Pe. Hugo Gonçalves, Diocese de Beja
Todos conhecem o salmo 66, que o Pe. Manuel Luís musicou, e que se canta na sexta-feira santa em muitas das nossas igrejas e que tem como refrão: “Toda a nossa glória está na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo”.
A verdade é que a cruz continua a ser hoje, como no tempo de São Paulo, motivo de escândalo e de loucura (cf. 1Cor 1, 23) para muitos. Se ela, até há poucas décadas, estava presente no quotidiano de todos nós – trazida ao peito (em fios de prata e ouro), colocada na parede do quarto, no terço que caía do espelho retrovisor do carro e ainda nas salas de aula – hoje ela está em risco de extinção na vida das pessoas. O Estado laico, aconfessional, encontrou na cruz um perigo à sua laicidade, agora tornada religião obrigatória para todos os cidadãos – afinal Jesus Cristo, o seu Evangelho pode deformar as consciências do ‘homem novo’. Esse momento em que foram retiradas as cruzes das salas de aula das escolas publicas, certamente que entristeceu a muitos de nós, dado que a maioria dos portugueses se assume como cristã e não víamos na cruz, exposta nas salas de aula, qualquer problema, para este país que se formou à sombra da cruz de Cristo.
Para nós, como dizia São Paulo, a cruz “é força … poder e sabedoria de Deus” (1Cor 1, 18.24); que é pela cruz que fomos salvos; que do lado aberto de Jesus crucificado, de onde brotou sangue e água, está a fonte do Baptismo e da Eucaristia – um insere-nos na família de Deus como filhos, o outro alimenta-nos no nosso peregrinar até chegarmos à casa do Pai. Mas a pouco e pouco a cruz foi saindo do quotidiano de muitos: já não uma cruz em casa – ter a Bíblia já é quase um fenómeno – há quem tenha deixado de usar como adorno e muitos já não a fazem sobre si, porque já não rezam. Mas aquilo que também me vai chocando mais é ver igrejas modernas onde a cruz ou está remetida a um canto e em dimensão pequena ou então nem o Cristo tem. Em algumas das igrejas contemporâneas optou-se por um Jesus ressuscitado em detrimento do crucificado – talvez porque hoje se tenha aversão a encarar o sofrimento de outra pessoa – e outras têm uma espécie de cruz, onde o Cristo está presente, mas parece querer fugir do lugar do sacrifício, parece estar a despregar-se da mesma, outros há ainda que consideram quase heresia colocar uma cruz em cima do altar – não fosse este o lugar do sacrifício eucarístico. Se me entristeceu o retirar da cruz das salas de aula, mais me entristece ver esta aparente aversão ou horror à cruz com Jesus crucificado nas novas igrejas.
Na vivência do tempo da Quaresma, em que se faz a Via Sacra, em que em breve teremos as procissões dos passos e do Senhor morto, seria bom que recuperássemos pessoalmente a cruz – talvez voltar a colocá-la ao peito ou então trazê-la no bolso, não como mero adorno e muito menos como género de ‘amuleto’, mas para que a ‘visitemos’ com o nosso olhar, tocando-a e fazendo desses momentos ao longo do dia, minutos de oração, de presença de Deus. Ter a cruz connosco pode-nos ajudar a rezar mais e melhor, lembrando o grande amor do Senhor por nós, ao mesmo tempo que, recordando a própria cruz, podemos a partir da cruz de Jesus, dar sentido à nossa; o apóstolo São Paulo dizia a este respeito: “completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo” (Col 1, 24).
Vivemos um tempo de Horto e de Calvário na Igreja em Portugal. A recente apresentação publica do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica em Portugal, criada pela Conferência Episcopal Portuguesa, deixou-nos profundamente entristecidos, agoniados com os relatos que mostram o sofrimento das vítimas de um crime hediondo, que atentou contra as mesmas e contra o próprio Senhor que diz: “Quem receber um menino como este, em meu nome, é a mim que recebe” (Mt 18, 5). Certamente que vemos nestes crimes, da parte de quem os perpetrou, o beijo frio da traição de Judas; mas este é o momento em que todos, sem excepção, temos de assumir também esta cruz – é a cruz da Igreja em Portugal – e ela só pode ser carregada se for assumida por todos, se todos nos tornarmos Simão de Cirene, acompanhando as vítimas e acompanhando-nos uns aos outros, aliviando o peso da mesma. É fácil, nestas horas difíceis, fazer como fizeram os discípulos em relação a Jesus, na hora do jardim das Oliveiras: fugir, esconder-se, negar… É mais fácil negar hoje a Igreja, na pseudo imagem de estrutura, do que se dizer pertencente a ela, é mais fácil esconder-se e calar-se, que assumir esta realidade e enfrentá-la. É certo que os crimes de alguns mancham a vida dos outros, mas isso não nos deve desanimar, pelo contrário, deve de unir-nos mais, de desejar ser uma Igreja mais santa em cada um dos seus membros, a começar por cada um, na fidelidade ao Senhor, no amor a Ele e ao próximo e na queda, recorrer à misericórdia de Deus que se derrama no sacramento da confissão.
Hoje deixo este artigo em forma de meditação, de desabafo, de desejo de conversão ao Senhor, ao seu Amor, mediante o mistério da Cruz de Cristo.