reitor quer. Uma Faculdade de Medicina é tudo aquilo que um reitor teme.
Dentro da organização da Universidade uma Faculdade de Medicina tem um papel muito singular.
As Faculdades de Medicina tendem a ser grandes, poderosos, onerosas e são caras. Têm um grande dispêndio de recursos dentro do orçamento de uma universidade. Quer-se porque é uma intervenção numa área absolutamente crucial para o desenvolvimento do conhecimento sobre o ser humano e o seu contributo para a sociedade.
Por outro lado teme-se na forma como ela vai pesar na balança do orçamento das universidades.
É sempre um risco, mas é um risco calculado e nós estamos absolutamente seguros de que tal como até aqui a universidade continuará com o seu equilíbrio, com a sobriedade de finanças que tem mas com o equilíbrio que permite sempre continuar a desenvolver os seus projetos e a crescer.
AE – O preenchimento das 50 vagas e o número de candidaturas 600 mostram que de facto não será por falta de alunos que o projeto não vai deixar de ter o seu dinamismo e a sua longevidade?
ICG – Obviamente. A partir do momento em que sabemos que temos centenas de estudantes que por ano vão estudar medicina para fora de Portugal, isto sem pensarmos na outra capacidade que é de atrairmos também estudantes internacionais para virem estudar medicina em Portugal.
Há muitos países europeus que têm faculdades com grande parte dos seus recursos dedicados, justamente à formação de estudantes de outros países da Europa e Portugal tem todas as condições para o fazer e para o fazer bem.
Para nós é importante saber que o estudante que formamos e graduamos olhe para a medicina como vocação como uma intenção.
Hoje o médico pode desempenhar funções profissionais que vão muito além da Medicina.
Há alguns anos, numa publicação da Universidade Harvard fez-se um estudo das consultoras internacionais a dizer que as consultoras estavam a recrutar fortemente médicos para as suas direções e grupos de análise de risco e de perspetiva.
A medicina treina os profissionais a lidarem com informação muito diversa e muito complexa que é algo que é uma competência que é particularmente privilegiada e importante em vários setores da atividade.
AE – No caso da Medicina da UCP há uma componente que é a monetária que é necessário ter em conta. Não será um curso para todos por ser um curso pago e caro também.
ICG – A medicina é um curso caro, é o curso mais caro. O curso de formação de um médico na Católica não é diferente de uma universidade pública.
Temos aqui é uma diferença de quem paga. Numa universidade pública todos pagamos, na Católica pagam as famílias que também pagam a formação dos médicos nas universidades públicas. Isso faz parte do pacto social que nós estabelecemos com a sociedade de que temos de contribuir naturalmente para que haja educação estatal de qualidade e formação em ensino superior de qualidade.
O curso é caro. A universidade fez um investimento brutal, mais de 25 milhões de euros para criar esta Faculdade de Medicina. Estamos a falar de investimento inicial e nesta primeira fase atribuímos apenas 5% de bolsas é um esforço enorme mas que não nos satisfaz porque o lema da Universidade Católica que eu tenho vindo a repetir desde o dia que tomei posse no primeiro mandato é que a universidade faz questão de que todos aqueles que tem mérito mas não tem capacidades financeiras aqui possam estudar.
Neste primeiro ano, o esforço financeiro de lançamento do curso não permitiu ainda que tivéssemos um maior número de bolsas que congregam mérito com a necessidade financeira mas o compromisso da universidade é que nos próximos anos isso venha a crescer de forma mais alargada para que possamos integrar neste curso, naturalmente todos aqueles que tenham qualificação, tenham vocação independentemente do facto de poderem ter essa capacidade financeira ou não
AE – A propina mensal situa-se em cerca de 1650 euros…
ICG – Exato.
AE – Gera algum desequilíbrio na UCP este investimento na Faculdade de Medicina?
ICG – Não gera desequilíbrio. Gerir uma universidade como gerir em geral significa tomar e fazer opções, tomar decisões e decidir relativamente opções distintas.
A universidade tem um orçamento muito equilibrado, ao longo dos anos fomos tomando opções de investimento para desenvolver mais determinadas áreas ou outras. Tudo vai tendo o seu tempo e a sua opção e a forma como organizamos a gestão da universidade é necessariamente solidária.
A opção de avançar com a faculdade medicina foi validada pelo conselho superior da Universidade e há a total consciência do que custa este investimento inicial mas o impacto que a criação da Faculdade de Medicina já está a ter e terá também para todas as outras faculdades da ecologia de saberes da católica é enorme.
A criação de uma faculdade nova é um corpo que não só recebe das outras unidades académicas para muitas das valências que vai desenvolver mas que está já a dar as outras faculdades que temos a nível nacional, portanto é um projeto de todos, para a Universidade Católica, para o país, e para o mundo, e estamos muito orgulhosos dele.