Temos de voltar à literatura

Pe. Vítor Pereira, Diocese de Vila Real

Padre Vitor Pereira, Diocese de Vila Real

O escritor turco, Orhan Pamuk, disse em tempos, numa entrevista ao Expresso, que os bons livros podem salvar o mundo. Infelizmente, possivelmente, muitas pessoas trocaram as boas horas da literatura pela interação nas redes sociais, e penso que ficámos todos a perder. Não diabolizo as redes sociais, também as frequento, também as uso, bem usadas são uma boa ferramenta, também se leem bons textos e reflexões nas redes sociais, mas não podemos deixar que elas substituam a leitura de bons livros e de fazermos uma reflexão mais atenta, paciente e profunda da vida, das suas questões e dramas, sem pressa de comentar ou polarizar. O Papa Francisco recomendou várias vezes a leitura de bons livros. Para ele, a literatura é fundamental na vida, conduz à contemplação: “poetas contemplativos e proféticos ajudam a libertar-nos do paradigma tecnocrático e consumista que sufoca a natureza e nos deixa sem uma existência verdadeiramente digna”. Leitor assíduo desde a juventude, um dos seus autores preferidos era Fiódor Dostoievski, autor russo, escritor incontornável no universo cristão, cujos livros, como sabemos, são muito conhecidos pela dimensão psicológica dos seus personagens, a fé e a essência do sofrimento humano. Um dos seus livros de eleição deste grande romancista e pensador do império russo é “Os Irmãos Karamazov”.

Se querem um livro para os tempos livres ou para as férias, ficarão bem servidos ou servidas com a leitura deste romance monumental da literatura mundial, mais atual do que nunca, diante da realidade humana e social que enfrentamos. Os temas ali abordados estão mais atuais do que nunca. Os Irmãos Karamazov foi o último romance escrito por Fiódor Dostoievski, sendo considerado o ápice da carreira literária e da reflexão filosófica de Fiódor Dostoievski, que procurou investigar a alma humana e traçar uma radiografia da natureza humana, perceber os seus mistérios, a sua paradoxalidade e complexidade. Alguns afirmam mesmo que esta grandiosa e colossal obra literária é uma síntese de tudo o que o autor explorou nas suas obras anteriores. Todos os temas ali se encontram e ampliam. Todas as questões morais, filosóficas, religiosas e espirituais das suas obras são aprofundadas e reunidas numa súmula.

Há um dado relevante na vida de Fiódor Dostoievski, que é preciso reter. Em 1849 ele foi acusado de subversão e conspiração contra o regime czarista do império russo. Foi condenado à morte por fuzilamento, mas, na última da hora, a sentença é suspensa e teve uma comutação da pena: foi condenado a 4 anos de degredo e trabalhos forçados na prisão-fortaleza de Omsk, na Sibéria. Nesta convivência com díscolos e criminosos de toda a espécie, Fiódor Dostoievski terá uma veemente e exaustiva aprendizagem exclusiva e singular da condição humana. A bíblia será a sua grande companheira.

Os Irmãos Karamazov não é apenas um grande romance, é também um livro de um grande pensador, que se confrontava e procurava respostas para grandes questões e dilemas no campo da moralidade, da fé, da liberdade, da razão, do ceticismo. É um livro com grande tonalidade filosófica. A trama central gira em torno de um pai e da sua relação tumultuosa com seus três filhos, que culmina no assassinato do pai pelo filho mais velho, um parricídio. O pai, Fiódor, é egoísta, depravado, boémio e devasso, irresponsável. O filho mais velho, Dimitri, que vai matar o pai, é impetuoso e vive para as suas paixões. Ivan é o filho do meio, é o intelectual niilista e cético, que questiona o sentido de Deus e da vida. Aliocha é o mais jovem, é bondoso e o mais espiritual, procura viver de acordo com os ensinamentos cristãos.  Os três irmãos refletem diferentes facetas da alma humana, representando a complexidade da natureza humana. É notório ao longo do livro o grande confronto entre fé e razão, e uma constatação está sempre presente como pano de fundo, convicção do filho Ivan: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”. Será que é mesmo assim?

A questão vai sendo explorada ao longo do livro e chega ao momento alto no capítulo do Grande Inquisidor, um capítulo profundamente reflexivo e denso, central na obra. Num diálogo com o seu irmão Aliocha, Ivan, racionalista, expõe a sua visão através de um poema fictício, que anda a escrever. O que diz o poema? Conta uma história na Espanha da Inquisição do século XVI. Cristo retorna à terra, não para fazer o juízo final, mas volta silenciosamente para realizar milagres e relacionar-se com as pessoas. Ao testemunhar os milagres de Cristo, o grande inquisidor, um velho empedernido pelo poder, não o vê como um grande Salvador, mas uma ameaça. Cristo perturba a ordem que a Igreja afincadamente construiu. Manda prender Cristo e à noite, na prisão, confronta-o com a sua ação e a sua mensagem, onde o grande inquisidor profere um monólogo, expondo as suas acusações a Cristo, segundo o relato das tentações no Evangelho.

A grande acusação que ele dirige a Cristo é que Ele ofereceu à humanidade um presente que ela não consegue suportar, o livre arbítrio, a capacidade que o ser humano tem de ser livre, de decidir e escolher por si mesmo. A acusação está dividida em três partes, segundo as tentações: o pão, o milagre e o poder. Jesus na primeira disse que nem só de pão vive o homem, mas o grande inquisidor discorda. As pessoas preferem pão à liberdade, as pessoas abdicam dos seus valores e da sua liberdade em troca de segurança material. Na segunda, Jesus respondeu que não deseja convencer a humanidade com demonstrações espetaculares de poder divino. O grande inquisidor diverge, as pessoas precisam de milagres e querem milagres para acreditar. Na terceira, Jesus recusou o poder, afirmando que o seu Reino não é deste mundo. Mais uma vez o grande inquisidor discorda e acusa Cristo de cometer um grande erro, porque as pessoas desejam líderes fortes que possam decidir por elas, as pessoas preferem entregar a sua consciência a líderes poderosos do que carregar o peso das suas próprias decisões, a unidade e a paz só podem ser alcançadas por uma autoridade absoluta. Que grande crítica ao ideal de liberdade e até à nossa natureza humana! A liberdade de escolha é um fardo insuportável para a maioria das pessoas, a verdadeira felicidade só pode ser alcançada pela submissão a uma autoridade superior. Para o grande inquisidor, a Igreja corrigiu o erro de Cristo, tomando o controle do livre arbítrio humano, oferecendo conforto e segurança em troca da obediência das pessoas. Perante estas acusações, Jesus fica em silêncio e dá um beijo nos lábios do grande inquisidor, que o deixa profundamente desconcertado.

Quem tem razão? Fiódor Dostoievski não deixa uma resposta simples e definitiva. Sente-se fervilhar os paradoxos da liberdade. A liberdade é um presente maravilhoso, mas é perigoso. A maioria das pessoas não sabe usar a liberdade com responsabilidade ou deixam que outros decidam por elas o que fazer da liberdade e com a liberdade. Isso resulta, muitas vezes, em erro e sofrimento. Aliocha, que é o filho mais novo, que representa a fé, responde com amor e esperança. Por ele, o autor russo procura-nos dizer que a liberdade não é só um fardo, mas também uma oportunidade de escolher o bem, de buscar redenção, mesmo que o mundo seja confuso e caótico. Não nos diz quem tem razão. Deixa-nos um paradoxo: a liberdade é o maior presente, mas também o nosso maior desafio, que implica audácia e uma grande responsabilidade. Boa leitura.

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

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