Testemunhas da Ternura de Deus

Carta Pastoral de D. António Marto sobre o acolhimento e a vocação Caríssimos Diocesanos Irmãos e Irmãs no Senhor “A graça do Senhor Jesus esteja convosco. Eu amo-vos a todos em Cristo Jesus” (1Cor 16,23-24). Com estas palavras do Apóstolo Paulo saúdo-vos cordialmente e expresso-vos o meu fraterno afecto, bem como a minha gratidão pela vossa colaboração durante o meu primeiro ano entre vós. Foi para mim verdadeiramente consolador sentir um povo interessado e entusiasmado em descobrir e celebrar a beleza e a alegria da vocação cristã. Pude verificá-lo, de modo mais visível, no bom acolhimento da carta pastoral e da carta às crianças, nas vigílias vocacionais, na grande peregrinação diocesana a Fátima, na celebração das ordenações sacerdotais e do jubileu das várias vocações, no reiniciar do pré-seminário e no grupo vocacional Santo Agostinho. Não é possível medir o acontecimento de graça que, ao longo do ano, tocou as consciências e as comunidades, nem os frutos da semente lançada. Mas, no termo do ano pastoral, quero agradecer convosco as pequenas e grandes maravilhas que o Senhor fez por nós, com a oração do salmista: “Louvai o Senhor porque Ele é bom, porque é eterno o Seu amor” (Sl 118,1). Hoje – após ampla consulta aos vários órgãos diocesanos, cujos preciosos contributos agradeço –, apresento-vos o percurso pastoral para o ano 2007/08 com o título “Testemunhas da Ternura de Deus”. 1. Uma paragem em Elim A Sagrada Escritura, narrando-nos a caminhada do êxodo do povo de Deus através do deserto, diz a certa altura: “Chegaram a Elim onde estão doze nascentes e setenta palmeiras. E acamparam ali à beira da água” (Ex 15, 27). O lugar de Elim, com as setenta palmeiras e as doze fontes, é um autêntico oásis que oferece ao povo, já fatigado pela longa caminhada, a possibilidade de parar, de retomar fôlego e de fazer o ponto da situação: onde estamos? Como vivemos esta caminhada? O que nos espera? Como e por onde nos conduz o Senhor? A que nos chama? Este episódio serve para iluminar o nosso caminho pastoral já traçado pelo sínodo diocesano. Após o primeiro biénio dedicado ao acolhimento e à vocação cristã, também nós sentimos a necessidade de fazer uma paragem. Com isso queremos consolidar os dinamismos, as iniciativas e propostas, as acções que foram desencadeadas e corriam o risco de depressa serem esquecidas, sem lançarem raízes sólidas em todas as comunidades e vigararias. É também um convite a saborear de novo, a gostar interiormente, a sentir como são deliciosos para nós os dons de Deus, concretamente os dons do acolhimento e da vocação, tão característicos da existência cristã. Por isso, escolhemos como lema bíblico para este ano pastoral 2007/2008 a frase do salmista: “Saboreai e vede como é bom o Senhor” (SI 34,9). Saboreai e vede, isto é, saboreai e então vereis, sereis iluminados pela bondade do Senhor, pela sua ternura; vereis como a vossa vida se ilumina e adquire grandeza e beleza. E, como símbolo, escolhemos a Bíblia porque contém os mais belos testemunhos da ternura de Deus e também para estarmos em sintonia com a preparação do próximo sínodo dos bispos sobre “A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja” A temática do primeiro biénio pastoral estava centrada na “Vocação como dom e missão”. Mas na base, como ponto de partida, pôs-se o “Acolhimento”. De facto, o acolhimento é o pressuposto, a atitude fundamental que nos abre a Deus, aos outros, ao mundo e, por conseguinte, à nossa vocação e missão. Antes de empreender e organizar iniciativas, devemos pôr-nos a questão: somos cristãos e comunidades capazes de acolher Deus e os outros? Assim, nesta carta pastoral, retomo os temas do acolhimento e da vocação em conjunto, procurando conjugá-los e iluminá-los na perspectiva da ternura de Deus. 2. Um mundo inóspito que invoca ternura Vivemos numa sociedade que, antes de mais, quer recuperar o valor do acolhimento porque sente que a vida se torna demasiado dura e fria se não há relação verdadeira e calorosa com os outros. Pertencemos à era fascinante da comunicação global. E, todavia, hoje aumenta cada vez mais a pobreza relacional e o vazio de sentido. Vivemos num mundo que se move e transforma a grande velocidade, que privilegia o ritmo empresarial e a eficácia imediata. Somos a primeira geração do stress e do zapping, símbolos do activismo frenético e da febre do consumismo de coisas, e de afãs tantas vezes inúteis. Não temos tempo para parar, olhar, escutar prestar atenção, acolher, cuidar do outro. Não temos tempo para Deus. Por isso a nossa sociedade encontra muita dificuldade em criar espaços, tempos, lugares e condições para o acolhimento. O acolhimento torna-se cada vez mais aleatório. Um outro fenómeno é o crescente individualismo e o escasso sentido de comunidade. Cada um ocupa-se de si e dos seus interesses, pensa que pode realizar-se e ser feliz sem os outros. Ou vê o outro em função da sua própria realização pessoal. Este facto traz como consequência uma quebra de fraternidade e solidariedade entre as pessoas. As relações são dominadas pela competição agressiva e invasora. Acresce ainda a cultura mercantilista que afecta as relações humanas. Vivemos num mundo onde tudo se compra e vende. O modelo do êxito social e de felicidade veiculado pelos “media” é o da aquisição do poder, do saber e do ter. Perde-se o sentido da gratuidade para com os outros, já desde a própria infância. Tende-se a marginalizar os que não têm poder nem eficácia produtiva. À escala mundial assistimos ao fenómeno da mobilidade e da imigração que nos introduz numa sociedade e num tipo de convivência com diversas culturas e religiões. Mas tal facto traz consigo os problemas do desenraizamento e as dificuldades de acolhimento e integração daquele que é diferente. Esta diversidade cultural pode tornar-se num enriquecimento, mas também pode suscitar reacções de xenofobia, de violência e transformar-se num “choque de civilizações” e de culturas. O estilo de vida frenético e consumista, o individualismo e a indiferença, a ambição e a avidez desenfreada, a cultura mercantilista produzem o drama moderno da incomunicabilidade, do anonimato, da solidão existencial. Por vezes temos a sensação de vivermos num “arquipélago de solidões” em que cada um se sente uma ilha no meio de muita gente, estranho ao outro e, por fim, estranho a si mesmo. Tudo isto repercute-se na questão fundamental de cada pessoa sobre o sentido a dar à sua vida, isto é, na questão da vocação. Numa sociedade fragmentada e confusa, a vida torna-se para muitos apenas uma coisa ocasional a usar e gozar no momento presente, sem projecto. Outros sentem-se “perdidos”, sem bússola, e por isso sem norte e sem rumo. Sintomas disso são o alto número de doenças psíquicas ligadas à solidão, ao stress, ao vazio interior e a busca de seitas onde muitos encontram acolhimento com a aceitação de regras claras e seguras. É muito significativo que, nos países onde as grandes religiões diminuem em número de fiéis, proliferam seitas, bem como grupos de terapia, de auto ajuda… Que sociedade se está a construir no início do terceiro milénio? Que futuro se está a preparar? Numa leitura evangélica dos sinais dos tempos, nós, cristãos descobrimos nesta situação um desafio e uma vocação. Trata-se de criar uma cultura da ternura e do acolhimento, da comunhão e da solidariedade, como alternativa à anti-cultura do egoísmo, da indiferença, da dureza e da frieza de relações, da divisão e da violência. Mas devemos começar por nos interrogar a nós mesmos: qual a qualidade do nosso acolhimento nas relações interpessoais, na família, na comunidade cristã? Oferecemos propostas sérias para o discernimento da vocação cristã no mundo de hoje, sobretudo aos jovens? Não nos deixámos contaminar pela lógica do mundo? Sempre me impressionou, profundamente, a reprovação que Heinrich Boll, prémio Nobel da Literatura em 1972, dirige aos católicos: “Aquilo que até hoje faltou aos mensageiros do cristianismo é a ternura” aos vários níveis: de comunicação, de vida afectiva, de compromisso social. Sem ternura não há vida, não há beleza, não há felicidade! 3. O Evangelho da Ternura O Deus de Jesus Cristo convida-nos, através do salmista, à contemplação deslumbrante do seu mistério de Amor: “O Senhor é bom para com todos; cheio de ternura para com todas as suas criaturas” (Sl 144,9). E pede-nos que nos tornemos, uns com os outros e uns para os outros, testemunhas da Sua ternura, se queremos que a casa do mundo possa ser acolhedora para todos e generosa para com todos. Levar a ternura de Deus ao mundo é levar a salvação do Evangelho. O acolhimento de que falamos não é o que se oferece num hotel ou num aeroporto ou numa agência bancária. Não é uma estratégia para captar ou fidelizar clientes. É antes um estilo de vida. Acolhemos o outro a partir da nossa identidade de discípulos de Jesus Cristo e do Seu Evangelho. Este acolhimento requer pois uma espiritualidade que o sustente e uma pedagogia que o configure a partir da fé. Deus é Amor. Por isso é Deus da ternura. As entranhas da Sua ternura manifestam-se como acolhimento puro. E o nosso próprio acolhimento é um dom de Deus, reflexo da sua ternura. A Bíblia narra histórias maravilhosas de acolhimento e hospitalidade de Deus para com os homens e destes para com Ele, que são também histórias de vocação e que vamos contemplar e meditar. 3.1 Deus é o primeiro a acolher-nos 3.1.1 “E Deus viu que tudo era muito bom e belo”: o encanto do primeiro acolhimento Logo nos primeiros capítulos, o livro do Génesis mostra-nos como e quanto Deus é acolhedor das suas criaturas. É com uma exclamação cheia de encanto e de deslumbramento, terna e amorosa, que Deus acolhe o homem e a mulher, a obra-prima da sua criação, à sua imagem e semelhança: “ E Deus viu que era muito bom e belo” (1,31)! E o capítulo segundo, num estilo narrativo-simbólico, põe-nos a contemplar Deus como o Artista divino que modelou o homem e lhe “soprou um alento de vida” (2,7). O verbo “soprar”, na língua original (naphah), admite também o significado de “dar um beijo”: a criatura humana recebe no seu rosto um beijo de Deus, símbolo de ternura e intimidade, tal como o primeiro beijo da mãe ao acolher, em seus braços, o filho que acaba de dar à luz! De seguida, é-nos apresentado o homem na sua solidão existencial: “Não é bom que o homem esteja só” (2,18). Esta solidão prepara-o para o acolhimento da mulher, o seu semelhante, que não encontrara no mundo infra-humano. E como que despertando de um sono e de um sonho ansiado, o homem acolhe-a com um hino de júbilo: “Finalmente, esta é carne da minha carne, osso dos meus ossos” (2,23). O ser humano adverte que, só acolhendo o outro, se torna plenamente humano. Criando-os à Sua imagem e semelhança, Deus inscreveu no coração de cada homem e de cada mulher a capacidade e a vocação de amar, de acolher. Deus, porém, continua a acolher o homem ao longo da história com as suas alegrias e tristezas, com as suas fragilidades e fadigas. Jesus, o Filho de Deus feito homem, é um ser de acolhimento. Ao longo do Evangelho podemos contemplar a qualidade e a universalidade do Seu acolhimento. 3.1.2 “Se conhecesses o dom de Deus”: acolhidos nas nossas fragilidades O encontro entre a Samaritana e Jesus junto ao poço de Jacob (Jo 4,1-42) é bem conhecido. Num país onde a água é rara, os poços de água são lugares privilegiados de encontros e comunicação, de conflitos e reconciliação, de recordações e surpresas do quotidiano da gente. Sozinha, com o cântaro vazio, à hora de maior calor talvez para não encontrar ninguém, esta mulher solitária chega ao lugar onde Jesus está sentado. E é surpreendida pela iniciativa da palavra de Jesus: “Dá-me de beber.” Surpresa para a mulher, que um judeu fale a uma samaritana; e para os discípulos, que o Mestre fale à primeira mulher que encontrou. A palavra do Mestre começou por derrubar as barreiras sociais, culturais e religiosas. Como se quisesse pôr em comunicação pessoas e mundos que as sociedades e religiões fecham nas suas particularidades e preconceitos. Para Jesus, o que conta é a pessoa concreta, única, amada por Deus. Assim, o encontro casual junto ao poço de Jacob torna-se ocasião para entrar no “poço profundo” da consciência e da vida atribulada da mulher samaritana. Com uma pedagogia humano-divina, Jesus aceita, de início, que o diálogo comece pelas coisas banais, por lugares comuns, feito até com alguma ironia. Mas depois, lenta e delicadamente, entra no coração da samaritana. Leva-a a interrogar-se, a entrar no profundo dos seus problemas, a confessar as desilusões e amarguras da vida e a abrir-se à novidade de Cristo: “Se conhecesses o dom de Deus!”. O encontro com a samaritana revela como Jesus acolhe a partir da situação espiritual concreta da pessoa, com uma grande e delicada atenção, sem pretender dominar, sem fazer juízos nem proferir condenações à partida; mas também sem se deixar capturar, condicionar e bloquear. Antes, ajuda a superar os bloqueamentos. O Senhor revela à sua interlocutora uma experiência surpreendente: um caminho para o interior de si mesma que a abre ao exterior, que a conduz ao Deus vivo e aos outros. O caminho vivo de Amor e a vocação a testemunhá-lo. No final, ela reconhecerá e acolherá abertamente o “dom de Deus” que transcende toda a discriminação de pessoas e todas as barreiras interiores e exteriores: esse dom é Jesus, o Cristo, a fonte de água viva, que sacia toda a sua sede, todo o desejo de viver. Tendo-O escutado até ao fim, a mulher, abandonando o seu cântaro, correu à cidade a testemunhar esta experiência de Cristo e da Sua Palavra que transformou e transfigurou a sua vida. Ei-la missionária de Cristo! A samaritana é figura de todos nós; é a nossa sociedade desiludida depois de tantas experiências e promessas, tentada a fechar-se sobre si, sobre os seus egoísmos e as suas desilusões, sobre o tédio da vida, mas à espera de ser acolhida por Alguém que a ajude a retomar respiração, ânimo e entusiasmo, a reencontrar o melhor de si mesma. 3.1.3 “Fitando nele o olhar, amou-o”: acolhidos apesar da recusa O encontro do jovem rico com Jesus (Mc 10,17-22) não é ocasional. É desejado e procurado: “o jovem corre para Ele, ajoelha-se, pergunta e escuta”. Trata-se de um jovem rico, uma pessoa com possibilidades, energias, talentos, riquezas. Pelo seu modo de agir e falar aparece como um jovem simpático, religioso enquanto cumpre e respeita formalmente a religião, procurando agir correctamente, preocupado pelo que faz e lhe falta ainda fazer. Olha para Jesus como alguém em quem põe a sua confiança, com quem pode falar sobre as suas interrogações existenciais sem medo de ser mal entendido. E põe-lhe a questão mais importante e mais séria sobre o sentido a dar à sua vida, para que seja vida verdadeira, plena e feliz: “Que devo fazer para alcançar a vida eterna?”. “Jesus fitando nele o olhar, amou-o” – diz o texto. Quer dizer, Jesus acolheu-o com amor. Com o seu olhar de afecto, manifestou-lhe a sua ternura, ofereceu-lhe a sua amizade, fê-lo sentir no centro da própria atenção, valorizou a sua boa vontade e a sua rectidão, mostrou-lhe quanto é precioso aos seus olhos e digno de estima. E responde à sua questão de fundo convidando-o a dar um salto qualitativo na sua vida: abrir-se à novidade do Evangelho e à beleza da santidade de vida. O que Jesus lhe propõe é a liberdade do coração para O seguir e partilhar a riqueza dos seus bens e talentos com os que precisam. Mostra-lhe o caminho da vocação cristã em que se realiza o homem e a sua dignidade. Porém, o jovem partiu triste e, porventura, desiludido com Jesus. Estava disposto a observar as regras fundamentais da vida, mas fechado no mundo das suas coisas e seguranças. Não acolhe a novidade de Jesus. Chegou à fronteira duma nova etapa e vocação da sua vida, mas não teve a coragem de a transpor. Ficou só com a religiosidade da lei de não fazer mal aos outros (não mato nem roubo), mas sem ir mais longe. Parece-nos um “falhanço” pastoral de Jesus! Estamos diante do mistério do dom da fé e da liberdade do homem. Mistério que requer respeito! Os encontros de Cristo contêm uma espiritualidade e uma pedagogia do acolhimento. Para Jesus, cada pessoa é única, com o seu nome próprio, o seu rosto, a sua história. Através de um procedimento progressivo e revelador, Jesus valoriza, purifica e leva à verdade plena o desejo de vida, de amor, de verdade, de alegria e esperança que move o coração e a liberdade de cada pessoa. 3.2 Chamados a acolher Deus e os seus dons 3.2.1 “Não passes adiante sem parar em casa do teu servo”: acolher Deus no quotidiano É clássico o episódio do acolhimento de Deus por Abraão junto ao carvalho de Mambré (Gen18,1-15) onde está acampado. Vemos aí três personagens, desconhecidas e misteriosas, acolhidas por Abraão e Sara. Prometem que Sara gerará um filho na sua velhice. Abraão descobre nesta visita inesperada a passagem de Deus, a significar que Deus chega sempre de surpresa: “Senhor, peço-te que não passes adiante sem parar em casa do teu servo”. A hospitalidade generosa de Abraão é-nos descrita com traços de significado místico-simbólico. Configura-se como uma liturgia do acolhimento, uma festa de alegria do encontro à mesa. Oferece o melhor que tem, dá-lhe o lugar central; dá-lhe o tempo que é necessário e não à pressa. Tem tempo para Deus. O gesto de Abraão indica que a experiência espiritual da fé exige uma tomada de consciência da presença de Deus no nosso quotidiano. Querendo que Deus pare em sua casa, Abraão deseja que Deus se torne familiar. A vida de fé traz em si o desejo de não deixar que Deus passe ao lado, de O acolher “em casa ”. Deus quer ser acolhido: e quando O acolhemos, Ele torna fecunda a nossa vida, abre-nos um futuro novo, desperta em nós o sentido do outro e da missão, a vocação. 3.2.2 “Sentada aos pés do Senhor, escutava a Sua Palavra”: acolher a Palavra Esta página do Evangelho (Lc 10, 38-42) mostra-nos Jesus acolhido por Marta e Maria em sua casa, onde ele gostava de saborear a amizade, a intimidade, o repouso sereno. Marta, como boa dona de casa, dispõe-se a preparar tudo para um acolhimento digno de tão estimado hóspede. Maria “sentada aos pés do Senhor, escutava a Sua palavra”. Marta mostra-se agitada, inquieta, perturbada, ansiosa e impaciente pelas muitas coisas a fazer, e pede a Jesus que reprove o aparente desinteresse de Maria. E a resposta de Jesus soa como uma advertência afectuosa: “Marta, Marta, andas tão inquieta e perturbada, mas uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte que não lhe será tirada”. Não se trata aqui de uma lição de cortesia, de boas maneiras. Jesus não é tão ingénuo que desconheça tudo o que é preciso fazer para receber bem um hóspede. A frase de Jesus constitui um pequeno “evangelho”: é o anúncio da Palavra que pode preencher o coração, salvando-o da dispersão das muitas coisas. Quer salvar do perigo de perder o valor da Sua visita, da Sua presença, da Sua palavra sobre Deus e sobre o mistério da vida. Os traços do carácter de Marta podem ser vistos no homem moderno: o homem frenético, doente da pressa e da ansiedade crónica, que cai num activismo sem profundidade, vazio de interioridade, com a ânsia de fazer muitas coisas. E corre o risco de perder o centro de gravidade, o sentido do essencial. As muitas coisas impedem não só a escuta, mas também o verdadeiro serviço. Fazer muito é sinal de amor; mas também pode fazer morrer o amor, até na família, quando desvia a atenção para as coisas em detrimento das pessoas. Acolher não é só fazer ou dar coisas, mas, antes de mais, é dar atenção à pessoa, fazer companhia, dar tempo e espaço para escutar a Palavra. Maria é o símbolo do discípulo e da Igreja à escuta de Cristo: abre-lhe o seu coração, deixa-o entrar na sua vida, cultiva a amizade pessoal com Ele, consciente de que “nem só de pão vive o homem, mas de toda a Palavra que sai da boca de Deus”. Também, nesta história, Aquele que é acolhido é o mesmo que vem para acolher, para dar uma Palavra de vida, de luz, de esperança, de alegria e de paz. Esta é a “parte melhor” que não será retirada: o que dá consistência e sentido à vida do discípulo, aquilo que permanece e não passa. “Feliz aquele que escuta a Palavra e a põe em prática”, diz Jesus, conjugando assim as atitudes do acolhimento completo: o coração disponível, à escuta, de Maria e as mãos serviçais de Marta. A Palavra acolhida é um dom que contém em si a vocação à missão, ao serviço, ao testemunho. 3.2.3 “Hoje, a salvação entrou nesta casa”: acolher a Misericórdia Vejamos ainda a narração admirável do encontro de Zaqueu com Jesus (Lc 19,1-10). A personagem de Zaqueu é-nos descrita com cores negativas: “chefe dos publicanos e rico”. É colaboracionista do poder romano, um odiado cobrador de impostos, corrupto, ávido de lucro e escravo do dinheiro, desprezado pelo povo, temido mas isolado. É um pecador público. E, todavia, este homem tem uma ansiedade interior: “Procurava ver Jesus” e soube aproveitar a ocasião de uma passagem irrepetível de Jesus pela cidade. Provavelmente tinha mais do que simples curiosidade; talvez uma insatisfação, uma inquietação interior. Intui que Jesus tem algo de misterioso e fascinante que o atrai. Adverte que Jesus pode fazer algo por ele. Sente-se pequeno e distante, mas arrisca, até ao ridículo, subindo a uma árvore. E Jesus, passando “levantou os olhos” e disse-lhe uma palavra imprevista, extraordinária, inesperada: “Zaqueu, desce depressa, porque hoje devo hospedar-me em tua casa”. E Zaqueu acolhe-o “cheio de alegria”, expressão típica de S. Lucas que manifesta bem a consequência interior de acolher Deus. A entrada de Jesus naquela casa é a entrada da misericórdia. Ao acolher Jesus, Zaqueu acolhe a misericórdia. É essa experiência de misericórdia, e só ela, que abre o coração de Zaqueu à generosidade (“darei a metade dos meus bens aos pobres; e se defraudei alguém, restituirei quatro vezes mais”). De cobrador passa a dador. Ganha uma nova sensibilidade para os outros dando-lhes muito mais do que é devido: ao receber ele próprio mais do que merecia (a entrada de Jesus em sua casa), dá muito mais do que os outros merecem. Podemos ver isto em perspectiva vocacional: quem não (se) dá, é porque não recebeu; quem não vive a sua vocação é porque não acolheu a ternura, o amor terno de Jesus. Notemos que este encontro acontece por iniciativa de Jesus, do seu olhar de amor, que procura Zaqueu superando todos os obstáculos, como a sua condição de pecador ou a hostilidade e a crítica da multidão que se escandaliza e murmura A própria busca de Zaqueu é acolhida, valorizada, purificada e regenerada de tal modo que, de curiosidade inicial, se transforma em acolhimento alegre de Jesus e em generosa vocação a segui-l’O. 3.3 “Acolhei-vos uns aos outros como Cristo vos acolheu”: o acolhimento fraterno O acolhimento de Cristo na fé prolonga-se no acolhimento de Cristo nos irmãos: “Quem acolhe um destes pequeninos, é a Mim que Me acolhe; e quem Me acolhe a Mim, acolhe o Pai que Me enviou” (Mc 9, 37). Mais rica e paradoxal é outra afirmação de Jesus, no contexto do juízo final: “Eu era estrangeiro e vós acolhestes-Me” (Mt 25, 35). Aqui está toda a espiritualidade específica do acolhimento cristão. Por isso, S. Paulo, depois de ter contemplado o mistério de Cristo em dimensão universal, exclama na carta aos Romanos: “O Deus da perseverança e da consolação vos conceda os mesmos sentimentos de uns para com os outros segundo Jesus Cristo, para que, com um só coração e uma só voz, glorifiqueis a Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso, acolhei-vos uns aos outros como Cristo vos acolheu para glória de Deus” (15, 5-7). S. Paulo vê no acolhimento uma expressão da vocação cristã e da realização da lei de Cristo. Convida-nos a ter o nosso olhar fixo em Jesus para nos acolhermos mutuamente. Ele acolheu todos para nos reunir numa única grande família de irmãos, filhos do único Pai. Viver como cristãos significa, pois, viver acolhendo-nos no amor recíproco. Não se trata de um mero altruísmo ou de uma filantropia natural. Exige uma conversão do coração, uma mudança de estado de espírito. No sentido cristão do termo, o acolhimento fraterno é modelado pelo Evangelho de Jesus e pela graça de Deus. Assim, a partir daqui, podemos ver as suas características: O acolhimento é, antes de mais, abertura relacional. É mais amplo que a simples ajuda, porque significa abrir-se à pessoa e não só às suas necessidades. Significa abrir o coração e não só dar ajuda; tratar o outro como a si mesmo e nele servir o Senhor de todo o coração. Tudo começa pelo apreço do outro, pela atenção, escuta, diálogo, respeito e delicadeza. O acolhimento implica a disponibilidade. Para que o outro possa ser recebido como um ser único é preciso tempo, a fim de que a pessoa possa “dizer-se”, exprimir-se, sentir-se à vontade, desafogar os seus problemas, as suas dores por vezes profundas e ocultas. Isto não suporta a precipitação. O acolhimento cristão é solidariedade, comunhão e partilha nas alegrias e tristezas, sem qualquer sentimento de superioridade ou relação paternalista. Assim resultará num enriquecimento mútuo. O acolhimento cristão é também universal, sem fazer acepção de pessoas, sem restrição nem segregação. Por isso, estende-se em diversas direcções: em relação ao próximo que vive continuamente a nosso lado (familiar, vizinho, companheiro de trabalho); ao diferente, àquele que não pensa, nem vive como nós, que não é da nossa religião, do nosso partido, da nossa raça, da nossa formação; ao “indiferente”, ao marginalizado, excluído, que faz parte da multidão de anónimos, com quem não há nenhuma relação; e, por fim, até ao inimigo, ao adversário, através do perdão, da comunicação reencontrada que nos leva a ultrapassar as atitudes de ódio, vingança e desprezo. O acolhimento e o cuidado dos outros é ainda um lugar e um caminho para despertar e descobrir a vocação e as diferentes vocações na Igreja. Deus chama-nos também através das necessidades da Igreja e do mundo. Quantos e quantas descobriram, deste modo, a sua vocação ao sacerdócio ou à vida religiosa e missionária! 4. A Igreja, “casa e escola” do Acolhimento A Igreja, porque é habitada pelo Espírito de Jesus – que é Espírito de caridade e comunhão – é pois, por natureza e vocação, “casa e escola” de acolhimento cristão. Não é, então, possível imaginar o acolhimento como uma prótese, um suplemento das comunidades cristãs delegado a alguns “especialistas” ou profissionais de relações públicas. Toda a pessoa é um apelo que pede para ser acolhida e escutada. O acolhimento é como um livro aberto onde cada um de nós pode ler que também à sua vida, tão cheia de coisas, falta o “único necessário”, que é a capacidade de relação, de partilha, de amor, de dedicação, e vocação ao serviço dos outros. Na atitude de acolhimento e em comunidades acolhedoras é onde a nossa civilização encontrará os novos “poços de Jacob” para saciar a sua sede, abrigar-se do calor abrasador, receber o dom da vida verdadeira. É aqui que muitos homens e mulheres encontrarão remédio para a solidão. A pastoral do acolhimento é pois um elemento constitutivo e básico da Igreja que revela o coração de Cristo cheio de ternura, misericórdia e esperança. O acolhimento deve dar uma alma e um pouco de coração, de afecto e calor humano às relações, à vida e às estruturas de cada comunidade. Assim, apresentamos algumas pistas de acção a serem reflectidas em cada comunidade, para um exame de consciência e iniciativas pastorais concretas. 4.1 Cultivar a espiritualidade do acolhimento Antes de programar iniciativas concretas é preciso promover uma espiritualidade do acolhimento e da comunhão. Em primeiro lugar, esta espiritualidade tem a sua fonte na oração e em toda a celebração litúrgica. A oração é, antes de mais, um momento de acolhimento em que se escuta Deus que fala à mente e ao coração, em que nos deixamos acolher por Deus que vem ao nosso encontro, nos precede, acompanha e chama a colaborar com Ele. Ele é o primeiro que nos acolhe tal como somos e na situação em que nos encontramos. É Ele que dilata o nosso coração e o abre aos outros. Mas o acolhimento de Deus requer o nosso recolhimento. É necessário estar disponível, ter tempo para Deus. Nesta linha, propomos viver a Quaresma como um tempo de recolhimento, dando-lhe o carácter de um “retiro popular”, isto é, para todo o povo de Deus: cada comunidade reunir-se-à uma vez por semana, para meditar sobre a espiritualidade e a pastoral do acolhimento e da vocação cristã. Para isso ofereceremos, a seu tempo, as meditações quaresmais, sob a forma de leitura familiar e orante da Palavra de Deus (Lectio divina), que nos põe à escuta de Deus e nos faz sentir que a Sua Palavra não é longínqua nem impessoal, mas fala hoje, pessoalmente, ao coração de cada um. Peço aos párocos que façam, atempadamente, uma especial sensibilização e organização do povo de Deus para este aspecto. 4.2 Presença de proximidade na paróquia A paróquia é a presença viva e visível da Igreja de Jesus no meio das casas dos homens. Não há-de ser vista como estação de serviços religiosos, mas como casa de acolhimento fraterno das pessoas e de experiência significativa do Evangelho. É preciso, pois, incrementar e dar qualidade evangélica à dimensão do acolhimento, como expressão de um amor que a todos abraça: homens e mulheres, fracos e fortes, entusiastas e desiludidos, estranhos e conhecidos. Significa dar testemunho de uma Igreja interessada mais nas pessoas que nas estruturas, dialogante, calorosa. A presença de proximidade exprime-se em tecer relações próximas, directas com todos os seus habitantes, cristãos ou não, participantes da vida da comunidade ou à sua margem. Nada na vida das pessoas, acontecimentos alegres ou tristes, deve escapar à presença discreta e activa da paróquia, feita de proximidade, de atenção e partilha. Por isso há que cuidar, à partida, de aspectos e atitudes fundamentais: – No serviço pastoral dedicar mais tempo a cada pessoa, escutá-la, estar a seu lado nos acontecimentos mais importantes e ajudar a buscar, com ela, as respostas às suas dificuldades e necessidades. Façamos com que todos, ao serem e sentirem-se valorizados, se possam sentir na Igreja como na sua própria casa; – Programar o acolhimento em forma de “rede de relações” de conhecimento, amizade, convite, colaborações, através de pessoas dedicadas e idóneas para os vários âmbitos. Trata-se de criar e valorizar o ministério do acolhimento que é como que o “cartão de visita” duma comunidade; – Cuidar do atendimento a quem vem pedir um serviço ou informação ou expor um problema, através de um estilo de atenção, delicadeza, escuta, paciência, compreensão e disponibilidade de tempo programado (que entra nos programas) de modo que as pessoas se sintam à vontade. São contrárias a este estilo as atitudes de frieza, indiferença, falta de gentileza ou o querer despachar de qualquer modo e o mais rapidamente possível; – Dar vida a pequenos grupos ou comunidades onde seja possível viver melhor o acolhimento fraterno (a escuta recíproca, a partilha, a oração) e relações mais próximas e familiares; – Aproveitar ou criar o “dia da comunidade paroquial” como ocasião para sair das relações anónimas, para o mútuo conhecimento, para derrubar barreiras e incrementar o sentido de família e de fraternidade. Nos momentos mais significativos da vida Nos momentos mais importantes e significativos da vida, alegres ou tristes, de êxito ou fracasso – nascimento, casamento, morte – é quando aflora, mais ou menos fortemente, à consciência e ao coração humano o sentido do sagrado e da transcendência, a dimensão espiritual que envolve a existência humana. São ocasião de uma maior aproximação à Igreja para pedir os sacramentos. São momentos carregados de fortes emoções. Muitas pessoas vivem afastadas da Igreja, com uma fé ténue; sem saber o que é preciso fazer e sentem-se embaraçadas num ambiente que não lhes é habitual. Nestas situações requere-se um acolhimento muito próprio de empatia, delicadeza e compreensão, de esclarecimento inteligente e paciente, de diálogo sereno. Há que valorizar estes momentos com propostas em ordem a uma boa preparação e a uma boa celebração do baptismo e do matrimónio para que os dons de Deus sejam acolhidos, por quem os pede, com seriedade, dignidade, verdade e beleza. Esta mesma sensibilidade e empatia são necessárias para o acolhimento relativo ao sacramento da reconciliação e à celebração dos funerais. Neste último aspecto, todos sabemos o que representa a dor da perda de uma pessoa querida. A comunidade cristã sente-se interpelada a manifestar os seus sentimentos de comunhão com a família enlutada. Quando for possível e oportuno, com a colaboração das irmandades e confrarias e de outros animadores leigos, pode propor às famílias um momento de oração no lugar do “velório”, preparando-o cuidadosamente. Além disso, podem envolver-se os familiares na celebração confiando-lhes a leitura da Palavra ou a formulação das intenções dos fiéis. E como é importante a homilia de estilo meditativo e afectuoso! Não há nada de mais irritante que uma prédica de lugares comuns ou fria como um acto notarial. Nas situações de fragilidade Um acolhimento particular, solidário e afectuoso, deve ser reservado às pessoas em situação de maior fragilidade, por motivo de qualquer forma de pobreza ou de sofrimento. Penso, em primeiro lugar nos doentes, nos idosos e nas pessoas portadoras de deficiência juntamente com os seus familiares. É um aspecto para que as nossas comunidades já estão bastante sensibilizadas e a que vão procurando dar resposta. Mas ainda há muito a fazer e a melhorar. Neste momento, gostaria, sobretudo, de lembrar aos catequistas e aos párocos a situação das crianças portadoras de deficiência, na catequese e nos sacramentos de iniciação. Estas crianças, capacitadas de modo diferente, também apreendem a mesma fé, ainda que de modo diverso. É necessário ter isto presente para que, de modo nenhum, sejam discriminadas, prejudicadas e muito menos humilhadas. Hoje batem à porta das nossas comunidades cada vez mais pessoas com problemas ou perturbações de ordem psíquico-espiritual, com uma fragilidade interior a toda a prova. Para elas é necessário criar espaços e condições de acolhimento, escuta, aconselhamento, acompanhamento e oração que levem à cura ou ao alívio das suas feridas, através de pessoas idóneas, preparadas para isso. Uma cura que, por vezes, é uma longa viagem de libertação e de reconciliação com Deus, consigo mesmas e com os outros. Com esta finalidade propomo-nos constituir um grupo multidisciplinar de voluntários no Santuário de Fátima. E organizaremos também um seminário para partilha de experiências e reflexão sobre este problema. Um outro tipo de pessoas em situação de fragilidade é o dos imigrados, estrangeiros, diversos de nós pela sua cultura, pelos seus costumes, pela sua língua e pela sua religião. O nosso acolhimento manifestar-se-à na convivência fraterna e em ajudar a criar espaços e condições para a sua integração. Nas famílias A família é o lugar primordial da ternura e do acolhimento. E, no entanto, em muitas famílias, vivem-se situações silenciosas de azedume, de amargura, de ressentimento e de ruptura entre cônjuges e entre pais e filhos, que se prolongam porque cada um se fecha no seu casulo, no seu mutismo e não se cultiva o acolhimento quotidiano, sincero e transparente, respeitador e sereno. Porque não recuperar a oração em família, ao menos uma vez por semana, que ajuda a abrir e pacificar os corações? Quero deixar aqui uma palavra esclarecedora e pacificadora a propósito de duas situações familiares hoje muito frequentes. Que fazer quando um filho segue o seu caminho, mas que é contrário aos princípios e valores dos pais, por exemplo, quando opta por uma “união de facto”? Naturalmente estes pais têm o direito de dizer ao filho que, no seu modo de ver, tal comportamento não é correcto. Será necessário dizê-lo de modo claro, leal e respeitoso. Mas, uma vez esclarecido o assunto, é preciso acrescentar: “continuamos a ser os teus pais, não te fechamos a porta. Porque o sofrimento que sentimos e a provação que sofrem as nossas convicções religiosas não nos eximem do primeiro dever de pais, o de amar o nosso filho apesar de tudo”. A outra situação refere-se aos divorciados recasados que querem conservar a sua fé. É um dos problemas mais delicados na Igreja de hoje. Que acolhimento lhes reserva a Igreja? Só diz ou só pode dizer mal do segundo casamento? Antes de mais, só Deus conhece o coração de quem se divorcia e volta a casar. Só Ele julga da sua culpabilidade. Nem todos os casos são iguais. Mas, objectivamente, o novo casamento depois do divórcio não pode ser reconhecido pela Igreja, por fidelidade ao Evangelho do matrimónio uno e indissolúvel. Por isso, a Igreja lhes pede que se abstenham dos sacramentos. Mas isso não significa que estejam ex-comungados da Igreja: “os divorciados recasados, não obstante a sua situação, continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude na esperança de que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através da participação na Santa Missa ainda que sem receber a comunhão, da escuta da Palavra de Deus, da adoração eucarística, da oração, da cooperação na vida comunitária, do diálogo franco com um sacerdote ou mestre de vida espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras de penitência, da educação cristã dos filhos” (Bento XVI, Sacramentum Caritatis, 29). Apesar da atitude rigorosa da Igreja, não é esta, de algum modo, uma boa palavra de acolhimento para eles? Mas é dita raramente e quase nunca no momento oportuno… 4.3 Acolher o dom da vocação: uma chama que ama e chama! No ano passado, propusemo-nos descobrir a beleza e a alegria da vocação cristã. Agora, ao longo desta carta, consideramo-la na perspectiva da ternura de Deus e do acolhimento: acolher a vocação (chamamento) como dom da Sua ternura. A vida é bela porque Deus nos ama e chama; e é séria porque Deus nos confia uma missão. De facto, aquele que acolhe e recebe a ternura de Deus, sente-se, por sua vez, chamado a testemunhar, comunicar e servir aos outros essa ternura que quer estender-se a todas as criaturas. Todas as vocações são um raio da beleza da ternura de Deus que quer encher o mundo: a vida laical de quem assume a vida e o trabalho no mundo na fidelidade ao Evangelho e como uma missão em ordem ao desenvolvimento justo, solidário, fraterno e acolhedor para todos; o matrimónio como primeiro lar e comunidade particular da ternura de Deus no mundo; o sacerdócio de quem sente arder a ternura de Deus dentro de si e se oferece todo para ser servidor dos dons da ternura de Deus (palavra, sacramentos, comunhão fraterna) aos homens; a vocação de especial consagração ao Senhor, na vida religiosa, missionária ou laical, para testemunhar, de modo profético, o amor à ternura de Deus e a sua universalidade, sobretudo aos pequeninos e aos mais necessitados. O nosso objectivo é imprimir um novo ardor à pastoral vocacional, levando-a ao coração de cada comunidade cristã para que a sinta e assuma como elemento constitutivo da experiência de fé viva e como uma responsabilidade que a todos diz respeito. O próprio símbolo do ano vocacional, a lamparina a arder e a passar de comunidade em comunidade, é muito significativo também para este ano: uma chama (ternura de Deus) que ama e chama! Importa manter esta chama acesa no coração e na pastoral. Assim propomo-nos reavivar e consolidar as acções mais significativas que já iniciámos: continuar a “grande oração pelas vocações” sobretudo com uma vigília, particularmente destinada a adolescentes e jovens, em cada vigararia; manter o funcionamento do “grupo vocacional Santo Agostinho” para os jovens seriamente interessados na descoberta da sua vocação e incrementar o pré-seminário para os interessados no discernimento da vocação sacerdotal; aproveitar a preparação para o Crisma como um particular momento vocacional; criar o grupo de animadores vocacionais nas vigararias ou na paróquia. 5. Nossa Senhora da Ternura e do Acolhimento Maria, mãe de Jesus, é a Mãe da ternura. Contemplá-la é contemplar a ternura de Deus e as maravilhas que esta realiza quando a criatura humana se abre e acolhe a Palavra de Deus e a Sua graça. Ninguém mais do que Maria é o símbolo do acolhimento, precisamente porque ninguém como ela acolheu o Filho de Deus no seu coração e no seu seio – a ternura de Deus encarnada. Com o “Sim” acolhedor da fé respondeu à vocação, dispondo-se inteiramente a colaborar, como Mãe, na dádiva da ternura de Deus à humanidade. Acolhe o dom e dá-o, por sua vez, partilha-o, como no encontro com Isabel. Aí vemos como o acolhimento de Deus faz brotar o reconhecimento alegre da Sua bondade, no cântico do Magnificat, o cântico da Ternura de Deus de geração em geração. A Ela confiamos a realização do nosso caminho pastoral: Ó Virgem Maria, Mãe da Ternura, Rainha do acolhimento e da comunicação, Senhora do sim ao chamamento do Pai, Tu, espelho fiel do rosto da ternura de Deus: Alcança-nos a graça de sermos Igreja do acolhimento, Casa aberta para todos. Ajuda-nos a ser como Tu: Acolhedores e testemunhas da ternura de Deus, Atentos às necessidades dos irmãos, Generosos no sim à vocação a que o Senhor nos chama. Acompanha e guia a nossa Igreja no seu caminho pastoral! Saúda-vos afectuosamente, + António Marto, Bispo de Leiria-Fátima 8 de Setembro de 2007 Festa da Natividade de Nossa Senhora

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