Carla Santos, diretora-executiva da ‘Capacitare’, mediadora sociocultural no Centro Nacional de Apoio ao Imigrante, fala em entrevista conjunta à Renascença e à Ecclesia sobre o racismo que encontra “todos os dias”
Licenciada em antropologia Social e habitual colabora da Obra Católica das Migrações, Carla Santos não concorda com o líder do PSD que no início da semana defendeu que não existe racismo na sociedade portuguesa.
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Como se tem desenvolvido o trabalho da Capacitare, de que forma promove a integração e como está a ser o trabalho em países como Angola, Moçambique ou Cabo Verde?
A Capacitare é uma empresa social, que emerge de uma experiência, desde 1996, junto das comunidades migrantes em Portugal, maioritariamente cabo-verdianos, num bairro, áreas urbanas consideradas ilegais. Construções clandestinas, em que as pessoas se vão fixando e onde foram construindo a sua vida, com alargamento familiar. Foi nesse processo que fui trabalhando, como voluntária, e me fui profissionalizando cada vez mais nestas temáticas. Senti que era uma missão que tinha de cumprir, ajudar outros irmãos, afrodescendentes, como eu.
É sobretudo um trabalho de integração?
Sim, essencialmente ao nível da integração. Surge desta experiência, de muito jovem: eu comecei nestes trabalhos com 16 anos, a construir uma estrada comunitária, a colocar instalação de água e luz em casa das pessoas. Ao contrário do que as pessoas imaginam, que as comunidades querem viver dos subsídios e que querem estar à margem, essa nunca foi a nossa experiência. Cada um tem de ter o seu contador de água luz, cada um vai pagar os seus consumos. Foi esse processo que nós fomos fazendo, ao longo dos anos. Acima de tudo, nunca alimentar esta ideia do assistencialismo, que somos uns coitadinhos, nunca foi esse o espírito.
Como é que olha para fenómenos como o Bairro da Jamaica?
Esta muito relacionado com vulnerabilidades, clandestinidades, desde o processo migratório, as dificuldades que as pessoas já têm nos seus países de origem e procuram melhores condições de vida, por causa da guerra, questões de formação, económicas. Muitas vezes, esses processos começam de uma forma inquinada e depois teremos problemas sociais graves nos países de destino. Aí vamos falar sobre a participação política, a justiça, educação, habitação.
As pessoas se não têm muitas possibilidades vão fixar-se em locais mais acessíveis e quando isto acontece – não estamos a falar de uma ou duas pessoas, estamos a falar de massas -, começamos a construir vulnerabilidades e barris de pólvora, concentrados. Por isso temos a Jamaica e temos muitos outros, como no Porto – não estamos apenas a falar de comunidades africanas, há outros bairros municipais, que são necessários, mas em que não há uma política de habitação integrada e concertada. Tiram-se as pessoas de um determinado sítio e colocam-se na vertical, sem ser feito um trabalho de base.
Estas questões criam sempre grandes tensões a nível social, político. O tema do racismo tem sido negligenciado em Portugal, é um fator de preocupação?
É. Gostaria de comparar com outro fenómeno social, como o alcoolismo: um alcoólico que não se assuma como tal, não há terapia, não há tratamento. Não é possível. Quando estamos a falar dos fenómenos do racismo, se não assumirmos, se não aceitarmos que existe – a nível estrutural e institucional -, que temos um preconceito que vai sendo alimentado, de geração em geração, estamos simplesmente a não admitir que é preciso fazer alguma coisa.
Tivemos a apresentação na Assembleia da República sobre o racismo em Portugal, temos um instrumento, científico, que valida e vem confirmar que isto não é alguma coisa de jovens ou de loucos…
Há nalguns setores a ideia de que existe um certo exagero ou dramatização do problema…
É um assunto sensível, porque temos de encarar a verdade, tocar na ferida, dizer: “Sim, nós somos [racistas]”. E quando o fazemos, temos dois caminhos a seguir: manter-nos assim, não fazendo nada; ou então, realmente, pensar em políticas públicas diferenciadas para que se possa resolver um problema estrutural, nomeadamente ao nível da falta de representatividade de comunidades que são fortemente violentadas.
Alguns poderão dizer que as pessoas se “põem a jeito”, mas temos de separar: há maus cidadãos, maus profissionais, e há outros que não são. Vivemos num país democrático, tem de haver sanções para uma situação, mas nunca deve ser feito pela minha cor da pele, ou porque eu vivo num determinado bairro. Agora, obviamente, quando se concentram muitas vulnerabilidades e muitos fatores de risco, tudo é empolado. Não podemos negar que isso existe, que há bons e maus profissionais, bons e maus cidadãos, o que é importante é pensar numa forma diferenciada.
Pensemos no que aconteceu agora na pandemia, quando os alunos tiveram de ficar confinados, com aulas à distância. Não estou a dizer que não foi uma boa medida, mas quando pensamos em medidas “standard”, partimos do pressuposto que toda a gente tem um computador em casa, uma família estruturada, mas esse padrão não é a realidade de toda a sociedade portuguesa. Este é um pequeno exemplo, porque a partir daqui estamos a limitar grupos, famílias, de ter acesso a bens e serviços que são fundamentais.
Se lhe perguntar, de forma direta, se em Portugal, na sociedade portuguesa, existe racismo, a resposta é sim?
Claro, claramente que sim.
Que comentários lhe merecem os comentários do principal partido da oposição [Rui Rio], segundo o qual não há racismo na sociedade portuguesa?
Não sei onde vive nem por onde anda quem tece essas considerações. Respeito essa posição, provavelmente fruto de um contexto muito fechado, mas não é verdade: todos os dias, nós os interventores sociais, técnicos, lidamos com estas realidades. Pior: temos uma mutilação emocional também das nossas comunidades, a nível da autoestima, da insegurança.
Muitas vezes os jovens vivem um histórico, diria, de alguma opressão, de juízos de valor, e a condição humana faz com que nunca nos queiramos colocar em situações nas quais temos de lidar com um “não”, com a rejeição. A partir do momento em que isso acontece, vou alimentar o querer-me demitir, o não estar, porque participar e reivindicar, muitas vezes, vai expor-me à rejeição. Alguns protegem-se, outros não, daí que nós chamemos a alguns movimentos radicais, a outros conservadores, moderados. Todas estas são formas de luta, o fundamental é este apelo: temos de assumir que o racismo estrutural e institucional existe, existe preconceito, e a partir daí começar a pensar em medidas cirúrgicas. Quem é interventor social sabe o que é a “árvore dos problemas”: para cada problema, tem de haver uma solução e uma ação concreta. Não meter tudo no mesmo saco.
Em Portugal tivemos, nos últimos tempos, a morte em Bragança do jovem cabo-verdiano Giovani Rodrigues; neste momento há oito detidos no âmbito deste processo. No início de abril, três inspetores do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) foram detidos por suspeita de homicídio de cidadão Ucraniano no aeroporto de Lisboa. São situações muito diferentes ou encontra semelhanças, nestes dois casos?
Encontro semelhanças naquilo que importa falar, que é a vítima. Estamos a falar aqui de dois cidadãos estrangeiros, migrantes, esse é o denominador comum. Não quero comentar as convicções, as causas, o que pode ter levado a esses desfechos, porque existe a Justiça, vivo num país democrático e acredito nela. Sinto é que é muito morosa para alguns e aí ficamos com alguma sensação de impunidade.
Os corporativismos também existem e há algumas profissões que acabam por ser cada vez mais corporativas, e isto é um problema estrutural que tem de ser revisto.
Há preocupação, por exemplo, com a influência da extrema-direita na Polícia?
É uma das preocupações, pode ser uma realidade, mas eu diria que, como em todas as profissões, quando, por sistema, tenho sempre um perfil de pessoas que surgem quando sou chamado a intervir – polícia, médico, o que for -, acabo por criar uma crença de que aqueles grupos são todos daquela forma. A Polícia, as forças de intervenção, de segurança pública, quando são chamadas, são-no em situação de crise. Estamos a falar de seres humanos, que acabam por criar e alimentar esta crença de que aquelas pessoas são todas daquela forma, rotulando-as. Isto é um problema, também nos estabelecimentos prisionais, nas penas que são aplicadas a determinados grupos, que são sempre mais pesadas. É interessante olharmos, avaliarmos, porque isto existe. Que crença é que está a ser instalada na Justiça, que requer reparação, para que realmente se exerça Justiça?
A nível mundial, a extrema-direita começa a ganhar espaço, e isto é preocupante, porque ganha espaço em todas as frentes. Nesse aspeto, considero que é urgente tomar providências. Também a nós, jovens afrodescendentes, é exigida uma competência e uma habilidade para podermos fazer frente a este flagelo.
Já este ano tivemos um caso que gerou grande comoção, envolvendo um jogador do Futebol Clube do Porto, Marega. Continuamos a olhar para este debate sobre o racismo a partir de vagas, de acontecimentos, de crises, de momentos muito fortes de comoção que também passam muito depressa?
Concordo, são vagas, diria quase incendiárias, e depois parece que tudo se esquece, durante um período de tempo. Este é um problema fundamental, não há nenhuma luta que possa ser feita se nós também não fizermos parte desse processo, com a nossa agenda própria, a todos os níveis. Precisamos de representatividade efetiva. Nas eleições autárquicas, por exemplo, muitas vezes acabamos por ser marionetes, os líderes das comunidades convidam estes jovens para fazer parte de grupos, mas por um período de tempo muito específico, depois as coisas esquecem-se.
Neste aspeto, em Municípios com uma forte presença africana – Amadora, Loures, Lisboa – não temos essa representatividade. E quando não temos essa representatividade, é difícil colocar na agenda estes temas, para que sejam debatidos. Para muitos líderes partidários, não existe racismo, não faz parte do seu contexto, esses tópicos nunca são trabalhados de forma séria.
A legislação nacional é suficientemente robusta para enfrentar o fenómeno?
Nós somos considerados o segundo melhor país da Europa, a nível das políticas de integração. O problema é que temos as melhores leis, mas depois a operacionalidade não funciona. Dando um exemplo concreto, com as medidas da Covid-19, relativas ao lay-off: temos muitas comunidades estrangeiras que tinham processos pendentes no SEF e não tinham título de residência. Essas pessoas ficariam excluídas automaticamente, não poderiam aceder ao subsídio de desemprego, a medidas sociais para responder a esta situação que assolou todas as famílias residentes em Portugal.
Nestas circunstâncias, nós, vários movimentos, tivemos de chamar a atenção mais do que uma vez, porque os nossos governantes não têm noção do país em que vivemos. Temos um SEF estrangulado, com processos que demoram um ano ou mais; pessoas que estavam a desempenhar funções e se viram impedidas de o fazer não iriam ter direito a nada, mas ninguém pensou nisto. Tivemos de chamar a atenção, porque iríamos ter muitas famílias numa situação ainda mais vulnerável.
A nossa lei não é o suficiente. Temos alguma legislação que vem evoluindo, de forma favorável, mas o problema não está na lei, está na base. Os Centros de Saúde vedavam-nos, não nos deixavam tirar cartão de utente, mas tínhamos orientações que eram o oposto. Isto parece quase um país insano, em que se diz uma coisa e se faz de outra forma. É perturbador, noutro aspeto.
A Igreja Católica, o Papa em particular, têm um discurso contra o populismo e a xenofobia: esse discurso tem tradução prática nas comunidades ou é visto como um tema estranho à vivência da fé?
Eu acho que já não passa a ser um tema estranho. Estamos a viver uma época muito mais espiritual e o Papa Francisco veio trazer isto a todos – crentes e não crentes – e tem vindo a ganhar cada vez mais expressão. As comunidades africanas são, muitas delas, católicas, e tem havido este processo da reconciliação, de vermos as nossas próprias sombras, as nossas periferias, como diz o Papa, aquilo que nos provoca o desconforto, alguma repulsa. Eu faço este caminho, de integração espiritual, de encontrarmos paz. Não vivemos num país de luta armada, mas não estamos em paz, há quem viva estas dificuldades de forma diária, permanente.
Não é possível falar-se em integração enquanto tivermos pessoas indocumentadas. Não é possível, não se consegue ajudar a encontrar emprego, habitação.
Fenómenos como esta pandemia podem alimentar a ideia de que é necessário criar países-fortaleza, capazes de se defender das ameaças do exterior, levando a uma atitude de desconfiança e de rejeição por quem chega de outros territórios?
Sim, infelizmente. Fui acompanhando as notícias, e também no exercício das minhas funções, e vemos que o medo provoca isto: quando olhamos para o próprio umbigo e sentimos que estamos numa situação de alguma deficiência económica, social, isso faz com que haja uma ala em que as pessoas preferem fechar-se e criar esta fortaleza, pensar só em si, e não pensar no global.
Em relação a esta pandemia, acho que quando não prestamos atenção aos sinais, o universo depois encarrega-se de nos mostrar isto. Sempre houve grupos muito vulneráveis, a viver com muita limitação, muita privação, e este vírus foi muito “democrático”, de pessoas mais abastadas a menos abastadas. Veio fazer com que as pessoas sentissem o que é a privação diária.
É preciso haver um trabalho, das confissões religiosas, interventores sociais, todos, para convocar as pessoas a esta reflexão mais profunda, de perceber como é que queremos começar a viver. Costumo dizer que quem é crente, quem acredita, conseguirá viver de uma forma mais equilibrada, mais serena, então acho que é preciso também trazer esta crença positiva e expansiva de que é possível construir algo melhor, fazendo a diferença dentro do nosso contexto, do nosso ambiente.