O padre jesuíta Vasco Pinto Magalhães, autor de diversas obras de espiritualidade, considera um erro limitar o número de feriados ou dias de férias para procurar aumentar a produção dos trabalhadores
Tempo livre, tempo de descanso, no comum, férias. O tempo dilatado onde os ponteiros do relógio devem parar para que o equilíbrio seja restabelecido. Um novo fôlego que pode levar à contemplação, criatividade, procura de Deus ou simplesmente ao encontro com o outro. Vasco Pinto Magalhães, sacerdote jesuíta, aborda estes e outros temas, antecipando ainda o seu novo livro, ‘Só avança quem descansa’.
Agência Ecclesia (AE) – Falar em férias implica falar em descanso. Descanso em Deus ou descanso para Deus?
Vasco Pinto Magalhães (VPM) – As duas coisas. Este é um tema de que gosto muito de falar, porque não é nada um tema lateral. Às vezes pensa-se que se descansa para trabalhar, mas eu penso que devíamos trabalhar para descansar. Aliás, acabo agora de escrever um livro, que ainda não está publicado, que tem o título ‘Só avança quem descansa’.
O tempo de férias pode ser muito ambíguo, porque é uma paragem no trabalho que às vezes visa mais o descanso físico e psicológico do que o descanso espiritual. O que nos descansa é o equilíbrio, a boa consciência e não se pode descansar uma parte sem a outra. Muitas vezes não se descansa nada nas férias porque se está cheio de pressa de fazer coisas e depois é um engano, porque a pressa e o medo ou ansiedade tiram-nos qualquer descanso!
AE – Por isso as férias têm de trazer a calma e a serenidade?
VPM – Sim, e portanto não implicam ter de passar por muitos locais extraordinários – que ajudam, porque somos corporais -, mas trata-se mais de uma atitude interior. Estar descansado é estar em paz, em paz consigo mesmo, em paz com os outros: às vezes pode estar-se descansado com muito trabalho.
AE – Nas férias há o convite a cada cristão de descansar em Deus. Há esta consciência da presença de Deus?
VPM – O cristão deveria estar sempre consciente da presença de Deus para viver descansado. Descansar é um treino para o descanso eterno, que é o céu, e esse é o nosso objetivo na vida. O nosso objetivo não é trabalhar, mas sim trabalhar para estar cada vez mais descansado, mais equilibrado, mais saudável, mais em Deus.
Acredito que aquilo que mais nos descansa é uma relação saudável com outra pessoa, o sentir-se amado, o poder ser eu perante uma pessoa sem ter de me estar a defender, a mascarar ou a arranjar conversa, e isso é o que acontece com Deus!
AE – Então o próprio “encontro com o outro” deve ser um momento de descanso?
VPM – Estou convencido que é isso o que mais descansa, assim como a boa consciência, o ter um sentido para a vida. São essas coisas que equilibram e integram, senão há uma grande agitação interior que se torna desgaste. O trabalho, por exemplo, desgasta porque trabalhamos mal, à pressa, em intensidade, horas em quantidade e não em qualidade, sob pressão! O trabalho de que eu gosto e pelo qual sou reconhecido, esse não me cansa!
AE – Deus também descansou ao 7.º dia. No evangelho de Marcos, Jesus convoca: “Vinde comigo para um lugar isolado e descansai um pouco”. Este é o verdadeiro convite para as férias?
VPM – Exatamente e é uma coisa tão bonita! Claro que arranjar um espaço bonito para as férias é equilibrante, mas agora imagine-se que estou cheio de problemas por dentro: por mais bonito que seja o lugar, um passeio à beira mar ou uma serra bonita, se eu estiver cheio de pressa não descanso!
Se eu não estiver inteiro, que é uma das boas maneiras de descansar, então é porque estou dividido. O evangelho também fala nisso: “Marta! Marta! Estás dividida!”. Há coisas que criam ambiente e, como somos corporais, temos de criar o ambiente certo, uma coisa bonita, um bom livro que me faz encontrar comigo próprio, com a minha história, que me liga a cabeça e o coração. Tudo aquilo que integra a pessoa e relaciona bem faz descansar.
AE – Qual a melhor atitude para partir para férias?
VPM – Primeiro que tudo, saber o que eu quero fazer, marcar prioridades e sobretudo não entrar em competição nem em consumismos, mas realmente aproveitar bem todos os bocadinhos para se encontrar consigo mesmo. E ao encontrar-me comigo mesmo encontro-me com Deus, no sentido de me encontrar com o amor, porque Deus é amor!
AE – Há vários sítios para onde podemos ir nas férias: na praia, no campo, nas peregrinações ou em viagem…
VPM – Sim, todos servem para encontrar Deus, basta estar inteiro, ter ultrapassado a mentalidade do negócio, da pressa. Porque se estou na ânsia das fotografias, de riscar este museu e o outro e correr para ver mais este ou aquele monumento, então não descanso. Tem de se acabar com esse sufoco, apreender aquilo a que os antigos chamavam ócio, que não é estar sem fazer nada, mas sim estar contemplativo.
Aqui chega-se à importância do tempo livre, se for tempo de liberdade. Nos anos 60 chegávamos ao lazer e tempo livre mas, depois, estes foram esgotados pelo consumismo e pela competição. Uma pessoa pensa que é mais feliz se tiver muito dinheiro, se fizer muitas viagens e muita coisa, o que a leva a desintegrar-se e espalhar-se por várias coisas.
AE – As férias são, por isso, uma quebra na rotina e nos tempos ritmados de pressa e horários.
VPM – Sim, põe-me equilibrado, num equilíbrio dinâmico. Para um cristão, que descansa em Deus, equilíbrio não é ataraxia dos gregos ou nirvana hindu, isso seria realmente parar tudo e nem pensar em nada – o que às vezes ajuda, até um bocadinho de yoga podia ajudar.
Há pessoas para quem o descanso é uma correria: andar quilómetros ou ver os filmes todos que perderam. Então, tudo é transformado em ansiedade.
Eu dizia que o equilíbrio é dinâmico, não é uma paragem no sentido de “não me vou mexer”, ou “vou dormir”. Pode ser um engano, por exemplo, um retiro espiritual que pode ser um grande descanso ou uma grande ansiedade, se houver grandes decisões a tomar, não me situei no amor ou no sentido da vida.
AE – É nas férias que encontramos momentos de fraternidade, a família, os amigos de sempre e os que estão mais longe. Esta é outra forma de descanso?
VPM – Sim, porque no tempo de trabalho, infelizmente, as pessoas não têm tempo para ser gente, não têm tempo para a relação, não há tempo para as coisas mais básicas, comem à pressa, dormem à pressa, falam à pressa, não ouvem…
Depois há desgaste, claro, mas também é verdade que cada um tem tempo para aquilo que quer, só que às vezes temos as prioridades mal arrumadas; se eu quero mesmo uma coisa então tenho tempo para ela!
AE – Que prioridades mal arrumadas são essas? O que é que não nos deixa partir para férias?
VPM – A ansiedade interior e a pressa, mas as principais causas são as atitudes interiores. Claro que um mal de saúde ou uma doença grave na família nos causa preocupação, mas não significa que nos tire a atitude de estar equilibrado, descansado. Santo Agostinho dizia que “a paz é a tranquilidade na ordem” e o descanso é a mesma coisa.
AE – O tempo de descanso é também uma paragem para ver e contemplar a beleza e a beleza na fé?
VPM – Sim, esse é um tema importante. A beleza descansa muito, desde a beleza natural, a beleza das ações à beleza do pensamento criativo…
A beleza também é ordem, é o esplendor do ser, o esplendor da conjugação de todos os aspetos que me fazem levar ao êxtase, à contemplação. Hoje somos pouco contemplativos, vemos muitas coisas mas não entramos nelas. Uma coisa é olhar para o mar ou olhar do alto de uma montanha, outra coisa é “entrar” na paisagem, para que possa fazer parte de mim. Senão somos todos um pouco “voyeurs”: cheguei, vi e parti mas nada fica, não há tempo para entrar na realidade.
AE – Faz falta termos tempo para contemplar, ver e sentir?
VPM – Exatamente. O livrinho de que falei, que estou a escrever, começou como um ensaio com o título “gestão do tempo”. Realmente não somos educados para gerir o tempo. O tempo livre é uma coisa que fica para as sobras ou para os intervalos; ora acho que tem de ser o contrário. O dia forte tem de ser o domingo, descansar para depois trabalhar.
AE – Essa falta de tempo leva à falta de fé?
VPM – Leva ou então leva a uma fé angustiada que cansa muito, também. Como é que se tem tempo para Deus? Uma vez ouvi dizer que “rezar é perder tempo com Deus” e é tão bonito isto, perder tempo, que não o é, é ganhar tempo. As pessoas não valorizam tudo aquilo que não está a ser economizado ou não tem sucesso económico. Não valorizam o gratuito, o tempo em si, o próprio viver.
AE – As férias podem ser a oportunidade para essa busca?
VPM – Eu penso que devia ser isso mesmo, encontrar esse espaço onde eu me torno mais eu e eu; onde sou eu nas relações, na comunhão, mas também com tempos para estar só. É também importante a conversa interior, tranquilamente comigo próprio, para me autoconhecer e me pacificar. Ao equilibrar a respiração, equilibro o pensamento e ele começa a lidar bem com o coração.
AE – Há vários tipos de férias, aqui falávamos de férias associadas ao verão, que trazem uma luz e um calor diferentes, que nos transformam.
VPM – Para nós latinos, sobretudo… Nos países nórdicos, por exemplo, fazem férias de inverno para poder ir para a neve, que é outro tipo de férias, de experiências, de passar o tempo, de descansar. Mas o segredo está na atitude.
Claro que a mim me ajuda imenso o calor, gosto muito de praia, de montanha, mas também de uma varanda, um prato de percebes e o mar à vista… (risos)
AE – São coisas como essas, simples, que temos de trazer para as férias?
VPM – Sim, a boa companhia de um livro ou de um pensamento que me envolve, de uma paisagem que me alarga o coração, que me faz não sentir sem sentido. Há pessoas que não conseguem descansar porque a sua própria vida não tem sentido, é uma correria. Criámos uma sociedade de stress, muito deprimida, e por isso vive em descansos, curas de sono, pastilhas e tudo mais… Tudo porque nos satisfazemos pela quantidade e não pela qualidade.
AE – O tempo livre podia ser a solução para deixar muitas caixas de comprimidos?
VPM – Exato, por isso é que eu acho que nós precisamos de feriados, de férias… Quanto mais feriados, melhor trabalhamos, ao contrário do que se pensa. Julgar que por estar mais horas no trabalho se trabalha melhor é um erro. Há muita coisa acumulada e por isso é que há pessoas que quando entram de férias, na primeira semana, têm de parar a “onda” que as persegue.
É bom trabalhar para ir de férias, sem ver o trabalho só como o que é produtivo ou negócio. Rezar também é uma forma de trabalho, relacionar-se com os outros é outra forma. O desgaste físico é muito relativo.
Por exemplo, uma coisa que me descansa muito é mexer no barro, mas gera-me também tensão. Estou sempre à espera de ter tempo para moldar, fazer alguma coisa de novo e sinto a tensão criativa do que vai sair ou da concretização de uma imagem. Mas depois dá-me a sensação de descanso, que me equilibra, por algo que criei.
AE – Moldar o barro é um exemplo do que faz nas férias. Que outras coisas deixa para fazer em tempo de descanso?
VPM – Guardo livros que não tive tempo para ler, conversas e alguns tempos de comunicação com a natureza que, no dia a dia, se tornam impossíveis. Predisponho-me também a viajar, principalmente quando são destinos que me preenchem vazios, tempos de conhecimento e maior ligação ao mundo. Estes espaços e momentos que me humanizam são o mais necessário nas férias.
São férias com afetos, os afetos não fazem férias… E também é preciso equilibrá-los porque andam deprimidos ou exaltados e é preciso vê-los como um todo a caminho de uma plenitude. Esta plenitude vem com a comunhão, maior comunhão comigo próprio e melhor com os outros.
SN