António Salvado Morgado, Diocese da Guarda
A medição do tempo humano tem destas coisas. Nem todos os anos possuem o mesmo peso. O tempo psicológico e existencial vai-se sobrepondo ao tempo cronológico marcado pelos relógios sintonizados com as posições e movimentos – reais ou aparentes – dos astros que nos iluminam e aquecem. Vamos vivendo os nossos anos, mas festejamos mais uns que outros. Lá aparecem as décadas, os séculos e os milénios. E a memória aguça-se então para evocar. Celebrando e rindo ou lamentando e lacrimando.
Foi há uma década. Naquele dia de Pentecostes o Papa Francisco oferecia à Humanidade a Encíclica “Laudato si”. Foram passando os anos, mas fomos dormindo no escuro das noites. Passou uma década e, por esse mundo, vai-se evocando a efeméride, nos meios de comunicação social, em encontros mais ou menos académicos ou em gestos simbólicos – ridículos e contraditórios tantas vezes – de boa vontade deste ou daquele movimento ou grupo social. Mas faltará a coragem ou a Fortaleza que é fruto do Pentecostes do Espírito para alterar hábitos para cada um tratar a sua casa, o seu país, como um pedaço do jardim que é o Planeta, casa comum de todos.
Desde que me lembre de mim, sempre apreciei a natureza e as transformações dos campos no decorrer do ano, mesmo sem ter eu a plena consciência das suas estações. Melhor dito: já as vivia sem conhecer os seus nomes. Sempre me atraíram as flores e delas saboreava, criança ainda, o colorido, as formas e os odores, como me despertava curiosidade a grande variedade delas que enfeitava os campos. Agora sinto a tentação de lamentar as crianças de hoje que parecem nascer a olhar para as tecnologias de trazer nas mãos, mas não sabem olhar para aquela pequena flor colorida e oferecida por uma planta sem nome que encaixou o caule frágil num espaço minúsculo entre as pedras do caminho. Mas ela lá está a saudar o Sol. E a cumprimentar quem passa. Creio que ela vai dizendo «olá!» quando sente os passos de gente, mas são poucos os que dão por ela.
Há três pequenas sebes no jardim da nossa casa que, como todas as outras sebes do mundo, de vez em quando têm necessidade de ser aparadas. São uns muros verdes a separar espaços. Sebes tão pequeníssimas que só por abuso de linguagem lhes chamo sebes. É verdade que são umas sebezinhas, mas, por pequenas, exigem tanta ou mais atenção que as sebes grandes, até porque, se as deixarmos, vão crescendo tanto em altura que dificultam o trabalho futuro do topiário. E – Necessidade pode muito – o topiário geralmente sou eu, pese embora tamanha presunção de quem se limita a aparar aqueles ramos entrançados de uma planta de que até ignora o nome.
Não é de utilização frequente a palavra “topiária”. Lembrei-me dela há dias quando fui saudado por um vizinho que passava na rua precisamente quando aparava as tranças de uma das pequeníssimas sebes do jardim da casa. Naturalmente, conversámos um pouco. O vizinho, de fora, encostado ao muro, ia louvando o meu trabalho e eu, no jardim, ia-o apoucando enquanto apontava para as linhas tortas que deixara na pequena sebe. E foi assim que, no desenrolar da conversa, elogiei os topiários clássicos de mundos idos. Não me admirei que o vizinho não conhecesse a palavra. Claramente “jardineiro” e “jardinagem” são o suficiente.
Não sei onde terei eu ouvido ou lido que, na Roma antiga, os jardineiros pretendiam imitar os escultores da pedra. E não sem razão. Verdade é que elas são esculturas vivas, essas formas decorativas de animais à mistura com figuras geométricas que animam jardins desde os tempos remotos.
A topiária é uma arte, e uma arte exigente que, além de sentido estético e técnicas adequadas, pressupõe conhecimentos variados do artista e jardineiro. É isso a topiária: arte de dar configurações diversas às árvores e arbustos de um jardim. Uma arte de criar beleza com o viço e a docilidade vegetal. Nela se conjuga o verbo «podar» em simultaneidade com o conhecimento, imaginação e criatividade do topiário. E muita paciência e rigor, gosto e sentido estético e amor pela natureza.
Não será necessário grande esforço mental para imaginarmos os conhecimentos que se encontram materializados nas esculturas verdes, e tantas vezes coloridas de flores, da estatuária de jardim: conhecimentos de botânica, como será óbvio, mas também de zoologia, de engenharia e matemática. E outros. A topiária é, certamente, uma jardinagem artística interdisciplinar onde a beleza das criações humanas se conjuga com a beleza da criação divina.
E regressamos ao princípio, à contagem do tempo. Evocamos os 10 anos da “Laudato si”, a encíclica que o Papa Francisco ofereceu à Humanidade sobre o cuidado da Terra, nossa «casa comum» no ano em que celebramos também os 800 anos do «Cântico das Criaturas» de São Francisco de Assis.
O dia 1 de Setembro, o “Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação” instituído pela Igreja Ortodoxa em 1989 e a que a Igreja Católica aderiu em 2015, ano da publicação da “Laudato si”, marcou o início do “Tempo da Criação” que se vai prolongar até ao dia 4 de Outubro, dia de São Francisco de Assis. Num ano em que o país se tornou mais negro com a tragédia dos incêndios que foram consumindo um pouco de tudo – florestas, culturas, casas e vidas – e que deixaram exaustos os nossos bombeiros, seria de esperar que se assumisse com maior vigor este “Tempo da Criação”. Mas, se não ando muito distraído, vejo que o tempo vai passando e a criação vai esperando. Será que tomamos a sério os clamores da Terra?
«O cuidado da criação representa uma verdadeira vocação para cada ser humano, um compromisso a ser cumprido dentro da própria vocação», assim disse Leão XIV na inauguração do “Borgo Laudato si” na residência pontifícia de Castel Gandolfo. Uma «verdadeira vocação» e um «compromisso a ser cumprido.» Todos somos chamados a ser topiários da Terra. E a topiária começa em casa, na rua, bairro e vila ou cidade. Prolonga-se pela extensão de um país e espalha-se por todo o Planeta. Passa por cada um e por cada governo e instâncias internacionais. Mas sempre, com mau ou bom desempenho, somos topiários do jardim onde vivemos: a Terra que gratuitamente nos foi ofertada para dela cuidarmos com zelo. Como a própria vida.
Guarda, 7 de Setembro de 2025
António Salvado Morgado
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