O diretor do Departamento de Intervenção Social da Santa Casa da Misericórdia do Porto afirma as soluções para as questões da violência, nomeadamente doméstica, “têm de ser educativas e considera a justiça «é excessivamente branda» para com o agressor, que deve ser «devidamente penalizado e reabilitado»
Nos dias 25 e 26 no teatro Rivoli esteve em palco a opera “Lugar-Comum”. Fale-nos um pouco deste projeto…. O que se apresentou em palco resulta das experiências que a Santa Casa testemunhou?
A Santa Casa da Música do Porto tem uma larga experiência de intervenção na área da violência doméstica. Temos uma casa abrigo, a Casa de Santo António há mais de 20 anos, que é também ela o resultado de uma resposta secular que a Misericórdia do Porto tinha antes e que, entretanto, foi reconvertida. E temos tido uma intervenção mais de fim de linha, enquanto acolhimento de vítimas de violência doméstica. E temos sentido a necessidade de intervir antes desse fim de linha, numa perspetiva mais de sensibilização e de prevenção. E este projeto, mudando o que tem que ser mudado, do qual a opera “Lugar-Comum” é o resultado final, foi esta tentativa de nós começarmos a trabalhar outras vertentes, neste cariz mais preventivo de que de que falava…. Isto por um lado. Por outro, também tentámos associar duas realidades que normalmente não estão de mãos dadas tão regularmente, como é a componente artística enquanto instrumento de intervenção social.
A Misericórdia do Porto tem também, nas últimas décadas, desenvolvido alguns projetos de cariz artístico e tentámos juntar aqui estes dois elementos. O que é que nós pretendíamos? Ou o que é que nós pretendemos? Que a ópera servisse de provocação e de devolução à comunidade acerca do papel que cada um de nós tem na prevenção deste fenómeno.
E colocar em palco esta causa acaba por ser uma grande ajuda para falar sobre o problema e para eliminar este fenómeno, que continua a querer esconder-se, seja por parte das vítimas, dos agressores e de toda a sociedade?
Acreditamos que sim. Acreditamos que só falando abertamente, só tornando este fenómeno o mais visível possível – porque infelizmente tem sido invisível durante muito tempo e continua a sê-lo de certa forma – só o tornando visível é que poderemos realmente intervir com maior objetividade e com maior intencionalidade e com maior naturalidade. Algo que também nos parece que é relevante. E, portanto, esta foi esta tentativa.
Eu gostava de sublinhar, se me permitem, que é tão relevante como a ópera, como este produto final, foi o processo de construção da mesma. Este processo consistiu em 25 miniprojectos, onde envolvemos mais de 200 pessoas, das mais variadas áreas de intervenção social e de saúde da Misericórdia do Porto, naquilo que nós chamamos nove palcos improváveis.
Portanto, envolvemos os seniores dos nossos lares de idosos, envolvemos pessoas com deficiência, envolvemos mulheres vítimas de violência doméstica, pessoas com algum tipo de patologia a nível da saúde mental e desenvolvemos 25 miniprojectos, conjugando o trabalho técnico de psicólogos e de artistas plásticos.
Como referiu, a Santa Casa da Misericórdia do Porto tem uma casa de acolhimento há cerca de 20 anos. Nesta altura, quantas mulheres estão nesta casa? E que história mais relevante nos pode revelar destas pessoas?
Lamentavelmente, a Casa de Santo António está sempre lotada. A nossa capacidade é de 15 mulheres, entre mulheres e crianças. A utilização média são cerca de oito mulheres e sete crianças. Portanto, normalmente temos sempre mães com filhos.
As histórias têm sempre elementos comuns. Portanto, estamos a falar aqui de situações de fim de linha, situações de violência acumulada há já vários anos e de mulheres que estão no seu limite.
Ou seja, se houvesse maior lotação, mais pessoas poderiam estar nessa casa?
Lamentavelmente, nós encheríamos outra casa-abrigo com facilidade.
E de que forma é que são sinalizados estes casos? Como chegam à Santa Casa da Misericórdia do Porto?
A casa de Santo António faz parte da Rede Nacional de Proteção à Mulher Vítima de Violência Doméstica. Os casos são sempre encaminhados pelos serviços de primeira linha, devidamente identificados. Pela APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), pelas forças de segurança e o encaminhamento é sempre feito por esta via. Tudo está devidamente estandardizado e protocolado. E o que também vos posso dizer é que, mal há uma autonomia, no dia a seguir esta vaga está a ser novamente preenchida.
Os números, infelizmente vão crescendo e permanecem nas estatísticas. O que é que estes números dizem da nossa sociedade, das vítimas que vão acontecendo todos os anos?
Estes números refletem uma matriz de realidade, como penso que é partilhado por todos. Refletem um longo trabalho que ainda há a ser desenvolvido. Nós não poderemos considerarmo-nos um país civilizado enquanto tivermos a necessidade de colocar mulheres e crianças num processo de clandestinidade para fugir de um agressor.
Ainda por cima, este sistema que nós temos desenvolvido de proteção à mulher vítima de violência doméstica é altamente penalizador, é altamente re-vitimizador. Entendendo-se a pragmaticidade da necessidade de retirar a mulher do contexto violento, reparem no quão violento também é ter de sair de casa, com basicamente aquilo que puderem trazer nas mãos e serem deslocadas para uma outra zona do país e em clandestinidade: a senhora vai estar agora aqui, com os seus filhos num período de seis meses, ou eventualmente a um ano, vamos ajudá-la a começar de novo. Quem é que quer começar de novo aos 40 anos? Numa outra zona geográfica, onde não tem uma rede de suporte onde não tem o apoio necessário?….
Mas foram pensadas outras soluções? Haverá hipótese de outras soluções?
Há outras soluções. Penso que estamos num momento interessante da nossa maturação do sistema de apoio à vítima. Nem todas as situações de violência doméstica necessitam desta clandestinidade. Nem todas as casas abrigo necessitariam de ser sigilosas. Poderão, e atrever-me-ia a dizer, deverão ser encontradas outras soluções que passem por respostas mais comunitárias. E também a intervenção com o agressor ser mais intencional.
Nós centramos muito a intervenção na mulher vítima de violência e ainda muito pouco no agressor. Enquanto o agressor não for devidamente penalizado, devidamente reabilitado, o nosso sistema vai continuar a ser muito deficitário.
A violência é resultado de toda uma educação disfuncional que nós vamos permitindo coletivamente também.
Justiça é demasiado permissiva para com o agressor?
É excessivamente branda claramente. Aliás vêm a público de vez em quando, ou melhor: com muita frequência, as sentenças judiciais que são de lamentar. Portanto, enquanto formos brandos e enquanto não metermos realmente a colher entre marido e mulher, vamos continuar a ter problemas.
Para além dessa violência física, que comportamentos que agressões verbais é necessário sinalizar?
É difícil responder a essa pergunta, porque a resposta será longa. Mas fundamentalmente, sem querer fugir à sua questão, eu diria que tem de ser estimulada uma cultura de respeito. E o desrespeito, a violência verbal, a ameaça é tão ou mais impactante que a violência física. Sem querer desvalorizar de forma alguma violência física, mas a componente física, dependendo da intensidade, acaba por ter um princípio, meio e fim. A violência emocional é mais insidiosa. Acaba por ser mais difícil de definir e acaba por ter impactos mais irradiados. E, portanto, a cultura de respeito tem que ser estimulada e tem que ser efetivada. Portanto, a agressão verbal não pode ser tolerada, não é apenas a nível da relação conjugal… Não pode ser tolerada nas escolas com as crianças, não pode ser tolerada no nosso quotidiano.
No namoro?
Obviamente. Porque a violência em contexto doméstico não surge ‘per si’, não surge naquele momento. É o resultado de toda uma educação disfuncional que nós vamos permitindo coletivamente também.
E que vítimas são também os filhos, jovens e crianças que vivem em contexto de violência?
Estamos a falar de vítimas diretas e indiretas. As crianças, os filhos podem ser vítimas também diretas por parte do agressor, serem alvos diretos dessa violência, ou indiretos. Portanto, mesmo que a violência não seja endereçada ao filho e seja endereçada a mãe ou pai, acabam por não ter as competências necessárias para poder processar emocionalmente tudo aquilo que veem e as consequências nos filhos são, na maior parte das situações, altamente impactantes e traumáticas.
Portanto, têm que ser também devidamente endereçadas e trabalhadas, porque poderemos estar aqui a falar de crianças que vão ter sequelas educacionais, vão ter sequelas que depois se podem transformar também elas próprias em disfunção. Seja aprendendo a lidar com a agressão enquanto comportamento normativo. Portanto, a agressão faz parte dos padrões normais de funcionamento e vai ela própria também tornar-se aqui, de alguma forma, um agressor. Nem todas as crianças que são vítimas, são agressores… Mas fundamentalmente estamos aqui a permitir um contexto de disfunção extremamente negativo. Portanto, as crianças devem ser alvo de atenção muito particular.
E existe a ideia de que a pandemia possa ter feito aumentar esta realidade da violência doméstica. Da realidade que conhece, acredita que possamos estar perante a possibilidade de um aumento destes fenómenos de violência?
Lamentavelmente os dados vão-nos dando esses indicadores. A pandemia não veio ajudar em nada este processo. Particularmente no momento inicial em que tivemos que ficar enclausurados em contexto doméstico, os horrores que foram vividos por parte das mulheres que nessa altura não conseguiram fugir (digo mulheres, também há homens, mas efetivamente são o grande número, mas não quero também omitir aqui outras e outras vítimas). O não poder fugir ou estar preso durante meses com o agressor, sem ter inclusivamente a possibilidade de poder ir ao trabalho onde acaba por ser aqui um contexto de desregulação, foi terrível.
Os dados vão nesse vão nesse sentido. As narrativas que nos são apresentadas pelas mulheres vítimas de violência que acolhemos corroboram exatamente isto que afirmei. Portanto a pandemia foi altamente desastrosa e este a este nível.
É o que temer agora com o agravar da situação socioeconómica do país, com o aumento da pobreza. Aqui uma exposição maior a este risco?
Claramente estamos a falar de fatores de risco evidente. Apesar da violência doméstica ocorrer em qualquer contexto sociocultural e socioeconómico, a pobreza é um fator de risco. As vítimas acabam por não ter tantos recursos para poder encontrar alternativas. O que me parece importante é também ajudarmos a passar a mensagem de que existem alternativas e que, independentemente do contexto onde a vítima esteja, há alternativas e existem entidades que estão aqui dispostas a ajudar 24h00 que é possível, independentemente da situação em que a pessoa se encontre, ajudar a desenhar um outro futuro, uma outra alternativa. Há soluções e possibilidades e estamos aqui também para oferecer uma mão institucional nesse sentido. Nós trabalhamos no terreno.
Os dados do portal do Governo revelavam, até 30 de junho, 17 vítimas (16 mulheres e uma criança). Sem querermos fazer futurologia, não erraremos muito se dissermos que os números possam ser, no final do ano, substancialmente superiores…
Eu gostaria de dizer que atingimos o limite, mas não, não acredito! E sim, sem fazer futurologia, mas baseado nos padrões de anos anteriores, isso indica. Portanto, os números de certeza que aumentaram e são trágicos.
E isto é o que me leva a colocar sempre a questão na prevenção. Nós estamos falar de um trabalho geracional que temos à nossa frente. E, enquanto não fizemos uma verdadeira educação para o respeito pela diferença, pelo outro, em que seja realmente promovida uma cultura de aceitação, de respeito interpessoal, não iremos ter aqui diferenças significativas. Na minha opinião, ainda é uma lacuna social que temos.
Ou seja, em Portugal falta uma política de educação, de alerta e de prevenção do fenómeno?
Eu diria que sim. Penso que ainda, apesar de nos últimos anos haver esforços a nível da educação para a cidadania, parece-me que ainda há um trabalho grande a ser feito.
Colocaria a questão da violência no contínuo fenomenológico. Ou seja, a violência doméstica é um tipo de violência que efetivamente temos vindo a destacar, pelos dados trágicos que que que vêm a público, mas, como dizia há pouco, não é um fenómeno que aparece numa dada altura do nosso desenvolvimento pessoal. Tem a ver com todo o processo cultural e educativo em que no encontramos. Neste sentido, a solução para as questões da violência têm de ser educativas, têm que ser preventivas e passam obrigatoriamente por uma cultura de respeito. E nós estamos longe de uma cultura de respeito. Basta olhar para o contexto escolar neste momento, as relações com os professores, todas estas notícias que vêm a público: enquanto nós normalizarmos e permitirmos todas estas disfunções, não podemos depois surpreender-nos com os dados que apontava. Umas coisas estão interligadas com as outras e a violência doméstica é lamentavelmente um dos corolários da disfunção anterior. Temos que trabalhar na fonte, na origem.
As redes sociais ajudaram essa disfunção?
Essa é uma pergunta provocatória… Não quero diabolizar de forma algumas as redes sociais, que são ótimas para algumas coisas, são terríveis para outras, como qualquer contexto. As redes sociais podem ajudar a aumentar a velocidade da comunicação, têm estado associadas a fenómenos de bullying e a fenómenos de reprodução de comportamentos disfuncionais, mas eu diabolizaria as redes sociais. O que eu acho é que, como instrumento novo, se calhar, do ponto de vista social, ainda não nos adaptamos, ainda não desenvolvemos estratégias educativas para lidar com as com as redes sociais. Portanto, eu penso que o problema não está nas redes sociais, está no nosso comportamento e as redes sociais potenciam ou não. Temos de encontrar formas de as integrar nestes processos educativos, de gestão quotidiana.
Se passarem pelas redes sociais iniciativas como esta da Santa Casa da Misericórdia do Porto, por certo que vamos combater a violência também. E perguntava-lhe: o que depende da sociedade civil, das associações, de organizações de moradores, também de paróquias? Nós vemos, por exemplo, o Papa Francisco a dizer “basta” a violência contra as mulheres.. O que está ao nosso alcance?
Este é um problema que depende de si: depende de si, depende de mim, depende de todos nós. Todos nós temos um papel fundamental na gestão deste problema. Em primeiro lugar, garantindo que temos as lentes certas à nossa frente, que não são turbas, que conseguem realmente ver o que está a acontecer. E se nós virmos algo a ocorrer, a violência ou alguma disfunção, não temos de ter qualquer problema em sinalizar, em reportar. Este ainda é um problema: “porque isso não tem nada a ver comigo, porque eles estão casados há pouco tempo, estão casados há muito tempo, acabaram de namorar, já namoram há muito, ainda estão a encontrar-se, não vou intrometer…” Eu tenho de me intrometer!
Este é um problema que também é meu e, portanto, cada um de nós tem um papel ativo, quer estando de olhos abertos, mas fundamentalmente promovendo a discussão acerca do problema da violência doméstica. Provocatoriamente, diria que a violência doméstica tem de ser normalizada. Ou seja, nós temos de normalizar a discussão acerca da violência, acerca de todas estas problemáticas para realmente podermos encontrar em nós e ajudar a encontrar nos outros estratégias alternativas. E enquanto isto não for feito com esta normalização, vamos sempre olhar para este fenómeno como sendo um fenómeno de exceção, um fenómeno que não ocorre comigo, mas ocorre aqui ao lado e ao qual eu tenho aqui uma relação de alguma ambivalência e de alguma equidistância. Não pode ser um fenómeno equidistante! Tem de ser um fenómeno participativo e resolutivo.
Cada um de nós pode e deve intervir e a intervenção passa por esta reflexão: como é que eu funciono em situações de stress, quais são as minhas estratégias, o que é que me leva a ferver e de que maneira que eu posso encontrar aqui estratégias alternativas. E, nesse sentido, desenvolver alternativas, comportamentos alternativos e encontrando emoções mais salutares para isto que vou sentindo.
Não podemos olhar para este fenómeno como sendo um fenómeno alheio, que é do outro. É um fenómeno nosso: todos nós somos violentos em alguma e de alguma forma, todos nós somos agressivos em algum momento. De que forma é que podemos encontrar alternativas? De que forma é que nós podemos ir moldando estes nossos comportamentos? E esta é uma discussão que tem de ser alargada e tem de ser e tem que ser normalizada.
A violência contra as mulheres, lamentavelmente, é o pináculo de todo este fenómeno e portanto de uma vez por todas tem de ser endereçado abertamente. E o papel que nós individualmente temos será um bocadinho por aqui… Do ponto de vista institucional, as instituições têm o dever de ser intolerantes em relação às questões das violências, estejamos a falar de que tipo de instituição for, não estamos só a falar de instituições de apoio às vítimas de violência doméstica, mas todas as instituições sociais, e devem também tentar encontrar alternativas, aquilo que falávamos há pouco do acolhimento residencial, que eu chamo de clandestino. Há diferentes formas de ajudar e de apoiar e, portanto, podemos também, dentro da lógica de inovação social, tentar encontrar novas soluções.