Padre Vítor Pereira, Diocese de Vila Real
Genoveva do Espírito Santo (nome fictício) é uma figura conhecida do bairro da Boa Fama. Já é viúva há dezena e meia de anos, nunca mais se deixou enredar por amores («tive um e chegou-me»), anda sempre bem vestida e perfumada, com um vistoso fio de ouro no pescoço, onde exibe a figura do grande amor da sua vida, que visita diariamente no cemitério, homenageando-o com algumas orações e sentidas lágrimas. Quando o padre Anacleto vem ao bairro celebrar a missa, ela não falha: apresenta a sua intenção e tem sempre terços e outros objetos religiosos para o senhor padre benzer. Já se lhe ouviu dizer muitas vezes, altiva e convicta: «sabe, padre Anacleto, a minha família sempre foi muito religiosa. Como não podia deixar de ser, eu também sou.» Não falha uma missa, festa ou romaria.
Maria Antonieta da Purificação (nome fictício) é uma boa mãe de família e uma avó carinhosa. Não há maior alegria para ela do que ver os netos irrequietos à volta da mesa e ela a contemplá-los embevecida, com um sorriso de orelha a orelha, como um ourives contempla as suas melhores joias. Educou os seus três filhos a ir à missa todos os Domingos e à noite rezava o terço com eles, na companhia do marido, o que tenta fazer com os netos, mas com pouco sucesso. Tem um altar na sala de estar, onde vive as suas devoções e alimenta a sua piedade, com uma bela cruz de prata e várias imagens de santos, quadros com rezas, com uma vela sempre a arder. Todas as manhãs e noites passa por ali, para consolo da sua alma. Não há ano que não faça uma promessa, para ter a benevolência de Deus e dos santos. Está sempre prestável para ajudar o padre Agripino, a quem assegurou: «A minha mãe era uma mulher muito religiosa. E eu também gosto de ser, gosto da Igreja, e morrerei como mulher de Igreja. Não consigo viver sem fé».
De certeza que conheceremos pessoas assim. Não têm nada de errado. Conhecemos muito bem esta educação e cultura católicas, que foram o nosso berço. E muito temos a agradecer. Não tenho qualquer dúvida de que serão pessoas de verdadeira fé, boas e devotas, que procuram ser fiéis à tradição e aos costumes católicos, e que tentam pautar a vida pela boa educação religiosa católica que tiveram. O problema é que, muitas vezes, somos educados a ser muito religiosos e pouco cristãos, o que não pode acontecer. É um salto ou um passo fundamental que muitos cristãos católicos precisam de dar. Há por aí religião a mais, com muitos atos e práticas religiosas ancestrais, embrulhadas com muita superstição e espírito interesseiro, e cristianismo a menos. E não faltam «católicos», que ignoram o que é ser cristão e viver como tal. Ser um bom cristão católico não é ser só fiel a regras, práticas e costumes que a Igreja propõe, férreo cumpridor de ritos e cerimónias e aficionado de devoções e rezas, mas pautar a vida pelos critérios, valores e sentimentos de Jesus Cristo, pela fidelidade ao Evangelho. Corremos o risco de se cumprir em nós o que o padre António Vieira já alertava no seu tempo, «sermos católicos de dogmas, mas hereges de mandamentos», ou seja, acreditar numa série de verdades e praticar uma certa ritualidade e disciplina sacramental, mas depois viver ao contrário daquilo em que se acredita e se afirma diante de Deus, separando-se o culto da vida e a vida do culto, a fé e a doutrina da ética e da moral que devemos praticar todos os dias. É uma contradição inaceitável, que Jesus condenou severamente no seu tempo.
O divórcio entre o culto a Deus (ser religioso) e a vida (ser mesmo cristão) chega a atingir o escândalo, como descreve o escritor católico, João da Silva Gama: «Temos muito povo cristão que ainda está por evangelizar: para ele, a religiosidade só funciona em certas alturas da vida, como o nascimento, casamento e missa aos Domingos. Nos intervalos, o tempo mais importante da vida, há cristãos que chegam a cometer as mais incríveis barbaridades: caluniar e difamar sistematicamente o vizinho, fazer justiça por mãos próprias, à enxada ou linchamento, só porque lhe tiraram um palmo de pinhal ou da horta. No dia seguinte, vemo-los na missa com uma devoção de estarrecer.»
Não temos de ser muito religiosos, enquanto meros consumidores e praticantes de religião, trazendo para a nossa relação com Deus os mesmos hábitos, práticas, ritos, medos e superstições que todas as religiões sugerem ou impõem aos seus sequazes, ou o «animal religioso», que habita o ser humano, dita, sempre em busca de controle e de segurança. Alguns autores católicos até defendem que Jesus Cristo não quis fundar uma religião, tal como é conhecida, quis fundar um movimento de discípulos, que perpetuaria no mundo a sua forma de estar e de viver, contruindo e testemunhando o Reino de Deus, de acordo com os princípios e valores do Evangelho. “Religiosizar” a fé cristã talvez não tenha sido um bom caminho. O que temos de ser mesmo é cristãos de verdade, imbuídos do Evangelho na mentalidade e no coração, com uma postura digna de cristãos nas relações humanas, na família, no trabalho, nos negócios e restantes âmbitos da vida humana e social, não descurando, certamente, a vida litúrgica, a oração e o encontro com os outros, mas viver só isto, sem a fidelidade diária a Cristo e ao Evangelho, é uma hipocrisia e uma cisão inaceitável para um cristão católico.