Talvez precisemos ser como crianças…

Lígia Silveira, Agência ECCLESIA

O livro «A Papoila Encarnada», da autoria de Ana Patrícia Fonseca, nasceu da tristeza, da ausência de uma racionalidade que explique a surpresa; nasceu da necessidade de «libertar os sentimentos e as emoções que o acontecer da vida proporciona viver»; nasceu de forma inesperada, num local inusitado, e acabou por se apresentar de forma evidente – «O seu caule era firme e as raízes agarradinhas à terra que a formou».

Podemos pensar no pai da autora – cujo falecimento motivou a escrita – ou pensar na papoila encarnada que nasceu na terra por cima do seu corpo e que Ana Patrícia Fonseca, numa visita, ali encontrou.

A Biologia diz-nos que há seis espécies de papoilas nativas em Portugal, sendo que a papoila-vermelha ou papoila-dos-campos, é a mais comum e abundante. O caule, esguio e coberto por finos pelos rígidos, se for quebrado, liberta um látex branco que rapidamente sela a ferida e ajuda na cicatrização.

No Egito era designada pela ‘planta da alegria’ pela sua capacidade de reduzir a dor e acalmar. Na Grécia antiga, a papoila é associada ao deus do sono, Morfeu, e colocada nos túmulos para honrar os mortos. Hoje, para muitos, é símbolo da paz.

O poeta e místico, do século XVII, Angelus Silesius, escreve num poema:

«A rosa é sem porquê; floresce porque floresce,
não cuida de si própria, não pergunta se a vemos»

Se pensássemos que tantas papoilas surgem porque nascem à beira da estrada, em terrenos incultos, searas, prados, pastagens e olivais. Elas nascem e não perguntam se as vemos, também de tão frágeis não cuidam de si, mas oferecem beleza quando o nosso olhar as cruza e, diz-nos a Biologia, que o seu caule ajuda a cicatrizar feridas.

Da necessidade de colocar no papel tudo o que sentia, as palavras da autora procuram fazer perdurar a memória, os gestos, a partilha, a proximidade, a rotina e fazem-nos confrontar com a saudade, porque também tornam evidentes as qualidades da pessoa: «Tímida e pequena, grandeza, bondade, generosidade, trabalhadora, honrada, retidão, decidida, sábia, paz, mansidão, serenidade» – «Era, de verdade, uma papoila boa», resume.

Volto ao poeta Angelus Silesius para partilhar outro poema seu: ‘Deus fora da criatura’:

«Vai onde não podes; olha onde não vês;
Escuta onde nada tine: estarás onde Deus fala».

A dor, o inesperado, a não compreensão, leva-nos a lugares inaugurais e, talvez aqui, trata-se do exercício de confiança – ir onde não sabemos onde vamos chegar; olhar o que aparentemente não tem significado, ou não se consegue entender; estar atento a um estado de alma que parece não ser o nosso, onde parece que não nos reconhecemos. Mas diz-nos o poeta que em tudo isto – interrogações, indefinições – Deus falará.

A palavra nasce onde tantas vezes nos perdemos e foge de nós, se fugirmos do silêncio. Elas aparecem, se calhar tímidas ao início, magoadas – com certeza – mas tornam-se inteiras e cheias quando apresentam um significado, e trazem a paz quando se aproximam do que sentimos.

Penso que «A Papoila Encarnada» revela esse exercício.

Quando tudo o que lemos não basta, não se aproxima do que sentimos, aconselha ainda o poeta e místico alemão:

«Caso queiras ler mais, vai, torna-te tu próprio a escrita e a essência». Assim a autora o fez com esta «Papoila Encarnada».

A escritora Etty Hillesum, que morreu em Auschwitz, procurou durante o tempo em que viveu num campo de extermínio encontrar beleza e humanidade. E ela dizia – «Acho a vida prenha de sentido, apesar de tudo».

A Etty aprendeu a retirar-se, a ficar imóvel e a escutar: «A minha vida tornou-se um diálogo ininterrupto contigo, ó Deus, um grande diálogo. Às vezes, quando me posto nalgum canto do campo, com os meus pés plantados na tua terra e os meus olhos erguidos para o teu céu, o meu rosto fica inundado de lágrimas, lágrimas de profunda emoção e gratidão».

Trata-se de abraçar o silêncio e deixar que as palavras ganhem expressão, sem medo da dor que elas provoquem, e estar muito atento ao que os sentidos nos dizem. A Etty quis mostrar, que na mais funda dor, há qualquer luz, qualquer rasgo, qualquer lembrança que consola e que evidencia que Deus está.

Precisamos de tempo para que seja o silêncio a pontuar o coração e a mente, para ali colocar as palavras certas, aquelas que nos aproximam do inesperado, do que está fora do nosso alcance.

É através do silêncio que ouvimos. Se nos calarmos, no mesmo instante, escutamos o silêncio e aí, no silêncio onde nada tine, a voz de Deus.

No livro «A Papoila e o Monge», o poeta José Tolentino Mendonça tem um poema que diz:

«O silêncio só raramente é vazio
diz alguma coisa
diz o que não é»

Também a folha em branco mostra o silêncio mas chama, não a preenchê-lo só porque sim, mas a dar-lhe nomes.

O livro «A papoila encarnada», que nasceu desta folha em branco, convida-nos a integrar a morte pela boca das crianças – nas suas palavras sinceras, vemos as nossas perguntas:

«Porque é que a papoila não esperou mais duas semanas, para acompanhar o meu aniversário?»

«Porque é que ela não foi ao médico mais cedo?»

«Eu só vivi oito anos da minha vida com a papoila encarnada. Isso é tão pouco».

Das perguntas passamos aos caminhos que encontramos para abraçar a saudade: como escrever um postal, uma carta ou manter uma fotografia perto, usar um objeto, olhar para o céu, dedicar um golo.

A surpresa e incompreensão de três crianças, as suas perguntas e forma de entendimento, talvez seja a melhor forma de nos aproximarmos do que permanece desconhecido.

«Vou escrever a encarnado para ela ver e gostar lá no céu»; «vou escrever e dizer tudo o que me faz lembrar a papoila encarnada»; «Nos gostávamos tanto da papoila encarnada, e ainda gostamos, só que não conseguimos ver o seu corpo, só através da nossa memória»; «o corpo é apenas para proteger a sua alma, que nunca desaparece».

Talvez precisemos ser como crianças para compreender o que não conseguimos explicar. Talvez precisemos escrever como elas, e para elas, para que de forma gradual possamos respirar, apaziguar, integrar.

Não perguntes porque partiu; pergunta antes o que a pessoa te deixou. E aqui, na «Papoila Encarnada» encontramos isso: «Semeou brandura, serenidade, paz, paciência, bondade, nobreza, honestidade, retidão, firmeza, humildade, simplicidade, doçura, beleza, generosidade».

«Tu não irás para o céu
Se tu próprio antes disso não fores já um céu vivo», escreve ainda Angelus Silesius.

Ana Patrícia Fonseca, com este livro, deixou escrito o pequeno céu que conheceu e, com esta ‘Papoila encarnada’, mostrou-nos também o céu que já vivemos e o mesmo que aguarda por nós.

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